quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

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Dos divórcios. Os divórcios, propriamente ditos, existem bem antes de os casais se separarem; são como o “não matarás” dos Dez Mandamentos, em que se condena a intenção, que mata antes. A palavra “divórcio” (divortiu), que é um substantivo masculino, tem a mesma raiz de diversus, que é o particípio passado de divertere, que significa “andar em direção diferente”. Acontece que o divórcio é justamente isto: o fim de uma caminhada de dois corpos juntos, porém, em espírito, separados. Há quem ensine que, mais do que a união dos corpos, os casamentos devem ser, para durar, a união dos espíritos. Falar em “união de espírito”, não é o mesmo que falar da similaridade anímica que “igualha” duas pessoas, de modo que ambas pensem o mesmo, sintam o mesmo; é, antes, o esforço em cumprimento de um ideal que se cultive em comum acordo, ideal de ir adiante – como num jogo de frescobol, e nunca de tênis. Casamento, pra durar, tem que ser como frescobol, não tênis. Quando o apóstolo Paulo escreveu o texto que encontramos na carta aos Filipenses, nas exortações finais, fez um pedido: “Rogo a Evódia, e rogo a Síntique, que sintam o mesmo...” “Sentir o mesmo” é um pedido por entendimento no esforço de ir adiante – parece que os dois, Evódia e Síntique, embora fossem cristãos, não se entendiam muito bem. O apóstolo sabe tanto que esse seu rogo é difícil de ser atendido que, noutra carta, agora aos Efésios, pede que os cristãos vivam “suportando uns aos outros, por amor...” A importância dessa união se dá pelo fato de a própria Igreja ser sempre exemplificada na união matrimonial. Ainda na carta aos Efésios, o apóstolo diz: “Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e se unirá a sua mulher, e serão os dois uma só carne. Grande é esse mistério, mas eu me refiro a Cristo e à Igreja”. Desde o livro de Gênesis, a união matrimonial traz, de modo alegórico, a essência dinâmica da Igreja. Exemplo disso é a parábola das 10 virgens, na qual o Cristo aparece como noivo. Elas, as cinco prevenidas, são a Igreja, com quem ele vai às núpcias; as cinco imprudentes, são o mundo (no sentido de “sistema/viver mundano”, “pecaminoso”), que fica fora dos muros da casa. É uma metáfora escatológica de casamento e divórcio, de salvação e danação eternas. Sendo a Igreja indissolúvel – (“... as portas do inferno não prevalecerão contra ela”), é de se supor que os casamentos também o sejam, se levamos as analogias mais a fundo. Na prática, porém, a realidade das coisas não é bem assim – nem de uma e nem de outra perspectiva. Acontece que, enquanto a Igreja é pensada como um estamento espiritual (ideal), os casamentos são coisas materiais. Muitos casais, embora unidos materialmente, estão separados em espírito, são/estão divorciados. Estão, literalmente, “suportando um ao outro, em amor”... Mas, amor a quê? Às aparências sociais? Ao dinheiro que uma separação litigiosa move? Às famílias envolvidas? Ao preceito teológico que faz o Outro ser “próximo” e, por isso, digno de um amor recíproco, altruísta, sacrificial? A quê? A quê?... Mais do que aos próprios irmãos (a irmandade fraternal da Igreja reunida), os cristãos amam “a idéia” de irmandade. Por isso que a união carnal de um homem com uma mulher tem muito mais a ver com a alma do que com a substância. Quando os casais se separam não é por causa do corpo, mas por causa da animosidade contraditória de ambos, “em espírito”. Quando os espíritos aprendem a “com/viver”, apesar das diferenças, as separações não acontecem – mas eles vivem, no peso do real, em obediência à leveza do ideal. Mesmo assim, para o cumprimento dessa obrigação cristã, é muito, mas muito difícil mesmo obedecer ao imperativo paulino: “... que tenhais o mesmo ânimo” (ou “... que sintam o mesmo”). Pois bem, essa concepção cristã da vida conjugal – associada à essência da própria Igreja, instituição sagrada – é normativa (pelo menos em tese) aos que se submetem à sua doutrina, ou pelo menos a ela não se opõem. Mas, a quem pensa diferente, como Walt Whitman (que diz: “Quem anda duzentas jardas sem vontade, anda seguindo o próprio funeral, vestindo a própria mortalha”), tal convívio é um inferno certo em função de um paraíso duvidoso. Mais do que unir os corpos, o apóstolo ensina que os casais devem aprender a unir as almas; apesar das diferenças. Era em obediência a um preceito estranho a esse que, antigamente, quando o marido era transferido para um fim de mundo, como conta Rubem Alves, “a mulher era obrigada a ir. Ia contra a vontade, ficava triste, chorava, ficava deprimida, perdia a vontade de fazer amor, e o amor virava ressentimento, e ela pensava em silêncio: ‘Quando ele morrer, eu volto para o lugar de onde vim...’ Quem anda por um caminho obrigado, contra a vontade, fica desejando que aquele ou aquela que obriga morra. A liberdade é assassina”. Essa interpretação do Rubem, mais do que paulina (ideal), é whitmaniana (real) – e, como você pode ver, mais próxima do que vemos, não do que sentimos, ou acreditamos. Mais adiante, e ainda no mesmo sentido, Rubem acrescenta: “Por vezes o divórcio é o jeito de parar de andar contra a própria vontade, o jeito de não seguir o próprio funeral – e nem desejar o funeral do outro...” Há casos em que os espíritos são irreconciliáveis, apesar das doutrinas, apesar dos esforços comuns...

domingo, 27 de dezembro de 2009

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Das famílias. É de se supor que amores perfeitos levem a perfeitos casamentos. Perfeitos casamentos, isso deve vir a reboque da conclusão anterior, devem resultar em perfeitas famílias. Mas, até onde se pode notar, tomando-se como testemunha toda a História, tais argumentos não são válidos, não se sustentam. Que desilusão! Não existem amores perfeitos, nem casamentos, nem famílias. Não existe, por assim dizer, uma lógica sentimental tão perfeita e tão conclusiva que encerre e resista às miríades de imperfeições do amor e, agora sim, a reboque, aos seus imperfeitos resultados. Poderia existir família mais perfeita do que aquela que foi criada pelo próprio Deus? Quem faz a pergunta é o Rubem Alves. Ele conta que lhe pediram que falasse sobre a família verdadeira, de acordo com a doutrina cristã. “Ah! A família verdadeira! Que coisa mais linda! Família, projeto divino: está colado em adesivos de carros. Mas qual será a família verdadeira? Há tantos estilos: patriarcais, matriarcais, poligâmicas. Pensei: a mais verdadeira de todas só pode ser aquela que saiu diretamente das mãos do Criador. E Deus criou o homem e a mulher. Adão e Eva, e disse: ‘Frutificai e multiplicai...’ E foi o que fizeram. Tiveram dois filhos. Um deles era carnívoro e se deleitava com o churrasco de ovelhas e se chamava Caim. O outro era agricultor, trabalhava a terra, era vegetariano e se chamava Abel. Aí, nesse ponto, achei mais prudente não continuar a minha fala sobre a família verdadeira...” E o texto termina assim: três pontos, reticências... Maísa, uma amiga gozadora, diz que “família só presta pra bater retrato”. Não acredito que chegue a tanto, e nem ousaria ir tão longe. Todavia, de perfeições, fato: somos órfãos – não da verdade que um dia foi, mas da ilusão que se desfez, da fé na fé. Agora, mais do que nunca, cumpre-se a profecia de Marx e Engels: “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Agora, mais do que sempre, a única certeza que temos é a certeza da nossa incerteza, e da vontade que temos de crer que amanhã é terça-feira, dia 30 de Dezembro, e que, em algum lugar, esperando pelo ano que vem, alguém sonha, alguém tem esperanças, alguém acredita que é feliz.

sábado, 26 de dezembro de 2009

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Do fazer e do sofrer. Em um texto de 1919, dedicado à juventude alemã, intitulado “A volta de Zaratustra”, Hermann Hesse fala sobre a inevitabilidade do sofrimento e sobre os seus benefícios: “Fazer e sofrer, que constituem juntos a nossa existência”, diz ele, “são um todo, são uma só coisa. A criança sofre quando é concebida, sofre seu nascimento [contrariamente, conforme a lenda, Zoroastro, ao nascer, ria], sofre seu desmame, sofre aqui e ali, até que, por fim, sofre sua morte. Mas todo o bem que há nela, e pelo qual ela é elogiada ou amada, é apenas um sofrimento bom, o verdadeiro sofrimento, pleno e vivo. Saber sofrer bem, é mais do que metade da vida. Saber sofrer bem é a vida toda! Nascer é sofrer, crescer é sofrer, a semente sofre a terra, a raiz sofre a chuva, o botão da flor sofre a rega. Assim, amigos, o homem sofre o seu destino. O destino é terra, é chuva, é crescimento. Destino dói.” Hesse usa a figura de Zaratustra – como também faço aqui, alguma vezes, no Livro 1 – para dizer o que ele mesmo pensa, como também fizera Nietzsche ao ressuscitar Zoroastro, profeta persa do século VII a.C. E ele completa: “Do sofrimento vem a força e a saúde. São sempre as pessoas ‘saudáveis’ que tombam de repente e morrem por causa de uma simples corrente de ar. São as que não aprenderam a sofrer. Sofrer endurece, torna-nos de aço. Há crianças que fogem do menor sofrimento. Eu realmente amo as crianças, mas como poderia amar aos que pretendem permanecer crianças pela vida toda?” Budismo, Schopenhauer, Nietzsche, Hesse, eu, (você?)... O tempo passa, e o que se mantém é o eterno retorno do mesmo, e o mesmo se veste de sofrimento, e isso não é uma fantasia carnavalesca, festa de foliões. Vida real: desiludido carnaval.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

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Do amor ao conhecimento. Há duas seções de Aurora (escrito entre 1880 e 81) em que Nietzsche, já dando claros sinais de seu desapego por Schopenhauer e Wagner - que tanto o influenciaram no passado –, enfatiza uma força motriz que, no humano e em comparação à Vontade, impulsiona-o para o progresso, mesmo quando este ou esta “força” o torna mais infeliz, sacrificando-o. Trata-se da “paixão do conhecimento”, como pode ser visto nas seções 45 e 429 da referida obra. Tal força, conforme ele, é também uma vontade, uma “vontade de verdade”, conforme já havia sido tratado em Além do bem e do mal (§1). “Essa nova paixão”, diz Paulo César de Souza, tradutor da edição portuguesa que estou usando, “é entendida, num plano universal, como o impulso em que a humanidade mesma se sacrifica em prol do conhecimento”. De fato, o célebre início da Metafísica de Aristóteles já é indício claro desse impulso para o saber, que o Estagirita também chama de amor: “Todos os homens, por natureza”, diz ele, “tendem ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. De fato, eles amam as sensações por si mesmas, independente da sua utilidade e amam, acima de tudo, a sensação da visão”. Através dos olhos, que no Evangelho são chamados de “janelas da alma”, nos chega, principalmente, o mundo, e com ele as imagens que ficam gravadas em nossa memória sentimental, nosso entendimento razoável. “Por que tememos e odiamos um possível retorno à barbárie? Porque ela tornaria os homens mais infelizes do que são?”, Nietzsche pergunta de modo retórico, pois responde logo em seguida: “Ah, não! Em todos os tempos os bárbaros tiveram mais felicidade, não nos enganemos! – Mas nosso impulso ao conhecimento é demasiado forte para que ainda possamos estimar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma forte e firme ilusão; apenas imaginar esses estados é doloroso pra nós! A inquietude de descobrir e solucionar tornou-se tão atraente e imprescindível para nós como o amor infeliz para aquele que ama: o qual ele não trocaria jamais pelo estado de indiferença; - sim, talvez nós também sejamos amantes infelizes!” Quando nos acreditamos no amor romântico, é que nos achamos embriagados por uma emoção que nos toma de assalto, prendendo a razão nalgum calabouço medonho... e sofremos antes pelo que sofreremos depois. Mesmo assim, qual viciado que sabe que morre, recorrendo àquela substância que lhe prende e mata, voltamos a sonhar quando, numa manhã como esta, nos chega uma correspondência de longe, e com ela um livro de poemas que fala de “um desejo que havia, desde o início, de encontrar uma coisa que faltava...” Do mesmo modo, analogamente, acreditamos no conhecimento, amando-o com igual teor etílico; mesmo quando este só traz a dor, mas ainda assim alguma verdade com ela.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Livro 3

Em que o autor, com o fito de não parecer escapista, assume a fala, na primeira pessoa, tratando de modo crítico a vasta literatura romântica, ou narrando situações vivenciadas e outras imaginadas – porque ele, embora seja honesto com seus leitores, é, antes, honesto consigo mesmo. Os textos aí, diferentemente do que ocorre nos Livros 1 e 2, não seguem qualquer ordem, e não têm outro objetivo senão dizer o que já foi dito, seja ampliando ou revendo pontos obscuros.

