quarta-feira, 30 de setembro de 2009

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Das frases feitas. O rapaz, apaixonado, diz à namorada, pelo telefone: “O caminho que me leva à tua casa tem a distância de uma eternidade”. Tudo existe no mundo para caber num poema. Disso sabem os que se apaixonam, os que adoecem. Mas não há poema que resista à realidade dos dias que passam, dos dias que sempre vêm. O mundo real é cheio de vazios invisíveis a olho nu, como as partes mínimas do átomo. Tempo, o melhor remédio.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

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Da solidão. “Solidão é o caminho para o qual o destino quer atrair os homens. Solidão é o caminho que o homem mais teme. Lá estão os terrores, as serpentes e sapos. Lá nos espreita o terrível”. Palavras de Hermann Hesse, em Sobre a guerra e a paz. Mesmo os peregrinos e os eremitas, que aparentemente buscam a solidão, na verdade, fogem dela. É que, indo ao deserto – a procura de Deus, ou de si mesmos –, eles procuram por aquilo que é maior do que eles mesmos, do que todas as multidões. E o que é mais, para você, do que você mesmo? Depois de você, e para quem tem fé, só Deus. Aí cabem todas as multidões. O amor à solidão é, assim, um contra-senso
. No final, todo mundo está só. Os terrores, as serpentes, os sapos e o terrível são inevitáveis.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

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Das aspirações cognitivas. Há, na moderna filosofia da lógica, uma acirrada polêmica sobre os pensadores chamados “portadores da verdade”; ou seja: se as sentenças – ou enunciados, ou proposições – nas quais eles se baseiam são ou não são empiricamente válidas. O termo “empirismo lógico” foi dado ao grupo de epistemólogos do Círculo de Viena. Sob a liderança de Moritz Schlick, tais pensadores eram fortemente influenciados pelas filosofias de Bertrand Russell e Ludvig Wittgenstein. No grupo, Rudulf Carnap ganhou destaque como um dos seus membros mais eminentes.
De Carnap, aqui, nos interessa a sua análise do significado de certas palavras que, adotadas pelos “empiristas clássicos”, não têm valor de verdade. O empirismo lógico procurou, sob muitos aspectos, distinguir-se do empirismo clássico de John Locke e de David Hume, por exemplo. Foi assim que os empiristas lógicos procuraram interpretar as coisas que podem ser conhecidas não somente em termos lingüísticos, ou seja, falando não de pensamentos, de juízos, de crenças, et cetera, termos ligados ao jargão psicológico que “tradicionalmente a teoria do conhecimento dos filósofos modernos empregou”, diz Luiz H. de A. Dutra. Num texto de 1959, intitulado: The elimination of metaphysics through logical analysis of language, Carnap diz que, se dissermos: “César é um número primo”, a sentença estará de acordo com as nossas regras gramaticais, mas é destituída de sentido lógico – uma vez que o predicado “número primo” não pode ser atribuído a pessoas, e César é, até onde consta, o nome de uma pessoa. Partindo daí, Carnap se opõe à linguagem dos metafísicos, linguagem essa que é, em seu sentido mais elevado, destituída de sentido – conforme ocorre às palavras “nada”, ou “nadificar”, bastante empregadas na filosofia de Martin Heidegger.
Carnap entende que, partindo da partícula de negação (“não”), Heidegger chega ao substantivo “nada” e, desse, ao verbo “nadificar”, empregando-o em relação à “chuva”, ao “chover”. Acontece que a chuva é algo do mundo extralingüístico – como também o “chover” –; ao contrário do “nada” ou do “nadificar”, que não correspondem a coisa alguma.
Para Carnap, os metafísicos são vítimas de um certo “enfeitiçamento da linguagem”. É esse enfeitiçamento que os leva a tomar, como existentes (ou reais), coisas que, não correspondendo a nada, correspondem a um termo da linguagem. É assim que, por exemplo, alguns pensadores falam sobre “princípio”, “ser”, “Absoluto”, “Deus” ou “amor”... Termos que se encontram, todos, dentro dessa classificação – ou seja: não correspondem a coisa alguma e, assim sendo, são destituídos de significado. Mas, antes que os teólogos condenem Carnap aos “quintos dos infernos”, vejamos o que Dutra nos diz: “Se Carnap entende que tais termos são destituídos de significado porque não correspondem a coisa alguma, isso mostra que ele entende o significado de um termo como aquele objeto, ou aquela coisa à qual o termo corresponde, ou aquela coisa denotada pelo termo”. A diferença entre as palavras “amor” (não-significativa) e “pudim de chocolate” (significativa), portanto, reside somente no fato de que o pudim de chocolate é um dado a posteriori, enquanto amor é uma fala a priori – embora Carnap não empregue tais termos.
“Deus”, “amor”, et cetera, são termos metafísicos que podem possuir um significado emotivo, podendo ser expressos mediante a atitude poética de quem neles acredita. Decorre daí que, a teologia, pode ser, no máximo e por respeito aos teólogos sérios, uma teopoesia; uma fala do que tem fé, e ama o objeto da sua fé - o Grande Desconhecido. A diferença entre os poetas e os teólogos está no fato de que, os poetas, não têm aspirações cognitivas, enquanto os teólogos, sim. Mas, para Carnap, a metafísica (ou a teologia) não tem significado cognitivo. O amor, como Deus, cabe apenas e tão somente na poesia, na linguagem poética.