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Da esperança desesperada. Com algum esforço foi que reuni as várias definições para o amor romântico, aqui apresentadas, em textos fragmentados ao longo de vários anos. As referências aos livros lidos e as observações tiradas do grande “livro da natureza” - expressão que tem raízes em Galileu Galilei, e que tem a ver com experiência, que é de onde eu e você retiramos a tinta e o papel no qual escrevemos a nossa história – devem marcar esse nosso novo e final encontro, como quando o casal se fala pela última vez: começando uma nova história ou findando uma já antiga. Alguns textos são bem pessoais e não servem (de modo exemplar) para mais ninguém – e nem mesmo, necessariamente, para mim –; outros não são mais que as narrativas das visões que tenho da minha janela sempre aberta, do meu amor que, na melhor das intenções, se resume numa só palavra: esperança. Esperança de que seja bom e duradouro o encontro com a pessoa/eu, espelho; esperança de que ela, também, veja em mim o seu reflexo e, assim, as nossas imagens se preservem da opacidade por mais tempo. Mas, do futuro dessa esperança, que sei eu? Talvez não mais do que uma criança que, ao acordar de um sonho ruim, sofra com a perspectiva de que ele, sempre plausível, efetive-se; ou daquela que, acordando de um sonho bom, quer voltar logo a dormir, para continuar sonhando de onde o sonho parou. A esperança (ou o amor, se você preferir), fenomênico estado da alma, tem armadilhas terríveis para todo e qualquer pássaro.

domingo, 20 de dezembro de 2009

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Do desejo de status. O suíço Alain de Botton é autor de uma série de livros que, inseridos numa linha que talvez possamos classificar livremente como “filosofia pop”, tratam sobre o tema do amor romântico. Os mais conhecidos são: Essays in love (1993), The romantic moviment (1994), Kiss and tell (1995), The consolations of philosophy (2000) e Status anxiety (2004). É dele também o livro The architecture of happines (de 2006), que Joseph Gordon-Levitz (Tom) presenteia Zooey Deschanel (Summer) em (500) days of Summer (de 2009), filme dirigido por Marc Webb e sensação nas platéias indie de todo o mundo. O desejo de status, mais do que o status propriamente dito, a pose, demonstra o quanto somos carentes de meios reais (materiais) que nos dêem alguma segurança para o futuro – o futuro dos filhos que geraremos – e aceitação; sem tal aceitação, somos menos competitivos na luta pelo melhor par para o melhor sexo e os melhores filhos (melhor no sentido de mais perfeitamente adequado ao mundo que está aí). Ninguém, realmente, está disposto a gerar filhos com um “Zé Ninguém”. “Amor não enche barriga”, diz o ditado popular. E não basta apenas ter com o que encher a barriga, é preciso mais. “Pode-se dizer”, diz Alain de Botton, “que toda a vida adulta é definida por duas grandes histórias de amor. A primeira – a história de nossa busca por amor sexual – é bem mais conhecida e bem representada, suas peculiaridades formam a matéria-prima da música e da literatura, ela é socialmente aceita e celebrada. A segunda – a história de nossa busca pelo amor do mundo – é a mais secreta e mais infame. [É o desejo de status]. Se mencionada, tende a ser em termos cáusticos, zombeteiros, como algo que interessa principalmente a almas invejosas ou deficientes, ou então o impulso por status é interpretado somente no sentido econômico”. O que, neste último caso, é um equívoco. O que as pessoas querem mesmo, no desejo de status, uma vez que o desejo sexual é mais comum e menos complicado de ser demonstrado socialmente – e principalmente entre os jovens –, é se acercarem que não lhes faltará o amor, tanto aquele como este. No final das contas, se a mulher da sua vida lhe rejeita, embora todos lhe reconheçam como mais bonito e mais “sangue bom” que aquele outro, feio, insensível e mal educado, é que ele, para ela, dá uma segurança que talvez lhe falte – a segurança que o status (que geralmente se acompanha do poder aquisitivo) insinua, propõe, oferece. Acredite: é biológico, é instintivo; não é nada pessoal.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

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Dos empreendimentos. O amor possível - disso o próprio Cristo tratou há dois mil anos -, que é o mesmo que o amor romântico, é um empreendimento comercial, um jogo de troca: “Tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a lei e os profetas”. Quer dizer: toda a Lei, na sua essência, se resume nisso, como máxima, como fórmula. Mas tal fórmula é bem mais antiga, podendo ser encontrada nos ensinos de Isócrates e Confúcio, dita de modo negativo - cerca de quinhentos séculos antes de Cristo. Também chamada de medida quantitativa do Eu/Outro, pode ser vista no capítulo IV do Livro das explicações e das respostas em vinte capítulos, de Confúcio: “O Mestre disse: ‘Minha Via é costurada com um só fio’. Tseng tzeu [discípulo de Confúcio] respondeu: ‘Com certeza’. Quando o Mestre se retirou, seus discípulos perguntaram o que ele quisera dizer. Tseng tzeu respondeu: ‘A Via do nosso Mestre consiste na lealdade e no amor pelo outro como por si mesmo’”. Em Isócrates, está assim: “Não faças aos outros aquilo que te enfurece quando feito por putos”. Dá no mesmo, de modo positivo ou negativo; na boca do Filho de Deus ou de sábios e filósofos mofados. É também nesse sentido que Marcel Proust trata sobre o amor: “Desejamos ser compreendidos, porque desejamos ser amados, e desejamos ser amados, porque amamos”. Mais desse amor é dito por São Francisco, na famosa litania a ele atribuída: “Pois é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado...” O dar sem nunca esperar receber não existe nem mesmo nas Escrituras, onde a graça (a doutrina) teria a função de anular qualquer “expectativa” da parte da divindade, ativa, em relação à humanidade, passiva (no caso do amor dispensado), a quem dá o Filho como sinal de amor sem limites. Afinal, está escrito, e como o mandamento mais firme e constante de todo o Velho e Novo Testamento: “E agora, ó Israel, que é o que o Senhor teu Deus pede de ti, senão que temas o Senhor teu Deus, e que andes em todos os seus caminhos, e o ames...” Daí, seguindo a tradição milenar e perfeitamente dentro da ortodoxia teológica, o franciscano Frei Anselmo Fracasso, em A arte de viver feliz (que em 2004 estava na sua vigésima quinta edição), aconselhar aos seus muitos leitores: “Queres ser amado? Procura amar; queres ser compreendido? Esforça-te para compreender; desejas ser respeitado? Respeita os outros; queres misericórdia? Perdoa sempre”. Que se conclui de tudo isso? Que o amor perfeito ou o “romance ideal” servem bem ao Mercado: pra vender filmes, novelas, canções, livros...

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

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Do sempre amor. “If equal affection cannot be, let the more loving one be me”. Dito por W. H. Auden, no poema “The more loving one”, do livro Homage to clio, que teve a sua primeira edição em 1960. Não é preciso, realmente, “ir adiante”; sempre se vai - não há opção. Como ensinava Dionísio, na sarjeta: a carroça à qual estamos presos, como um cão em sua corda, sempre nos arrasta, é mais forte que nós. De nada adianta a nossa retração; pois que isso só piora a nossa sorte. Saber o tamanho da corda é importante porque, assim, medimos o tanto de liberdade que temos entre o ir e o ser arrastado. Saber dói mais, mas dói menos. De igual modo, saber-se amado, ainda que por um pouco, atenua a dor de amar demais. O sofrimento, dividido, é menos sofrido. Por isso que o cantar dos passarinhos parece tão bonito, e o desabrochar das flores, e a lagarta que vira borboleta. Por toda a parte por todo o mundo, dor.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

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Da solidão universal. Estrelas são corpos celestes luminosos formados de plasma. Dada a enorme pressão interna que têm, produzem energia por fusão nuclear, transformando átomos de hidrogênio em hélio. A energia que geram é emitida através do espaço em forma de radiação eletromagnética (luz), neutrinos e vento estelar. Apesar de parecerem bem próximas umas das outras, como vemos – Heráclito de Éfeso dizia que o sol tinha o mesmo tamanho de um pé humano –, a verdade é que estão, às vezes, há milhares e milhares de quilômetros umas das outras, ardendo em incandescente solidão. E nós às vemos brilhando no breu que cobre o mundo, bem próximas, como quem conversando. O brilho de algumas dessas estrelas pode levar centenas, milhares de anos para que nós, aqui da terra, possamos percebê-lo, quando podemos (no vácuo, a luz viaja a aproximadamente 300.000 quilômetros por segundo). Algumas estrelas que vemos, na verdade, já morreram; o que vemos é o brilho que elas emitiram há muito, muito tempo. Assim são as estrelas: brilham, mesmo depois de mortas. Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno são os planetas que podem ser vistos a olho nu, aqui de onde estamos. Eles também brilham no breu do céu, e nós os vemos, pelas estrelas, iluminados. Assim são as estrelas: de tanta luz que têm, emprestam-na àqueles que não têm luz alguma – como alguns artistas que aparecem na TV. Esses, que não são estrelas, realmente, tão logo morrem – e, às vezes, nem chegam a tanto –, são esquecidos; eram apenas “astros”. As estrelas são amadas porque têm luz própria e, com sua luz, seu carisma, nos falam da beleza que há, do encanto que se esconde para além dos horizontes, das manhãs que existem no porvir. E nós sempre esperamos que, para o final da noite de nossa alma crepuscular, brilhe um sol qualquer, venha uma aurora. E acreditamos que “há tantas auroras que não brilharam ainda...”, como escrito no Rigveda (ou Rig Veda, “Livro dos Hinos”, é o Primeiro Veda, um dos textos sagrados mais importantes do hinduísmo). Mesmo distantes, as estrelas nos tocam e se tocam em seus abraços de luz – e é assim que nascem as cores, e é assim que também nos dizem que a solidão, como aquela que ocupa o lugar de um amor que se foi para sempre, é universal, cósmica... e que, por isso mesmo, pode e deve ser compartilhada, pode e deve ser... menos solidão; estamos todos juntos nela, afinal. No capítulo 38 do Livro de Jó, Deus aparece como a Sabedoria Criadora que, num discurso, afirma que “cantavam [juntas] as estrelas da manhã”. E Olavo Bilac, “príncipe dos poetas brasileiros”, diz que, para ouvir a canção das estrelas, há que se estar amando: “‘Ora (direis) ouvir estrelas! Certo / Perdeste o senso!’ [...] / E eu vos direi: ‘Amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e entender as estrelas’”. Poema que o cearense Belchior, não por acaso, insere parte na letra da canção Divina comédia humana, tentando dizer, aí, que “o amor é uma coisa mais profunda que uma transa sensual”. Se tudo cabe na poesia, é que a poesia não exige provas, não exige razões discursivas - dizer, basta. Tudo cabe numa poesia... até mesmo um céu inteiro de estrelas vivas. Bem assim são, também, os discursos do amor romântico. Tais discursos só podem ser e fazer parte, essencialmente, de uma divina comédia, e no sentido mais poético e jocoso da palavra... divina.