sábado, 26 de setembro de 2009

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Dos ciúmes e do sentimento de posse. O romântico, fatalista, pensa depositar no outro tudo o que é seu; inclusive a sua própria vida. Na verdade, deseja mesmo é que o contrário seja feito. Esse amor, como aquele que aparece na dialética do desejo, na Fenomenologia do Espírito, de Hegel (cf. 2, 18), não deseja apenas o outro, deseja o desejo do outro. Li, não sei onde, que o casamento de Nicolas Cage acabou por causa de uma exigência tola que sua mulher, Lisa Marie Presley (filha do Elvis), lhe fizera: que ele se livrasse de suas coleções de HQs (revistas de histórias em quadrinhos). “Ela não queria somente o meu corpo”, disse ele, “queria também a minha alma”.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

21
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Dos espinhos e da convivência pacífica. “Num dia frio de inverno, os porcos-espinhos se aconchegaram uns aos outros, para ficarem quentes e não morrerem de frio; mas logo sentiram as picadelas dos outros e se afastaram. A necessidade de calor voltou a aproximá-los, mas de novo os espinhos os separaram. Aproximaram-se e afastaram-se à medida do seu desconforto, até que encontraram a distância ideal que lhes fornecia o máximo de calor e o mínimo de sofrimento”. Receita de Schopenhauer para a permanência dos relacionamentos amorosos.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

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Da eterna guerra dos sexos. Há uma música do paraense Pinduca (Aurino Quirino Gonçalves), aclamado como “o rei do carimbó”, que eleva a mulher a um nível de astúcia e sagacidade que torna-a capaz de enganar o próprio Diabo. Diz assim: “O rico e o pobre são duas pessoas. / O soldado protege os dois, / O operário trabalha pelos três, / O vagabundo come pelos quatro, / O advogado defende os cinco, / O confessor condena os seis, / O médico examina os sete, / O coveiro enterra os oito, / O Diabo carrega os nove / E a mulher engana os dez”. O enganar ou o ser enganado fazem parte de um jogo sentimental complicadíssimo, em que um ou outro é ativo ou passivo, a depender da situação (Situation) - termo que, aqui, e conforme introduzido por Jaspers, tem haver com a relação do homem com o mundo dado, sentido, na medida em que este o limita, condiciona e, ao mesmo tempo, fundamenta e determina as suas possibilidades. Conforme consta na sua Psychologie der Weltanschauungen: “A situação externa, apesar de tão mutável e diferente, segundo o homem ao qual se aplica, tem a seguinte característica típica: para todos tem duas faces, incita e obsta, inevitavelmente limita e destrói, é ambígua e insegura”. É que, no caso amoroso, o inconsciente de cada um faz com que a procura do pai (ou da mãe) ideal para os seus filhos – mesmo que isso seja a última coisa que passe por sua cabeça – vacile ante as opções, mas o freio moral limita os caminhos dessa procura. O único freio que há contra esse carnaval é a moral secular (a cristã, principalmente), a idéia de moral, ou sua imposição social, consensual; o homem e a mulher não são animais de um parceiro só, como bem poucos bichos são. Mas, também essa moral - e mesmo a que alguns mencionam como “lei moral interior” (Lewis), ou moral autônoma (Kant), não cristã (da razão somente, pura) - é um mecanismo natural da Vontade, para que haja algum equilíbrio e, assim, sejam assegurados os meios de seus genitores, gerados os filhos, somarem forças para criá-los e, neles, por meio deles, manterem-se como são, mas como “cópias melhoradas” (cf. 1, 38). Ainda assim, e principalmente antes da gestação, a natureza joga indivíduos contra indivíduos na seleção do mais apto a gerar filhos perfeitos, saudáveis e aptos a continuarem no jogo. Daí que as mulheres não são “amigas dos homens”, e vice-versa, nem podem sê-lo – pois que o jogo precisa do rival, aquele ou aquela a quem se deve derrotar. Derrotar = subjugar pelo sexo; a violência da libido, do coito - e não por acaso se fale, com relação ao objeto amado, em conquista. Daí que, por vingança ou jocosidade, nem o Diabo, n’O rico e o pobre, do Pinduca, escapa da astúcia feminina. Também a sabedoria popular reconhece nos homens essa imagem de capeta, trovando-os de modo análogo à idéia do próprio Coisa-Ruim: “Que os homens são uns diabos / não há mulher que o negue. / Mas todas elas procuram / um diabo que as carregue”, diz uma cantiga popular de Pernambuco. A guerra dos sexos não acaba nunca porque, no seu âmago, na sua essência, está a sobrevivência da espécie e a procura pelo melhor para o futuro – que são os filhos.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