domingo, 13 de dezembro de 2009

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Das similaridades. Você, certamente, já deve ter lido o poema do Vinicius que diz: “Todos os amores são iguais...” Pois as histórias de amor, saiba, mesmo as mais antigas, também o são. A história triste de Parvati, mulher de Shiva, é exemplo disso. Shiva, o grande Shiva, um dos grandes da Trimurti (vocábulo sânscrito que significa: “o que tem três formas”; na mitologia hindu, é a trindade constituída por Brahma [princípio criador], Vishnu [princípio conservador] e Shiva [princípio destruidor]), vivia em constante contemplação. Sua esposa, Parvati, linda e ardente, sofria ante a infinita indiferença do deus. Assim, e para mudar a situação, recorre aos deuses amigos, lhes pede conselhos, implorando-lhes que tenham piedade. Vinha chegando a primavera. Flores e cantos das aves pelos galhos... Os deuses, condoídos das mágoas de Parvati, enviaram até Shiva, o frio e indiferente, Kama, ardente deus do Amor que se fazia acompanhar da Voluptuosidade (no Ocidente, equivale àquilo que Freud chamaria de “pulsão”, Sexualtrieb), sua esposa. Tudo foi combinado e disposto para vencer a frieza do solitário Shiva, imerso em cismas. Parvati, bela e ardente, se aproxima dele. Kama distende o seu arco infalível, pronto para acertá-lo. Porém Shiva, o de três olhos, com seu terceiro olho, descobre a trama e, impiedoso, fulmina Kama. Vencer a Vontade, a Volúpia e os seus impulsos, afinal, é competência de um deus. Parvati, desolada, se desespera, quase enlouquece. Impreca e soluça... tudo é em vão. Vencida e cansada, retira-se do mundo, entregando-se à meditação. Mas Shiva apiedou-se de tão grande amor e de tão invencível fidelidade. Consolou-a prometendo-lhe ressuscitar Kama, o deus do Amor. Kama, porém, sempre morre. De fato, as “páginas felizes são páginas em branco na história do amor romântico”, dizia Hegel.
Assim, e com pequenas variações ao tema, as histórias do amor romântico são pontuadas de esperanças e desastres, e mais esperanças. Nos desastres da vida e da morte, vêm aqueles estados psicológicos que, baseada em entrevistas com pacientes terminais, a pesquisadora em Tanatologia (Eros, como já vimos, sempre se acompanha de Thanatos), Elisabeth Kübler-Ross, propôs. Conforme ela, a maioria das pessoas atravessa estágios seqüenciais quando se deparam com o sofrimento e com a morte. São eles: negação (que se acompanha da vontade de isolamento), raiva, barganha, depressão e, por fim, aceitação. Tal estágio, convém notar, é aquele que mais se aproxima da sabedoria estóica e, exatamente por isso, parece ser o mais prudente e, evidentemente, o mais difícil de ser atingido. Viver, aceitar a vida, suportar a dor... é preciso enganar os sentidos, é preciso inventar a arte. E é aí que se instala, novamente, a esperança; e o jogo recomeça sem jamais ter fim. O amor romântico é canteiro de sofrimentos, de descontentamentos. Amar é violento.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

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Do fiel e da sua fidelidade. Longe de ser uma marca da cultura cristã ocidental, o sentimento de fidelidade foi o meio que a Vontade encontrou para, por meios indiretos – de uma suposta pena eterna, pela falha moral –, preservando o indivíduo, preservar-se a si mesma. Não fosse assim, os exemplos de infidelidade seriam comuns entre os animais puramente instintivos; mas isso não ocorre com tanta freqüência na natureza. Dadivosa, ela dota cada espécie com as armas que a mesma necessita para viver, continuar vivendo; embora, para isso, algumas sejam mais aptas que outras, as que já se extinguiram. Na guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes) - como diz Hobbes, caracterizando o homem em seu estado natural, aquele em que homo homini lupus -, criam-se as mentiras, os engodos históricos, as farsas do poder (ou para o poder), justificando-os com a máscara da moral, da piedade cristã, da civilité, civility, civilization. Mentiras político-morais, como a que é brilhantemente ilustrada na sátira alegórica Animal Farm: a fairy story (1945), de George Orwell: “Todos os bichos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.” As leis, os códigos de ética e de moral estão aí, ditando o certo segundo “X”, segundo “Y”, segundo “Z”. “Todos os homens são iguais perante a lei”, dizem; e para que essa lei se sustente, se cumpra, exige-se, dela, o reconhecimento, e a fidelidade. As igrejas, os Estados, as autoridades constituídas (por títulos histórico-consensuais) e as autoridades auto-constituídas (por carismas, et cetera) unem-se na cruzada que tem, lugar comum em seus discursos, o substantivo feminino “fidelidade” por mote: fidelidade a Deus, primeiramente, depois à pátria, ao cônjuge, a isso e àquilo outro. Do mesmo modo que um sistema político não é perfeito, como o socialismo stalinista criticado por Orwell, assim também a fidelidade do homem a todos esses poderes. No final de tudo, e para todos os fins, só se é fiel a si mesmo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

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Da perfeição e do seu preço. “Aquele que não ama, permanece na morte”, está escrito na primeira Epístola de são João. Qualquer hermenêutica, mesmo a menos exigente, entende que o santo fala daquele amor que, vindo da parte de Deus e tendo sua representação maior na pessoa e morte do Cristo crucificado, trata da reconciliação do pecador com Deus, por meio da graça. Daí, logo depois, ele também dizer que “nós o amamos porque ele nos amou primeiro”. Esse amor que é, evidentemente, o amor ágape, perfeito, exige perfeições: “Nisto é aperfeiçoado em nós o amor, para que no dia do juízo tenhamos confiança; porque, qual ele é, somos também nós neste mundo. No amor não há medo. Antes o perfeito amor lança fora o medo, porque o medo produz tormento. Aquele que teme não é aperfeiçoado em amor”. Ora, esse amor de “perfeição”, de nossa parte, é tão verdadeiro quanto a afirmação anterior do escritor sagrado: “Aquele que é nascido de Deus não peca...” Tudo bem que o “não peca”, aí, diferentemente da heresia que foi a Doutrina do Perfeccionismo (Doctrine of Perfectionism, ou Doctrine of Christian Perfection) - ensinada pelo anglicano (depois metodista) John Wesley que, depois, caindo em si, abandonou-a -, tem haver com os atos pecaminosos, aqueles que viram hábitos e descaracterizam a natureza do cristão, do ser cristão. Ora, o ato pecaminoso - a falha moral, de caráter - é o que mais caracteriza a natureza humana. O cristão, portanto, deve abandonar a sua humanidade se quiser ser um autêntico cristão. É uma exigência tão desumana (literalmente) que nem Hércules se habilitaria, ou os santos pretensos. Como alguém poderia beber toda a água do oceano? Como poderia comer os horizontes? O próprio nome, pejorativo, denuncia a sua natureza imitativa, simulacra de uma realidade que só existiu em seu mentor, e que depois, com ele, foi crucificada. Na verdade, levado ao pé da letra, e para efeito de analogia, é tão possível que o homem não ame quanto não peque, e ambos de modo perfeito – porque essa perfeição é própria de sua natureza. Amor (Vontade) e pecado (desvio moral) são faces de uma mesma moeda: a natureza humana. Não são, porém, essentes do/no homem, mas a tudo o que é vivo e que pensa – e por isso que, no homem, aparecem de modo mais evidente, inerente, dramático. João fala do amor ideal (ágape, agapan) como “modelo” para o amor real (stergein – que nós confundimos hora com eros, eran, hora com philia, philein), tentando aperfeiçoar esses em relação àquele, aproximando-os, mensurando-os, corrigindo-os. É uma empresa vã – enquanto verdade objetiva –, fadada a toda sorte de confusões conceituais, como quando se toma a sombra como objeto (causa), e seu objeto como conseqüência (efeito). João está de cabeça para baixo. O amor, aos homens – não esse “ideal”, porque também desconhecido, subjetivo, dado às ponderações metafísicas -, não é uma opção; é, antes, uma condição (ou imposição) físio-químico-biológica. Não é o amor da Adélia que, teologando, diz: “Habito nele [no éter], quando os desejos do corpo , / a metafísica, exclamam: / como és bonito!” É, antes, o amor que os gatos de Burroughs tinham por ele, que reconhecia, vencido: “O amor não é de graça. Como todas as criaturas puras, os gatos são pragmáticos”. Palavras bonitas enchem os nossos olhos, os nossos livros e os nossos corações, mas o essencial cabe e se resume em uma só palavra, que pode ser escrita em paredes de banheiros ou guardanapos de papel, nada sagrados: viver. O resto são enfeites, floreios.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

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Das razões da loucura. “A verdade é que amamos a vida, não porque estamos acostumados à vida, mas porque estamos acostumados ao amor. Há sempre um pouco de loucura no amor. Mas também há sempre um pouco de razão na loucura”. Dito por Nietzsche, por boca de Zaratustra. Viver e amar são conseqüências circunstanciais do existir, da existência, ou ek-sistência – como faz Heidegger, interpretando o termo etimologicamente, com o fito de acentuar sua força transcendente. “Existencialidade”, enquanto termo, não é empregado no mesmo sentido com que se diz que esta mesa ou este sol que entra por esta janela “existem”, designa, porém, a existência interior e pessoal do humano, apontando para uma relação experiencial e subjetiva com o mundo e com o Outro, no mundo. O ser (no sentido de condição) humano, nessa acepção, é/existe como antecipação de suas próprias possibilidades, suas conseqüências – como na conhecida frase do filósofo espanhol Jose Ortega Y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância. Se não salvo a ela, não salvo a mim”. Assim, o ser humano, como antecipação e possibilidade, sendo na frente de si mesmo, agarra-se à sua situação temporal como desafio ao seu próprio poder de vir-a-ser o que se quer-ser, ou que poder-vir-a-ser o que se deseja. Heidegger entende que o ser humano sempre anda a procura de algo para além de si mesmo, e seu ser consiste em objetivar aquilo que ainda não é; projeta-se, assim, para fora de si mesmo, mas não pode sair das fronteiras do mundo em que está submerso: é uma projeção no mundo, do mundo e com o mundo, de modo tal que o seu eu e o mundo são inseparáveis, totalmente. Neste mundo, o homem é dasein, ser-lançado-aí, fermentação para a morte, ser-para-a-morte. Ele, todavia, não está sozinho; é um ser-com, um ser-em-comum com o Outro: na angústia, na capacidade de atribuir sentido ao seu ser, ao ser do Outro – coisa que se manifesta, essencialmente, no trabalho, na arte, na solicitude, fato que o conduz e re-conduz ao amor (ou ao “amar”) e à comunicação direta, relacional. É essa inquietação relacional que estrutura temporalmente o ser homem, ser mulher, lançando-os para trás e para adiante, projetando-os para a/uma vida que seja mais que a morte, que seja mais que a espera da morte. Deveras, “a verdade é que amamos a vida, não porque estamos acostumados à vida, mas porque estamos acostumados ao amor”. Amor é dialética, movimento, inquietude. Na verdade, e em se tratando de sentimentos, o que não seria isso?

sábado, 5 de dezembro de 2009

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Dos mistérios misteriosos. Uma pesquisa simples sobre o sexo entre os animais – reino do qual fazemos parte, mas com a razoabilidade –, mostrará ao pesquisador os mecanismos naturais de galanteios e conquistas, com vistas ao coito e à preservação da espécie. A luta entre os mais fortes de um bando, por exemplo, mais do que garantir a liderança, garante às gerações seguintes exemplares mais fortes, aptos à sobrevivência. Não somos diferentes dos bichos, e nem tão “melhores” que eles. O que temos de diferente é a razoabilidade, e a capacidade de adaptar a natureza às nossas necessidades - a exemplo do nosso progresso na ciência que produz remédios cada vez melhores, que fazem a vida durar cada vez mais. É nosso também o engenho que cria armas e tecnologias capazes de matar cada vez mais e de modo mais eficiente. Também nos diferimos dos animais puramente instintivos pelo poder que temos de criar mentiras, e algumas dessas tão bem criadas que, transmitidas às próximas gerações, são assimiladas de modo acrítico, como se fossem “coisa boa e normal”, que é assim mesmo porque é “assim mesmo”, e porque “assim assado”: moral. O amor, afinal, não é uma “coisa” incognoscível, pertencente ao âmbito da moral, e nem é um mistério assim tão profundo, mistério misterioso. Mistério mesmo é o amar, e o haver quem ame.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

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Das sem-razões do amor. Ângelus Silésius, monge medieval, dizia que o amor, como uma rosa, “não tem porquês. Ela floresce porque floresce”. Algo parecido com o que é dito por Drummond, no poema As sem-razões do amor: “Eu te amo porque te amo. [...] Amor é estado de graça e com amor não se paga”. Mas, se isso fosse mesmo verdade, então o ditado popular, “amor com amor se paga”, e a litania atribuída a São Francisco de Assis, “é dando que se recebe”, estariam equivocados. Todavia, tudo sugere, quem se equivoca é o Drummond; Silésius, não – porque as rosas, “as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam...” (Cartola). As rosas são “coisas” naturais, símbolos, às vezes, e nada mais. No entanto, tudo aí, por boca dos três autores referenciados, é poesia; e a poesia, como o amor romântico, não tem compromisso com verdade - nenhuma verdade além da verdade de si-mesma. Na poesia, valem as não-verdades que são, eo ipso, verdades de si-mesmas. A respeito do ofício poético, Fernando Pessoa dizia: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. Sendo um fingidor, o poeta sofre a dor real, maquiando-o como dor fingida, elevando-a ao nível representacional, poético – disfarçando a verdade, maquiando o natural, como também é feito à Vontade, sob a máscara do amor romântico. Da mesma forma fazem os apaixonados: ao sofrerem por amor, fingem – mesmo de modo inconsciente – que sofrem pelo Outro quando, na verdade, é por si-mesmos que sofrem. E assim, como na poesia, o amor é elevado a uma categoria sublime, não comercial. “Eu te amo porque te amo”?, não; eu te amo porque me amo. Pois o Outro, objeto do “nosso amor”, tem aquilo que, em nós, existe como falta. Quando Marcel Conche diz que o “amor completo” é aquele que, olhando o Outro, “não faz objeção a seu ser, isto é, que nos parece bom ele ser como é, sem acréscimos e nem retoques”, é que esse outro é conforme o nosso desejo. No fim, é o nosso (???) que, no outro, como o reflexo no espelho, corresponde a nós mesmos, nos representando volitivamente. Nos olhos do outro vemos o nosso reflexo. Quando quereremos “mergulhar” no outro queremos mesmo é mergulhar em nós. Como acorre à rosa, ocorre ao amor, “ele floresce porque floresce”. Silésius, mesmo sem entender ou defender esse mecanismo engenhoso da vida sedenta por continuidade, falava do amor como nascido de um estado natural, uma condição essencial da vida em benefício de si mesma. O amor existe porque, ao que está vivo, nada lhe é mais natural que desejar continuar existindo – mesmo quando este, vivente, voluntariamente caminha para a forca. A vida, afinal, sempre joga a favor de si mesma; e como poderia ser diferente? O amor é apenas a efetivação desse mecanismo natural da vida em favor de si. Daí que, ao contrário do que diz a não-verdade da verdade do amor, em Drummond, o “amor com amor se paga”. Isto é, a vida transita entre as paixões e as ações, entre as potências e os atos. Mas, e se todos os homens morressem, a vida também pereceria? Não. Mas, quem saberia dela? Quem falaria sobre... amor? Onde não há Vontade não há vida; onde há vida, há Vontade. E só há amor onde há algo a ser amado. É um ciclo perfeito de auto-alimentação e existência conseqüentes, ou vice-versa. Daí que, como acontece ao calor, assim também ao amor: que é apenas a adequação (ou troca) de estados desiguais à procura de igualdades, de simetrias. Somente na vida é que se encontra a estabilidade – que precisa, para alimentar-se, da instabilidade dos “nossos” jogos amorosos. Como se vê, as sem-razões do amor não são lá assim sem razões.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

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Da libido. Pode ocorrer, e geralmente ocorre, que o amor possível seja envolvido numa espessa neblina, turvando os juízos estéticos que classificam este ou esta como candidatos ou candidatas a um “amor perfeito”. Momentaneamente, tal consentimento faz o feio parecer bonito. É o domínio máximo do desejo libidinoso, da Volúpia - nome que foi dado a uma cachaça produzida em Alagoa Grande, Paraíba, desde 1946. É o momento lúdico-entorpecente que leva o bonito a “fazer amor” com a feia (ou vice-versa), como quem embriagado, sem considerar com rigor os juízos estéticos naturais que todos os indivíduos têm em relação ao Outro - aquela noção inconsciente de beleza e de feiúra, constatação de alguma deficiência ou excesso. É uma aceitação festiva, irrefletida, sem critérios imediatos. Marcel Conche, em Analyse de l’amore et autres sujets, de 1997, tratando sobre o que acredita ser o amour parfait (“amor completo”, que é mais que o “amor à pátria” ou o sentimentalismo vazio, embriagado), diz que ele “supõe o encontro de um semelhante, com o que não se deve entender necessariamente um ser humano que se pareça conosco no que cada um de nós tem de particular, que pode ser uma doença, uma deficiência, uma feiúra, ou a velhice, etc., mas um ser humano que não provoque, em quem olha, objeções a seu ser, isto é, que nos parece bem ele ser como é, sem acréscimos nem retoques. O amor é alegria. A feiúra não pode proporcionar alegria, por conseguinte fica faltando certo componente da alegria”. É o ditado popular que vale, aí: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”; é também o exercício relaxado de outro adágio, máxima da passividade: “Não tem tu, vai tu mesmo”. Nas boates, hoje em dia, é comum que pessoas bem jovens se encontram, troquem duas ou três palavras, se olhem, libido abundante, e já nesse primeiro encontro, casual, se comam, queiram se comer. Quer dizer: não há aí aquele amour parfait, só o incomplet amour que, todavia, é o mais real – porque um tal “amor perfeito”, mesmo, só há enquanto categoria abstrata. É, Marcel Conche não é canônico. A volúpia, ou a libido, numa intensidade que não se pode calcular, evidencia o “fim” mais carnal, e por isso real, a que se destinam tais relações fincadas na Vontade. O desejo pelo feio – e o “feio” é sempre um não-convite ao coito, logo a não permanência da vida – existe porque, mesmo aí, como um maratonista atrasado, há a carência de um equilíbrio simétrico/assimétrico em relação ao belo. Do mesmo modo que os atletas de uma maratona não podem ocupar, todos, a primeira posição, assim também o belo em relação à beleza. Ora, quem não sabe?, onde só há o belo, não há o belo. Narciso sempre morre diante de seu reflexo. Uma contraparte é sempre necessária à existência do equilíbrio, dos jogos de amor, das conquistas. A vida, portanto, nos obriga ao sexo; mesmo sem a presença colorida daquilo que os românticos chamam de amor, ou daquilo que os estetas chamam de belo, beleza.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

NOTA:

Gente,
esta semana não terei tempo de publicar novas postagens (porque, apesar de todas já estarem prontas, tenho um cuidado danado na revisão antes de postar, o que demanda tempo - coisa que não terei esta semana).

Leiam as antigas.
Pra quem tá visitando agora, recomendo os primeiros textos, que são contos curtos e pontuados de ironia e desastres engraçados... Enfim: Leia e comente (pra eu saber sua opinião sobre meu livrinho), dê um sinal de vida. Semana que vem eu volto com todo o gás.

Um abraço a todos e a todas, e bom resto de semana.


Patativa Moog

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

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Das indefinidas definições. O tema sobre o amor (ou “amores”) pode ser um tratado filosófico dos mais profundos, ou dos mais simples também. Tem, por isso, por natureza, constante carência de definições sistemáticas: não se pode falar de (e não do) amor sem que, antes, ele – ou eles, porque são muitos – seja definido, muito bem definido. Tal tarefa, no entanto, assemelha-se ao ofício daquele que retira o cheiro da flor, ou o doce da mão da criança. Ofício inglório, tem pouca serventia. A ignorância, nos casos do amor romântico, se aproxima de uma felicidade possível, uma felicidade amorosa prometida – o maior dos enganos, e o mais doce dos sonhos. Amar é achar-se enganado; continuar amando é querer estar enganado: é bom, é ruim. Daí, novamente, o paradoxo sentimental descrito pela Adélia: “Amor é a coisa mais alegre / amor é a coisa mais triste / amor é a coisa que mais quero”.
O espírito que acredita nesse amor romântico (amor de “alma gêmea”) não é e nem pode ser filósofo; e, se assim se pensa, tem-se a mente de um poeta, de um teólogo. O filósofo autêntico, espírito livre, é (e só assim pode ser) uma pessoa desencantada - que não é o mesmo que “pessimista” e nem “mal-humorado” -, e nem mesmo o sorriso de uma criança lhe comove tanto, e nem o desabrochar das flores, o vôo irregular da borboleta colorida, e nem o crepúsculo, ou a aurora, ou o cantar dos passarinhos. Aí, em tudo e por todo o canto na natureza, o que ele vê é luta, a ação da Vontade na competição pela vida, pela vida da vida. A dor - sim, a dor! - é tão presente em tudo quanto o ar, a luz do dia ou a escuridão da noite. Para suportar tudo isso, criaram-se as artes, as religiões, as doutrinas várias, as confissões de fé (em Deus ou na ciência) que têm a função de gerar um alívio psicológico inibidor da dúvida, promotor de uma fé nalguma fé. “É preciso duvidar de tudo”, dizia Kierkegaard (o grande sedutor) através de Johannes Climacus, um heteronômio seu; mas ele mesmo não duvidava em absoluto, e nem era preciso - e daí as inquietações do jovem Climacus, arrebatado por uma insólita paixão: a paixão pela filosofia. É preciso acreditar em algo. Mesmo o não crente precisa crer na possibilidade da sua não-fé ter algum sentido, fazer algum sentido. Não é possível um tal “ceticismo absoluto”: à ciência, à religião ou às coisas do amor romântico, por fim...
Pra espantar a dor, o grito; e o resto é só silêncio.

sábado, 21 de novembro de 2009

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Das antinomias. “Amor é a coisa mais alegre / amor é a coisa mais triste / amor é a coisa que mais quero” – dito pela Adélia no início de O sempre amor, poeminha do livro Bagagem, de 1976 - livro de estréia dela, apadrinhada pelo Drummond. O eco com um textinho de Nietzsche em sua Zur Genealogie der Moral. Eine Streitschrift, escrito em 1887, é evidente – mesmo que ela não o soubesse: “O homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao sofrimento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura inclusive, desde que lhe seja mostrado um sentido, um para quê no sofrimento.” Nada, no fundo, é lá assim tão sem propósitos. Despropósitos, mesmo, é só uma palavra bonita a enfeitar uns poemas do Manuel de Barros, adorável.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