19
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Da inautenticidade. “Cada um é o outro, e ninguém e si mesmo”; dito por Heidegger, tratando da inautenticidade. Isso resume tudo o que foi dito em “Da dialética dos desejos”.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

18
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Da dialética dos desejos. Há quem pense que a sua felicidade está na satisfação dos seus desejos. Ledo engano! Acontece que, na maioria das vezes, aquilo que dizemos ser o nosso desejo é, na verdade, o desejo do Outro – isto é: queremos o que o Outro tem, o que o Outro quer; o Outro é, para nós, espelho; nos vemos com os olhos dele (Sartre). Quem trata sobre isso é Hegel, na famosa passagem sobre a “dialética do senhorio e da servidão”, na Phänomenologie des Geistes [Fenomenologia do Espírito], de 1807. No referido texto, Hegel diz que, grosso modo, os nossos desejos são adquiridos com base (ou imitados) nos desejos dos Outros. Quando queremos o que o Outro também quer, fazemos assim porque lhe seguimos em seu desejar - Desejo, que, ligado à Vontade (Schopenhauer), aparece em Hegel como Geistes, Espírito. Assim é “a experiência do que é o Espírito, essa substância absoluta que, na liberdade acabada e na independência da sua oposição, a saber, de diversas consciências-de-si que são para-si, é a unidade das mesmas. Eu que é Nós; e Nós que é Eu”. Isso parece contradizer o discurso do Mercado (e da Indústria Cultural) que fala das pessoas como “personalidades únicas”, “originais”: “Você é o que você usa!” Se assim fosse, então os objetos individuais de uma pessoa diriam o que ela é mesmo. Mas você sabe que isso não funciona bem assim. O que desejamos não é tão original, nem tão pessoal; as tendências da moda (músicas, roupas, livros, programas de TV, et cetera) dizem isso – ou o discurso “isolado” das pessoas que tentam driblar a sua ditadura. De acordo com Hegel, as pessoas, na verdade, a partir do que “são”, ou daquilo que vestem (ou dizem), querem mesmo é que os outros lhes aceitem, lhes admirem pelo fato de elas quererem o mesmo que todos querem. É assim também nos atores sociais, nas agremiações: partidos políticos, times de futebol, bandas de rock, et cetera. Não se deseja o objeto do Outro – ou que o Outro deseje o Seu objeto - pelo objeto mesmo, mas pelo que ele representa, propicia: a aceitação no grupo. No mais, é como Bosch, n’A filosofia e a felicidade, afirma: “[...] meu verdadeiro desejo é o desejo do amor de outrem”.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

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Do “amor feinho”. Quem discorre sobre o “amor feinho” é Adélia Prado, no livro Bagagem, de 1976, sua estréia poética, encorajada por Drummond: “Eu quero amor feinho. / Amor feinho não olha um pro outro. / Uma vez encontrado é igual fé, / não teologa mais”. O amor feinho é, para Adélia, amor que descansa no encontro do Outro, onde aquieta-se, não querendo, do/no outro, mais do que ele (qual “ele”?) mesmo, tal qual é: com seus defeitos, suas virtudes, o que seja, enfim. Daí que, continuando, Adélia esclarece: “Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo / e filhos tem os quantos haja. / Tudo que não fala, faz. / Planta beijo de três cores ao redor da casa / e saudade roxa e branca, / da comum e da dobrada”. A essa altura você já deve ter percebido que a poesia do amor feinho adquire uma atmosfera metafísica – coisa muito comum, em se tratando de um poema da Adélia –, impenetrável às explicações literárias e a qualquer hermenêutica que se leve a sério e queria mais do que as metáforas, as analogias. Na verdade, mais do que entender a poesia, deve-se senti-la, como uma experiência religiosa, mística, sem as interpretações fechadas do mundo real. Por isso que, também o amor feinho, como a poesia ou a fé, não “teologa mais”. Sentido/sentimento, não cérebro. “Amor feinho”, diz Adélia, “é bom porque não fica velho. / Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é: / eu sou homem e você mulher. / Amor feinho não tem ilusão, / o que ele tem é esperança: / eu quero amor feinho.” Mas, essa esperança, não é também Desejo? desejo do mesmo, e que o mesmo fosse ainda? Ilusão - porque nada nunca é o que é para sempre. A não ser que o amor feinho seja um amor sem desejo, desesperado (i.e., que nada mais espera); mas, amor sem desejo, não é amor. Isso implica que, a reboque, não poderia o amor, mesmo o feinho, esperar nada, querer nada mais do que o que se tem, se é... E mesmo isso, grosso modo, já seria um tipo de querer: querer o não-querer mais que querer. E assim, de um modo ou de outro, parece que o amor, seja ele qual for, sempre esbarra em antinomias, em paradoxos desconcertantes. Retirando o lado natural do amor, a Vontade - aquilo que, no inconsciente humano ou no instinto das bestas, é desejo de permanência, maquiado pelo idealismo romântico -, o amor também é fé, é poesia: não teologa, não filosofa... Bonito, porém falso. Uma droga!