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Dos remédios contra o amor. Ovídio (Publius Ovidius Naso), que nasceu no dia 20 de março de 43 a.C., em Sulmona, e morreu em 17 d.C., em Tomi (atual Constanta, na Romênia), escreveu um livrinho intitulado Remedia amores (Os remédios para o amor). Conforme ele, sendo o amor romântico (ou a paixão) uma enfermidade da alma, necessários são os remédios que lha curem. Assim, Ovídio convida os jovens às suas terapêuticas aulas: “Venham às minhas aulas, jovens enganados, que no amor só encontraram decepções. [...] A meta a que me proponho é apagar uma chama cruel e libertar os corações de uma vergonhosa escravidão”. Mais adiante, dizendo que é preciso “cortar o mal pela raiz”, Ovídio diz: “Enquanto for possível, e quando são leves os movimentos que agitam seu coração, se sentir algum desgosto, detenha seus passos logo na entrada. Mate os germes malignos no nascedouro, e que, desde a partida, seu cavalo se recuse a avançar. Pois o tempo tudo fortalece; o tempo amadurece a uva tenra e transforma em espinhos robustos o que antes era verde. A árvore que espalha ao longe sua sombra sobre os caminhantes, quando foi plantada, era uma varinha. Estava então à flor da terra e a mão podia arrancá-la; agora que ela tomou forças, se eleva sobre suas raízes, que brotam em todos os sentidos. Qual é o objeto de seu amor? Eis o que seu espírito deve examinar com rapidez; se o jugo deve machucá-lo, retire seu pescoço. Combata o mal desde o início; será muito tarde para remediá-lo, quando um grande espaço de tempo o fortaleceu. Mas apresse-se e não adie sua decisão toda hora. Quem não está pronto hoje, amanhã estará menos. O amor nos engana sempre, e o tempo lhe fornece os alimentos; para a libertação, o melhor dia é o mais próximo”. Considerado um mestre do dístico elegíaco, Ovídio é tradicionalmente posto ao lado de Virgílio e Horácio, como um dos três poetas canônicos da literatura latina. Sua poesia, muito imitada durante a Antigüidade Tardia e durante a Idade Média, influenciou a literatura e a arte da Europa, particularmente Dante, Milton e Shakespeare – este, por sua vez, conforme Jane Austen em Mansfield Park (de 1814), definiu a cultura sentimental do Ocidente, dando um enorme salto para o século XXI e superando “com tranqüilidade”, diz Christiane Zschirnt em Bücher: alles was man lesen muss (de 2002), “a barreira da [nossa] sociedade midiática”. Ovídeo, com seu estilo jocoso e inteiramente pessoal, tem muita participação nos êxitos shakespeareanos - às vezes o eu-lírico dos poemas de Ovídio servem-lhe como representação identificatória. Ele, conforme dizem em vastas biografias, vivia uma vida boêmia, sendo admirado por toda a Roma Antiga como um grande poeta. No ano 8, foi banido de Roma pelo imperador Augusto. Não se sabe a causa do banimento. Muito provavelmente o imperador tenha achado imoral seus conselhos em Ars amatoria (A arte de amar) – que seria uma espécie de continuidade no tratamento contra o amor.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

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Das enfermidades. Um dos mais belos e antigos poemas sobre o amor é o que compõe o livro dos Cantares, de Salomão – às vezes também chamado de Cântico dos cânticos. Alguns religiosos com tendências à mistificação de tudo, em suas forçadas hermenêuticas, querem entender e fazer com que o texto seja recebido e digerido pelo povo (o rebanho) como “uma relação espiritual de Deus com o seu povo”, “do Cristo com a sua Igreja” ou, como fez são João da Cruz, “a união das almas com o Deus de amor”. Equívoco dos maiores! Acontece que o livro dos Cantares é, sem muitos rodeios, um livro sobre a paixão, sobre o amor carnal – aquele que faz do amante um enfermo: “Eu dormia, / mas meu coração velava / e ouvi o meu amado que batia: / ‘Abre, minha irmã, minha amada, / pomba minha sem defeito! / Tenho a cabeça orvalhada, / meus cabelos gotejam sereno!’ // ‘Já despi minha túnica, / e vou vesti-la de novo? / Já lavei meus pés, / e vou sujá-los de novo?’ / Meu amado põe a mão / pela fenda da porta: / as entranhas me estremecem, / minha alma, ouvindo-o, se esvai. / Ponho-me de pé / para abrir ao meu amado: / minhas mãos gotejam mirra, / meus dedos são mirra escorrendo / na maçaneta da fechadura. // Abro ao meu amado, / mas o meu amado se foi... / Procuro-o e não o encontro. / Chamo-o e não me responde... // Filhas de Jerusalém, / eu vos conjuro: / se encontrardes o meu amado, / que lhe direis?... Dizei / que estou doente de amor!” Amar é estar possuído, habitado, doente. E é uma doença tão medonha que, por ela, morre-se e nem se sente – de tão anestesiados os sentidos. A canção de Odete de Pilar, Ô serena serená, é um bom exemplo: “Ô serena serená / Serena do amor / Nos braços de quem me ama / Morro, mas não sinto a dor...” Outra canção popular, Mulher nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor, de Zé Ramalho e Otacílio Batista, fala em sua primeira estrofe sobre a Guerra de Tróia, e de como Helena, seduzida por Páris, foi pivô do massacre impetrado por Menelau, o maior dos espartanos, contra os habitantes de Tróia. A estrofe final, mote que dá título à canção, termina sempre assim, dizendo: “Mulher nova, bonita e carinhosa / Faz o homem gemer sem sentir dor.” Por fim, e ainda como exemplo, há o famoso soneto de Camões – na verdade, trata-se de um plágio de Francesco Petrarca, pedra fundamental da poesia lírica italiana e, sem dúvida, uma das grandes influências da literatura do Ocidente –, que diz: “Amor é fogo que arde sem se ver / É ferida que dói e não se sente...” Na vastíssima literatura universal os exemplos pululam: por amor se morre, se mata. O entorpecimento dos sentidos, ou a sua completa embriaguez, é o que caracteriza o estado psicológico mais avançado dos apaixonados, dos doentes.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

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Da liberdade. Talvez nenhuma outra história seja tão encantadora e ilustrativa para o problema da liberdade amorosa – ou da posse – do que a história da Menina e do Pássaro encantado, contada por Rubem Alves, em Concerto para corpo e alma, de 1998. A história é assim:

Era uma vez uma Menina que tinha como seu melhor amigo um Pássaro Encantado. Ele era encantado por duas razões. Primeiro, porque ele não vivia em gaiolas. Vivia solto. Vinha quando queria. Vinha porque amava. Segundo, porque sempre que voltava suas penas tinham cores diferentes, as cores dos lugares por onde tinha voado. Certa vez voltou com penas imaculadamente brancas, e ele contou estórias de montanhas cobertas de neve. Outra vez suas penas estavam vermelhas, e ele contou estórias de desertos incendiados pelo sol. Era grande a felicidade quando eles estavam juntos. Mas sempre chegava o momento quando o Pássaro dizia: “Tenho de partir.” A Menina chorava e implorava: “Por favor, não vá. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar...” “Eu também terei saudade”, dizia o Pássaro. “Eu também vou chorar. Mas vou lhe contar um segredo: eu só sou encantado por causa da saudade. É a tristeza da saudade que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for não haverá saudade. E eu deixarei de ser o Pássaro Encantado. Você deixará de me amar.”
E partia. A Menina, sozinha, chorava. E foi numa noite de saudade que ela teve uma idéia: “Se o Pássaro não puder partir, ele ficará. Se ele ficar, seremos felizes para sempre. E para ele não partir basta que eu o prenda numa gaiola.”
Assim aconteceu. A Menina comprou uma gaiola de prata, a mais linda. Quando o Pássaro voltou, eles se abraçaram, ele contou estórias e adormeceu. A Menina, aproveitando-se do seu sono, o engaiolou. Quando o Pássaro acordou, deu um grito de dor.
“Ah! Menina... Que é isso que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias. Sem a saudade o amor vai embora...”
A Menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar.
Mas não foi isso o que aconteceu. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio. Não era aquele o pássaro que ela amava. E de noite chorava, pensando naquilo que havia feito ao seu amigo...
Até que não mais agüentou. Abriu a porta da gaiola. “Pode ir, Pássaro”, ela disse. “Volte quando você quiser...”
“Obrigado, Menina”, disse o Pássaro. “Irei e voltarei quando ficar encantado de novo. E você sabe: ficarei encantado de novo quando a saudade voltar dentro de mim e dentro de você...”
A estória termina assim: a Menina na espera, se preparando para a volta do Pássaro. Mas como ela não sabia de onde ele voltaria, todos os espaços ficaram encantados. Ele poderia vir de qualquer lugar. E todos os tempos ficaram encantados: a qualquer momento ele poderia voltar. Quando a saudade apertava seu coraçãozinho, ela dizia: “Que bom! Meu Pássaro está ficando encantado de novo!” E assim, a cada noite ela ia para a cama triste de saudade, mas feliz com o pensamento: “Quem sabe ele voltará amanhã...” E sonhava com a alegria do reencontro.

A história da Menina e do Pássaro Encantado, na verdade, não é nova; é uma releitura da história da Raposa e do Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry (cf., 2, 41). A constatação de que “sem a saudade o amor vai embora”, também, faz eco a tudo o que até aqui já dissemos, valendo-nos, sobretudo, de Schopenhauer, de Werner Herzog, de Hegel e de um sem número de autores nem sempre concordes. Nas coisas do amor romântico, repetimos, além do trágico, a ironia é muito presente. Hermann Hesse, por exemplo, dizia que o que “nós amamos é sempre um símbolo”, é o encanto que está sobre o Outro, e não o Outro exatamente. O Outro, alter, nunca é o objeto mesmo do amor, é somente o depositário do símbolo mágico da Vontade; e a Vontade é livre. O que amamos, afinal, bem pode ser a liberdade da Vontade, por meio da nossa vontade que não é livre. É por isso que o amor, como o Pássaro Encantado, não pode ser preso, porque ele nasce da Vontade. O símbolo falado por Hesse, portanto, é essa presença misteriosa da Vontade em nós, nos impulsionando hora pra frente, hora pra trás, numa dinâmica chocante (porque conflitosa) da Vontade com o real, pre-sente. E por toda parte, como em uma sala de espelhos, é a nós mesmos que vemos, com as distorções que fazem que, às vezes, não nos reconheçamos e pensemos amorosamente no Outro, quando o que queremos, realmente, é o que está no Outro. Tudo está em nós; no Outro/a, amado/a, o reflexo do objeto nosso, do nosso desejo... Amour de soi.
Daí a Cecília Meireles dizer: “Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no seu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes fugidios… Como Narciso, fico diante dele… No fundo de tua luz marinha nadam meus olhos, à procura… Por isto te amo, pelos peixes encantados…” Daí o Pequeno Príncipe dizer à Raposa: “O essencial é invisível aos olhos. A gente só o vê bem com o coração”. Daí Kierkegaard, comentando sobre o absurdo de se pedir aos amantes explicações sobre o seu amor, dizer que, para tal pergunta, a única resposta que eles possuem é o silêncio. Se, todavia, pedirem que falem do seu amor, sem explicações, eles serão capazes de falar por dias e dias, sem parar… Daí, por fim, santo Agostinho, nas suas Confissões, perguntar: “Que é que eu amo quando amo o meu Deus?” Ao que o Rubem Alves faz as seguintes observações: “Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: ‘Que é que eu amo quando te amo?’ Seria, talvez, o fim de uma estória de amor. Pois essa pergunta”, ele conclui, “revela o segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a amada o amante está amando uma outra coisa que não é ela”. É o símbolo, como dissemos; e o símbolo é, por outro nome, a Vontade.
O amor romântico é uma metáfora da Vontade. Como dizia Milan Kundera: “O amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética”. E o que é essa memória poética? É a saudade do objeto do seu amor, mesmo que tal objeto não seja o objeto mesmo do amor, mas apenas o depositário do símbolo mágico da Vontade. Não existe memória sem o distanciamento – o Pássaro Encantado longe – que a saudade requer, mas o distanciamento, demasiado, também mata a Vontade acerca de um objeto específico. No filme Beleza roubada (Stealing beauty, 1996), de Bernardo Bertolucci, Jean Marais (M. Guillaume) diz: “Amor não existe. Só as provas de amor.” Não há como prender o Pássaro sem que ele murche, perca a cor e a vontade de cantar. Sem liberdade, o amor romântico morre; com liberdade, também – porque a Vontade, para efetivar-se, requer a pre-sença material do seu objeto. O símbolo, porém, não pode ser real, jamais; pode apenas ser re-pre-sentado. Mas aí já é Outro, outra “coisa”.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

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Das mudanças. “Amar é mudar a alma de casa, [...] é voar sem asas”. Dito pelo Mario Quintana em seus Apontamentamentos de história sobrenatural, de 1976. A poesia, como a teologia, tem o poder de descrever o trágico de um jeito bonito... metafórico. A casa, abandonada, como a casca da cigarra, guarda a memória das canções entranhadas em suas paredes, como a pintura que a reveste. Casca de cigarra, casa abandonada. O que se vai é como a alma para o corpo; o que fica é como a casca da cigarra: corpo sem alma, embalagem vazia, dança sem par. A casa abandonada, como a planta que não recebe água, em passando o tempo, murcha, morre devagar. Como é triste uma casa abandonada! Mas bem pode ocorrer o contrário: de o abandonado ser aquele que vai. Nas coisas do amor, além do trágico, a ironia é muito presente. Não é à-toa que o Edu Lobo, na parceria que faz com Cacaso, na música Lero lero, diga assim: “Porque no amor quem perde quase sempre ganha / Veja só que coisa estranha, saia dessa se puder.” Tem saída não! Amar é estar possuído, habitado. Ser pássaro ou gaiola, depende da ocasião; e todo mundo, um dia, já foi uma coisa ou outra... ou será.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

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Das flores dadas e dos galanteios. As rosas – sim, as rosas! – são representações festivas das mentiras do amor romântico: de quem às dá e de quem às recebe. As rosas, que a ninguém pertencem, são dadas apenas àquele ou àquela que pensa em dá-las. Flores, quaisquer que sejam, são símbolos do sexo feminino, fecundo – como na animação para a música “What shall we do now?”, no filme Pink Floyd: The Wall, de 1982 (dirigido por Allan Parker e baseado no álbum homônimo da banda inglesa), onde um botão, em seu talo, acaricia uma flor aberta, com quem copula; e depois, por ela, é devorado. Eros e Thanatos. O botão, fechado e em riste, simboliza o órgão masculino; a flor, mais fácil de ver ainda, é uma vagina. O órgão masculino, após o coito, morre; o feminino, diferentemente, como o filme nos faz ver, não... é uma máquina. O que isso nos diz? Que a morte, por fim, tem mais vida - o paradoxo é inevitável - do que o amor. Assim, e sem muitos enfeites ou florilégios, o moço ou a moça que dá flores a outrem está dizendo àquele ou àquela que as recebe: “Meu bem, me coma”, ou: “permita-me!” Dar flores, gesto dos mais obscenos.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

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Das flores dadas. Nada ilustra mais e melhor a permanência do amor de um homem por uma mulher (ou o contrário disso, ou ainda isso tudo invertido e misturado) do que a flor que é dada num encontro; principalmente os primeiros - embora a nossa cultura, longe daquela do Romantismo europeu dos séculos XVIII e XIX, ou dos filmes produzidos em Hollywood, não cultive essa prática com tanto afinco. A flor, pobrezinha, arrancada do seu galho, morre logo, antes do seu tempo. Do mesmo modo é com o amor realizado, mediante a conquista amorosa. Como a flor, ele também murcha, morre antes do seu tempo. O amor que mais dura ou é como a Idéia de uma rosa (sem acidentes) ou é como a própria, materializada; de plástico, porém. Essa metáfora, mais que realista, é fatalista... e não tem como ser diferente. O amor que mais dura é aquele que se assemelha à flor no pé, nunca colhida; ou aquela outra, de plástico: sem graça, sem cheiro, sem vida e sem poesia... sem um significado emotivo válido, valioso. Não é por acaso que os românticos, depois do romance, esquecem de dar flores àquelas ou àqueles que se tornam suas mulheres, seus maridos: amor realizado, flor colhida, morte. Dar flores, somente aos mortos - e com a condição de que estejam sepultados.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

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Das flores e do símbolo [II]. Na história do mundo, e nas mais variadas culturas e religiões, conforme o belíssimo estudo do mitologista americano Joseph Campbell em The power of myth – um livro em seis partes, baseado numa série de documentários que foi ao ar em 1988, na americana PBS (Public Broadcasting Service) -, as flores costumam aparecer como meios pelos quais o Sagrado também, bem, pode se revelar; conforme entendem os homens religiosos, e conforme as suas teologias. No último livro da Divina comédia, por exemplo, Dante contemplava o paraíso como uma rosa branca, imaculada, sobre a qual e “como um enxame de abelhas”, anjos pousavam e alçavam vôos reverentes. Subindo, os anjos fitavam o interior da Suprema Luz, vendo ali a beatífica Trindade. Acontece que, como ocorre na história de Brahma – que tem quatro cabeças e está entronizado na Índia sobre o lótus do sonho de Vishnu –, assim também ocorre com a imagem que Dante faz da Trindade no interior da rosa, um Deus que se manifesta em três pessoas e que, como diz Campbell, “ao poeta foi dado conhecê-las por intermédio de seu enlevo na beleza de uma mulher terrena”, Beatriz.
Emile Mâle, em seu livro Notre-Dame de Chartres, de 1948, falando da Virgem que aparece no portal oeste de Chartres e no portal de Sain Anne da Catedral de Notre Dame de Paris, observa que: “A Virgem do século XII e do início do século XIII é uma rainha. Ela aparece entronizada em solenidade real. Ostenta a coroa sobre a cabeça, porta o cetro de flores na mão e tem o filho sentado em seu joelho. Dessa forma, ela se apresenta no belo vitral de Chartres conhecido como ‘la belle verrière’, e também no maravilhoso vitral de Laon”. “O cetro florido na mão direita da Madona entronizada”, afirma Campbell, “- sendo ela o próprio trono vivo de seu filho – corresponde simbolicamente ao lótus na mão esquerda da deusa budista [Tara]. Sentada sobre um trono de lótus sustentado por um par de cariátides leoninos, simbolizando o ‘rugido do leão’ da sabedoria de Buda, ela mantém a mão direita aberta no gesto da ‘dispensação das bênçãos’, enquanto, acima do lótus, na mão esquerda, flutua a imagem de um Buda salvador. Analogamente, a coroa sobre a cabeça da Virgem Mãe revela seu caráter celestial, a criança sobre seu joelho corresponde ao Buda no ícone oriental”.
O humano e o divino, aí, aparecem num dualismo que não é chocante, embora contraditório: humanidade e divindade, terra e céu, maternidade e virgindade, temporalidade e eternidade, et cetera. Como o vitral de Chartres que, embora seja feito de matéria terrena, é transpassado pela luz do sol, que revela cores e constitui-se, em si, num “agente revelador” de Maya (ilusão); assim também as flores, como o lótus ou a rosa, revelam uma intenção metafórica, subconscientemente humana. Desse modo, o lótus no ombro esquerdo da Rainha Dedes da Dinastia Singasari – uma estátua-retrato que personifica Prajna-paramita (um ser mítico que simboliza a doçura da “Sabedoria [prajna] da Margem do Além [paramita]” – sustenta o livro que ensina tal revelação oriunda de muito além dos opostos ilusórios.
Indólogo, mitólogo e historiador da arte, o alemão Heinrich Robert Zimmer, numa palestra sobre a simbologia na arte hindu, fala que, em 1220 d.C., o rei governante de Singasari foi derrubado por Ken Arok, um aventureiro que se casaria com a Rainha Dedes e subiria ao trono com o nome de Rajasa Sang Anurvadhumi. O novo rei teve um reinado breve e, em 1227, foi morto. “O principal tesouro que nos resta de seu tempo”, diz Zimmer, “é [uma] imagem de sua consorte, como a Shakti do Adi Buda”. Acontece que o termo shakti, em sânscrito, tem uma importância capital para o que aqui nos interessa: a flor e o seu símbolo. Shakti pode significar “poder”, “capacidade”, “energia’, “faculdade ou aptidão”, e do modo como temos utilizado aqui, diz respeito a um poder ativo de uma divindade masculina incorporado em sua esposa. Toda esposa, assim, é shakti do seu marido, toda mulher amada é shakti do seu amado – como fora Beatriz para Dante, Isolda para Tristão, Julieta para Romeu, Yashodhara para Sidarta, Dalila para Sansão. Em hebraico, o nome de Dalila soa onomatopéico, vindo de “dal”, que significa “fraco”, “débil”, “doente”, “hesitante”. Mas Dalila tem algo que faz Sansão muito fraco, o sexo. “Sansão, o herói, o valente, o forte, o guerreiro, o estrangulador de leões, o super-homem que enfrenta mil filisteus com apenas uma queixada de burro, ele que carrega nas costas os portões da cidade até o topo da montanha, esse gigante é vencido pelo sexo fraco, pelos requebros e pelo choro duma mulher. A história de Sansão e Dalila põe duas forças em confronto: a virilidade física do homem e a beleza sedutora da mulher”, são palavras de Rômulo Cândido de Souza, em Palavra, parábola: uma aventura no mundo da linguagem. “Para nos aprofundarmos ainda mais”, diz Campbell, “a palavra shakti denota poder espiritual feminino em geral, do modo como se vê, por exemplo, no esplendor da beleza ou no nível elemental do poder absoluto do sexo feminino para produzir efeitos no masculino. Atua no poder que o útero tem de transformar a semente em fruto, para nutrir, proteger e dar à luz”. A analogia do útero ou do órgão sexual feminino com a flor não é feita de modo gratuito. No plano psicológico, e de modo análogo, shakti é o poder que o sexo feminino tem de induzir o homem à sua razão, sua realização enquanto homem (plantar a semente [sêmen]) e/ou, do modo contrário, destruí-lo em sua masculinidade. Goethe sabia disso, e, nos conhecidos versos do Fausto, dizia: “Das Ewig-Weiblice / Zieht uns hinan”, ou: “O eterno feminino / Nos incita a progredir”.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

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Das flores e do símbolo. De acordo com a lenda, enquanto Afrodite (Vênus), ferida, gritava de dor diante de Adônis, mortalmente ferido por um javali, seu sangue caía sobre rosas, tingindo-as de vermelho. Nada mais podendo fazer, a deusa instituiu uma celebração anual para lembrar a trágica e prematura morte do seu amado. Do século V em diante, na cidade de Biblos - e em cidades gregas no Egito, na Assíria, na Pérsia e em Chipre -, realizavam-se festivais anuais em honra de Adônis. Em tais rituais, mulheres plantavam sementes de várias plantas floríferas em pequenos recipientes, chamados “jardins de Adônis”. Entre as flores mais usadas no culto de Adônis estavam as rosas vermelhas, que faziam referência ao sangue de Afrodite, derramado em demonstração do seu amor. As rosas vermelhas são, assim, símbolos do amor interminável, do fogo que arde no coração do apaixonado. É importante notar que as rosas têm espinhos, sinal de que o tal “amor interminável” pode estar bem junto de uma somatória dolorosa de memórias, de sofrimentos cravados na pele, no peito. Seja como for, e para aqueles que dão flores em suas cândidas demonstrações de amor - ou à procura de um amor ainda não “demonstrado candidamente” -, o “amor é lindo”; é o que dizem, que acreditam. A fé não precisa mesmo de outra demonstração que não a do absurdo dela mesma; fé, provada, vira ciência. Quanto mais absurda, maior é a fé - “melhor” já é conforme os critérios. Assim, e num sentido mais geral: o que é uma rosa oferecida a uma mulher ou a um homem? É um convite ao coito, à procriação. Rosa vermelha: signo do fogo da paixão, do ardor febril – diferentemente, por exemplo, do Crisântemo ou do Cravo Branco que simbolizam inocência; da Bells of Ireland que representa a boa sorte; ou dos Narcisos de amarelo festivo, a quem o poeta inglês William Wordsworth fez o famoso poema The daffodils. Mas mesmo aí, nessas “flores inocentes”, o amour de soi e a Vontade da vida imperam, nas entrelinhas da ação. Não, ninguém que não seja um comediante daria flores a uma garota se, de fato, nas entrelinhas, não visasse alguma conquista e, por fim, o coito - que é para onde todos os romances se dirigem, ou as boas amizades entre os amigos do sexo oposto. As rosas - ah, as rosas! –, essas sim são as grandes campeãs nas demonstrações do amor romântico. O dar flores, quaisquer que sejam e tenham botões - que são signos da fertilidade, das potencialidades –, está ligado, mesmo que por um mecanismo indireto, aos frutos e, diretamente, ao sexo e à vida.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

48
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Do final sempre infeliz [II]. O Taj Mahal, que é possivelmente o maior monumento ao amor, é também a sua maior sepultura. Conforme a história, o príncipe persa Shah Jahan tinha em seu harém algo em torno de 300 mulheres, praticamente uma (ou mais) para cada dia do ano. Mas, não se sabe como, aos 21 anos, apaixonou-se perdidademente – o apaixonado, coitado!, sempre se perde – por Arjumand Begum. Aquela mulherada toda, em comparação à beleza de Arjumand, para ele, não tinha mais a menor graça. Em sua memória amorosa, somente Arjumand lhe aparecia em uma imagem colorida, as outras, todas as outras, vinham-lhe em branco e preto. Shah Jahan casou com Arjumand e tiveram treze lindos filhos, e eram felizes. Mas, quem já viu tanta felicidade assim durar? Em vindo o décimo quarto filho - ah, infeliz infelicidade! -, Arjumand não resistiu às dores do parto e, partiu. A morte de Arjumand foi também como uma morte para Shah Jahan. De repente, sem aquelas cores todas que só Arjumand tinha, o mundo inteiro ficou cinza, sem graça nenhuma. Era uma sensação sem nome, e os dias passavam assim, sem cor, sem porquês... E foi então que ele, em demonstração do seu amor por ela e para dar algum sentido à sua vida sem Arjumand, decidiu erguer aquela que seria a mais bela de todas as sepulturas, onde a sua amada poderia, para sempre, descansar. Desse modo, e por um escapismo psicológico, ainda estaria ligado a ela, ocupando os seus dias em fazer-lhe a última morada. Mandou trazer os maiores artistas e arquitetos da Pérsia e da Mongólia; comprou os melhores mármores, as mais belas pedras de rubi e de jade. Tudo para Arjumand, porque só ela merecia tanto. O Taj Mahal, para ser erguido, consumiu nada menos que 22 anos, sendo concluído em 1653. Hoje, nele, Shah Jahan descansa ao lado de Arjumand Begum... Alguns afirmam que, ao lado do enorme edifício de mármore branco, Shah Jahan planejava construir outro, de mármore preto, onde o seu corpo deveria descansar – mas isso não é confirmado por todos os que estudam a história da edificação do Taj Mahal. O certo é que, de um modo ou de outro, este era o seu desejo: ele e Arjumand, juntos para sempre, na vida ou na morte. Se, em vida, a morte os separou, agora, na morte, isso não deveria mais ser possível. O Taj Mahal é, para Tagore, “uma lágrima de amor na face do universo”. Eros e Thanatos, inseparáveis.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

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Do final sempre infeliz. No amor romântico, Eros, via de regra, está ligado a Thanatos. A morte, ou o sofrimento (a paixão), é parte essencial daquilo que compõe o amor romântico, e a vida. Sendo querença, o amor é sempre furtivo, dilemático, paradoxal: se ele não há, sofre-se por sua ausência; se , dissolve-se feito nuvem, como quando Orfeu olha pra trás, já na porta de saída do reino de Hades... lá se vai Eurídece, para sempre, como quem levada por poderosas mãos. E aí, novamente, a falta muito mais terrível; e se sofre por “haver” um amor somente enquanto falta, ou memória. Já imaginou outro final para Romeu e Julieta? “E os dois viveram felizes para sempre”. Impossível! Impossível também imaginar uma Sra. Tristão que contrapusesse o dramático fim de Tristão e Isolda, de Wagner; ou uma Sra. Charlotte Werther... Não, não é possível! O trágico é muito mais real; finais felizes só combinam nas histórias infantis que a sua mãe lhe contava, ou naqueles filmezinhos tolos da Disney. “E os dois viveram felizes para sempre...” O pra sempre, sempre acaba. O mundo real é melhor representado aí, na dor, no trágico, no barco que se desprende do porto, no avião que voa longe, levando seus sonhos ingênuos de “felicidade”. Felicidade é uma palavra muito comprida! As “páginas felizes são páginas em branco na história do amor romântico”, dizia Hegel, e com razão. Sem a mesma razão, filósofos, poetas e teólogos se perdem nesse enorme abismo que separa o amor da felicidade: alguns silenciam, outros falam muito, mas dizem pouco ou quase nada; e outros, pior, alimentam a mentira secular de uma felicidade possível mediante o amor, o exercício do “amor ao próximo” (em todos os sentidos). O exercício real (da experiência própria), por fim, é o do amour de soi, e só - mesmo que a moral cristã nos diga, numa pseudo-ortodoxia fantasiada de piedade, mas filistéia, farisaica: “negue-se a si mesmo”, ou “ame o outro como a si mesmo”. Não, não é possível! Além de nós, o Outro ainda é, com todo o amor que lhe tivermos (seja ele qual for) e dedicarmos (do jeito que for), uma extensão de nós mesmos, e o que viermos a amar nele ou nela será tão somente o que julgarmos que nos falta, e/ou que nos completará; no final, e por fim, é sempre o nós que prevalece. Ainda assim, a vida do amante é, sempre, uma vida de chegadas e partidas, de primaveras e invernos, auroras e crespúsculos. “Viver é fácil [isso seria o estágio da primavera amorosa], morrer é quem são elas [o inverno crepuscular]”, dizia Guimarães Rosa. No mais, completa Oscar Wilde: “Um homem pode viver feliz com qualquer mulher, desde que não a ame”. Eros e Thanatos, inseparáveis.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

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Do trágico comum. “O nosso amor puro / pulou o muro / caiu na vida. / Jamais seremos o par / romântico / que outrora fomos”. Trecho de Nada será como antes, poema de Chacal. Às vezes pensamos em prender o amor, como um passarinho numa gaiola; ou pensamos em fazer um muro à sua volta, ou guardá-lo numa redoma de vidro - que nem fazia o Pequeno Príncipe com a sua Rosa. Mas ele sempre escapa por algum lugar, sempre consegue “pular o muro”, evadir-se. O amor, descomedida querença, além de erradio e fujão, se veste do trágico: desejando abraçar o todo - que não pode nunca ser contido -, desespera-se na ciência da sua impossibilidade; do contrário, e se tenta, fragmenta-se, como nuvem no vento, como a flor colhida. Mais do que ninguém, os gregos souberam entender os asteísmos do discurso amoroso. Você, certamente, conhece a história de Eurídice e Orfeu. Filho de Calíope, Orfeu era poeta e músico. Em suas mãos, a lira sossegava a mais feroz das bestas, tão belas eram as canções que ele, dela, arrancava. Como fazem às estrelas de rock hoje, as mulheres também o amavam; as ninfas ficavam embriagadas de desejo. Orfeu, porém, a todas e de todas, mantinha-se indiferente. E foi assim até o dia em que conheceu Eurídice, que lhe arrebatou o coração. Mas Aristeu, criador de abelhas, também amava a belíssima moça. Certo dia, num acesso de loucura e de paixão, lha perseguiu com o fito de tomá-la, possuí-la. Correndo pelo campo, fugindo de Aristeu, Eurídice pisa sobre uma serpente. Ferida na perna, morre aos poucos, sob os efeitos da peçonha da víbora. Desesperado, Orfeu chora a morte do seu único e verdadeiro amor. Nunca sua música foi tão linda, e nem tão triste. Como é preciso a tristeza pra se fazer um bom samba, conforme receita de Vinicius de Moraes e Baden Powell em Samba da bênção - “Mas pra fazer um samba com beleza / É preciso um bocado de tristeza / É preciso um bocado de tristeza / Senão, não se faz um samba não” -, assim também eram as canções do triste Orfeu. Com permissão dos deuses e empunhando a sua lira, ele desce ao reino de Hades em busca de Eurídice. Por efeito de suas hipnóticas canções, consegue comover Cerberus (o cão de duas cabeças que protege a entrada do reino da morte), que o deixa passar; e, ainda mais: consegue comover os deuses, que o recebem e lhe ouvem cantar e contar sua triste história de amor. Estes, como dádiva, prometem entregar Eurídice. Mas fazem uma exigência cruel: Orfeu, até que saia em definitivo do Inferno, não deve olhar para trás, para verificar se, de fato, Eurídice lhe segue. Voltando ao mundo dos vivos, os risos dos demônios o acompanham. Estaria Eurídice atrás de si? Ele se desespera na hipótese de haver sido ludibriado pelos deuses, não obstante ouça as pegadas de Eurídice lhe seguindo. Seriam mesmo as pegadas de Eurídice? Como saber? E é assim que ele, quase às portas do Inferno, vira-se e vê Eurídice olhando-o com amor, e, depois, com uma expressão de tristeza mortal, de desespero inenarrável. Eurídice, imediatamente, transforma-se em sombra... desaparece para sempre. Orfeu tenta retornar ao Hades entoando canções para o sinistro Caronte, o barqueiro que conduz as almas, mas ele não se comove mais. Desolado, vai cantar suas tristezas para as fúrias. Mas as mulheres da Trácia, desesperadas com a indiferença do angustiado cantor, despedaçam-no. Se não podem ter o amor de Orfeu, que outra/s não o tenha/m. “O nosso amor puro / pulou o muro / caiu na vida. / Jamais seremos o par / romântico / que outrora fomos”. Nas verdadeiras histórias de amor não existem finais felizes, acostume-se a isso.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

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Dos amorosos conselhos. “Tudo arredei da vida, em poucos segundos; bastou-me pensar na outra casa, e mais na vida e na cara fresca e lépida de Capitu... Amai, rapazes! e, principalmente, amai as moças lindas e graciosas; elas dão remédio ao mal, aroma ao infecto, trocam a morte pela vida... Amai, rapazes!” Assim termina o capítulo LXXXVI de Dom Casmurro, de Machado de Assis. No que toca ao “amai as moças lindas e graciosas”, vale o que já foi dito em Das pavonices, acima. No texto, o conselho é dado por Bentinho. Ele, voltando da casa da morte (um funeral), pensa na casa da vida (o amor primaveril que está), na casa de Capitu que lhe espera. Não sabe o moço que, também em Capitu, naquela vida toda, naquela exuberância de primavera, fermentava a morte, a sua morte - porque há uma morte em vida, que é quando Deus não responde mais às suas preces, e o céu não mais se abre ao Sol, e fica assim, pesado de nuvens, como em uma pintura de Robert Gorey. Equação medonha: quanto mais se ama, tanto mais se sofre - “não amar” também é semente de sofrimentos vários... não há como fugir da sua própria sombra. Seja como for, e para o que nos interessa aqui, os tormentos do Bentinho são de todos bem conhecidos. Ah, rapazes, moças, velhos!, conselhos de apaixonados de nada valem!

terça-feira, 3 de novembro de 2009

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Das pavonices. O que a cauda do pavão representa para o pavão, para o cortejo da sua fêmea, também a música para os músicos, a pintura para os pintores, as esculturas para os escultores, a poesia para os poetas, e assim por diante, nas artes e nos ofícios, e mesmo na vagabundagem. Tudo no mundo, no final das contas, se resume no violento jogo da Vontade de vida que, para manter-se, lança indivíduos contra indivíduos, unindo-os ou separando-os na permanente guerra em busca dos melhores padrões genéticos, estéticos. Exemplares de boa qualidade geram exemplares ainda melhores - não “perfeitos”, mas aperfeiçoando-se, para que o mais apto sobreviva -, é a regra mais comum dessa biologia amorosa. Afinal, disso tudo, desses “jogos de amor”, ou dessa seleção natural, naturalíssima, dependem as próximas gerações. O “amor” é um artifício da Vontade, e não lhe cabe mais nada a não ser a obediência cega, mesmo que você não admita um mecanismo tão fechado, ou se perceba amando. O amor romântico, como uma sombra deste outro, é a sua sublimação idealística, uma invenção cultural e, pior caso, o desejo humano de transcendência, de encontrar um sentido para os tantos sem-sentidos do mundo, no mundo... o trágico.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

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Da amorosa felicidade [ou Do Bicho de Sete Cabeças]. O amor romântico pode parecer e aparecer, às vezes, como um Bicho de Sete Cabeças. A que fica no centro e que comanda as demais poderia ter, na alegoria, o nome de Felicidade; e teria um excelente nome. Ora, quem não sabe?, aquele que procura pelo amor, procura mesmo é pela Felicidade? A Felicidade é o fim a que tudo se dirige, todas as nossas ações. Santo Agostinho, em A Trindade, por exemplo, faz a seguinte colocação: “Por certo, existe entre os seres vivos dotados de razão tanta harmonia que, ainda estando oculto a um o que o outro quer, há, no entanto, alguns desejos comuns a todos. Havendo um só desejo de alcançar e conservar a felicidade por parte de todos, é de se admirar a variedade de desejos acerca da mesma felicidade. Será falso aquele princípio do qual não duvidou o famoso acadêmico Cícero, o qual, no seu diálogo ‘Hortênsio’, ao querer partir de uma certeza, da qual ninguém duvidasse, coloca como exórdio de seu discurso: ‘Todos certamente querem ser felizes’? Longe de nós afirmar que isso seja falso.” Poetas, filósofos, teólogos, et cetera, todos estão, de algum modo, se esforçando para alcançar essa Felicidade – e, se isso parece muito evidente, é porque, realmente, é. O tema da eudaimonía, ou da “vida feliz”, pode ser examinado sob muitos aspectos, uma vez que, para ele, tal como é o círculo para o seu centro, tudo concorre.
A tradição filosófica grega (socrático-aristotélica), como sabemos, reconhece a sabedoria pela felicidade – não por todo tipo de felicidade, pois que, se o sábio é feliz, não o é de qualquer modo, ou a qualquer preço. Para os gregos, a sabedoria é uma felicidade, e a felicidade é o fim último da filosofia – ou o porquê do filosofar –, e a verdade é o caminho que deve ser trilhado por aqueles que querem chegar a elas. O que isso quer dizer? Quer dizer que se o filósofo tiver que optar entre a verdade e uma felicidade que não seja a felicidade, ele optará sempre pela verdade, por mais que essa lhe seja dolorosa. Assim sendo, é melhor a dor da verdade do que a alegria de uma falsa felicidade. A felicidade platônica é sempre ideal, absoluta e, para tanto, repousa na Verdade, com quem se confunde.
Para Aristóteles, os bens materiais são “vagos” (no sentido de imperfeitos para o alcance da perfeita felicidade) e “podem ser até prejudiciais”, pois, com efeito, “algumas pessoas no passado foram levadas à perdição por sua riqueza”. Se a riqueza pode trazer a infelicidade, a pobreza também. A verdadeira felicidade precisa ser escolhida e acolhida como fim em si mesma. Nas palavras do Estagirita: “Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais, embora as escolhamos por si mesmas (escolhê-las-íamos ainda que nada resultasse delas), escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa das várias formas de excelência, nem, de outro modo geral, por qualquer coisa além dela mesma”. Noutra parte, Aristóteles afirma que “ninguém deseja o que não considera bom”. No final de tudo, todos, por meio de tudo o que fazem, têm um desejo comum: serem felizes. A felicidade é, pois, o fim último de todas as ações.
Elevando a felicidade ao nível do sentimento oceânico, Agostinho, entende que ela só pode existir no encontro do indivíduo temporal com o Divino, o eterno atemporal. A felicidade real é uma esperança depositada para a eternidade. Daí, nas Confissões, o Bispo de Hipona dizer: “Criaste-nos para Ti, e o nosso coração estará inquieto enquanto não repousar em Ti”. Que é estar inquieto (inquietum) senão estar intranqüilo, apreensivo? Os prazeres sensíveis, em virtude de sua fluidez, não podem, portanto, realizar aquilo que pretende ser, ou pretende-se, eterno, guardado na eternidade. “Todo prazer quer eternidade”, dizia Nietzsche, por boca de seu Zaratustra, “quer eternidade profunda, oh, tão profunda!” No Diálogo sobre a vida feliz, Agostinho diz que “ninguém pode ser feliz se não tiver o que quer, mas também não pode ser feliz quem tem tudo o que quer”, pois, continua ele, “quem quer coisas más, ainda que as tenha é infeliz”. Como se vê, o tema da felicidade escapa ao despretensioso exame, que é o que tenho pretendido fazer, até aqui, em relação ao amor romântico. Por hora, vale o que foi dito por Pascal: “Todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar...” Lembra-se do Werther? Um tiro na cabeça parece ser, pra ele, a única porta contra a infelicidade de ter tão somente a impotência não poder ter o amor da doce e meiga Charlotte. O início da felicidade estava, para Werther, no fim do sofrimento. Espero, nisso tudo, ter justificado a posição a que elevei a felicidade em relação ao amor, Bicho de Sete Cabeças, Bicho Papão.
Outra cabeça, a mais comum a todos os indivíduos, chama-se Desejo. “Não quero faca nem queijo, quero é a fome”, diz a Adélia. E diz bem. De nada adianta a faca e o queijo se não houver a fome. O desejo é onde tudo começa. E o desejo tem, de modo explícito, uma única fonte: o corpo com todos os seus sentidos – em especial o da visão. Ver é desejar. E os desejos podem ser medidos segundo os padrões das convenções, das éticas, das religiões: “São os olhos a lâmpada do corpo”. Os desejos também podem, às vezes, ser medidos pela leveza da poesia que não exige o rigor científico. Em A insustentável leveza do ser, Milan Kundera diz que “o amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no memento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética”. É assim que, agora nas palavras de Novalis, “cada objeto amado é o centro de um paraíso”. O desejo é o que lança o desejante ao seu objeto - que é, para ele, caso realizado, um paraíso. Mas...
Acontece que, movido pelo desejo, o indivíduo lança-se, como que ascendendo por uma escada, à segunda cabeça do nosso monstro alegórico: a Esperança. E o que é a esperança? E o desejo não realizado e, todavia, num futuro qualquer, crido como possível. Werther desejava Charlotte com todas as suas forças. Um dia, numa leve e breve contradança, toca-lhe os braços, as mãos, sente seu corpo, fita-lhe os olhos. “Desde esse momento”, diz ele em uma das suas cartas, “Sol, Lua, estrelas podem seguir tranqüilamente a sua órbita, que para mim já não há mais dia nem noite, e o mundo inteiro dissipou-se à minha volta”. Esse êxtase romântico, quase místico, banha-se na substância do Absoluto, dissolve-se nele, espera-o... parusia da esperança, Romantismo. O desejo, porém, existe apenas enquanto desejo não realizado, logo, esperança. No amor romântico, ele se consuma no ato sexual. O ato sexual é a degola do desejo. Werther, todavia, não pode desejar Charlotte porque, segundo os seus valores, não pode possuí-la, pois ela é casada com Albert, amigo seu. Eis o dilema: se o desejo antecede a esperança, prefaciando-a, só pode existir em função dela; ela, realizando-se, destrói-lhe. O contrário, disso, equivale à tolice do sonho vão, ou à embriaguez dos sentidos. E assim chegamos à fronteira que separa o desejo e a esperança da felicidade, é o fim a que se destinam: o Desencanto. Todo desencanto é um lampejo da razão, da razoabilidade.
No caso de Werther, a razão lhe diz: “Você não pode tê-la. Ela já é casada e, como você sabe, isso é errado”. Werther, ouvindo a voz da razão, tenta anular o seu desejo. Antes, quando pensara: “Sol, Lua, estrelas podem seguir tranqüilamente a sua órbita, que para mim já não há mais dia nem noite, e o mundo inteiro dissipou-se à minha volta”, estava fora de si; só podia estar. Mas, como se vive numa razão tão fria que, por convenções, procura anular um tão forte desejo, tolhendo-lhe qualquer esperança? É assim que a felicidade fica sempre entre a loucura e a razão. Caso semelhante de tal loucura é o que vemos em Sonho proibido (Storia di una capinera, 1993), filme de Franco Zeffirelli. Na Sicília de 1854, em meio a uma epidemia da Peste Negra, Maria e Nino se apaixonam. O problema é que ela é uma noviça, ingênua e romântica, que foi internada no convento aos sete anos, logo após a morte da mãe - porque a madrasta, Matilda, queria mantê-la longe dos seus filhos naturais. Em um passeio, Maria conhece o jovem advogado Nino e logo entra em um conflito interno por ter caído em tentação. Nino acaba se casando com a sua meio-irmã Giuditta. O amor proibido, tanto pelos seus votos religiosos quanto pelo fato de o rapaz ser marido da sua irmã, levam Maria à loucura, como ocorrera à Irmã Agatha, que, segundo diziam no convento, enlouquecera por amar e por não poder possuir o objeto do seu amor.
Em todos esses casos, a razão funciona como um freio. Mas, mesmo essa razão pode levar o indivíduo à loucura. O certo mesmo é que, nessa ascese do desejo à felicidade, a única coisa que não se atinge mesmo é a bendita Felicidade. Alguns, ignorando a razão, pensando alcançar a felicidade, chegam muito mais apressadamente à Loucura, que é a quinta cabeça do nosso monstro. Que é a loucura? É a ausência de valores, medidas. Louco é aquele que não vê outros valores que não os dele, que ele defende com seus. Acontece que, no mundo, que existe como uma comunidade – e a comunidade só existe porque os indivíduos que a compõem aceitam se submeter às regras, aos padrões de juízos e de valores que devem ser comuns para todos -, não é permitido, por exemplo, que cada indivíduo tenha a sua própria lei, ou uma autonomia absoluta. Se tivessem, seria a barbárie. No processo de humanização, tais valores são incutidos como leis, desde que o sujeito ainda nem se sabe como pessoa, indivíduo. Desobedecer a leis de tanto assentadas, sem uma justa justificativa, requer punições, que podem ser várias: exclusão do grupo, advertências morais, et ceteras variados. Não efetivar o desejo, porém, equivale ao Fracasso (ou à Decepção), a outra cabeça do nosso monstro. A sensação de fracasso – que é muito semelhante à de rejeição – é horrível, angustiante, quase uma morte, dependendo do que estava em jogo. Por isso que, por alguns fracassos, e contra a tal sensação, a morte é buscada como saída.
No final de tudo, por um ou outro caminho, regula atrox, está a Dor, penosa e última das sete cabeças do monstro que chamamos de “amor romântico” – mas ela bem pode ser aquela que fica entre as seis, no lugar da Felicidade. Talvez seja por isso que tantos digam que “o amor é uma dor”, posto que a dor, em relação ao amor, representa sempre o seu produto final.