domingo, 20 de setembro de 2009

16
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Das loucuras. O amor romântico, ao mesmo tempo em que alguns o tem como didático, enobrecedor, subjetivo e nivelado à Perfeição (cf. 2, 6), é também considerado, por outros, nocivo e enlouquecedor. Ah, é! Inúmeras são as histórias de suicídio elencadas no lastro do amor romântico, da malfadada empreitada de um que sempre esbarra no Outro, objeto tão “seu”, e tão não – e que, justamente por isso, fere os envolvidos, como sal em corte de faca. Loucura, loucura! Por cima, menciono Werther, Romeu, Páris (irmão de Heitor), Dido, Tereu, Fedra, Pedro Abelardo, Ismália... Ah, você não sabe quem é Ismália! Ismália é a personagem (e título) de um poema de Alphonsus de Guimaraens: “Quando Ismália enlouqueceu, / Pôs-se na torre a sonhar... / Viu uma lua no céu, / Viu outra lua no mar. / No sonho em que se perdeu, / Banhou-se toda em luar... / Queria subir ao céu, / Queria descer ao mar... / Como um anjo pendeu / As asas para voar... / Queria a lua do céu, / Queria a lua do mar... / As asas que Deus lhe deu / Ruflaram de par em par... / Sua alma subiu ao céu, / Seu corpo desceu ao mar...” L’amour est un oiseau rebelled; l’amour est enfant de bohème. Se é! Georges Bizet, com a sua Carmen, sabe-o bem. L’amour, ui! Perigon.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

15
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Das canções de Beuern. Os clerici vagi (clérigos vagantes), assim chamados, foram padres que, desempregados, entre os séculos XI e XII, principalmente na França e na Alemanha, utilizaram seus talentos literários para compor as canções de Beuern (as Carmina Burana – como são mais conhecidas), que são canções jocosas, satíricas e, mesmo, eróticas. Na luta entre a carne e o espírito, muitas vezes é a carne quem triunfa. Nas palavras de Maurice van Woensel: “Boa parte da poesia profana medieval foi escrita pelos clérigos desempregados da época”. Também, pudera: “Havia mais clérigos do que prebendas, e constituiu-se afinal um ‘proletariado latino’: os ‘clerici vagi’. [...] Entre eles nasceu uma poesia antiascética, pendant estranho da hinografia”, afirma O. M. Carpeaux em sua História da literatura ocidental. Mais adiante, Carpeaux acrescenta que muitos estudantes da época, que viajavam de uma escola à outra, se juntavam a “outros clérigos fugitivos da disciplina rigorosa dos conventos”, e nessa liberdade, longe do claustro, e mesmo nele, “se perdiam na vida devassa e até criminosa das estradas reais, outros na anarquia moral das grandes cidades como Paris”. É que, além do amor a Deus (metafísico), do qual nada sabiam além do vacilante exercício da fé, os padres também – e principalmente esses, desempregados e desesperados – conheciam o amor romântico, erótico; aliás, o único que realmente conheciam - pois, para Eros, basta estar vivo. Os hinos das canções de Beuern celebram esse amor, sob muitos aspectos. No poema 87, por exemplo, consta que “O Amor em todos manda, / corações abranda, / em toda parte anda: / Amor suave, tal o mel, / ou amargo, como fel. / O cego Amor / desconhece pudor: / ora é gelo, ora um forno, / hora é morno, / é valente, também poltrão, / leal, comete traição”. Os clerici vagi também foram chamados de “goliardos”; alcunha que ganharam a partir do apelido “Golias”, dado ao famoso Pedro Abelardo – infeliz amante de Heloísa, e por quem foi castrado – que, por esse tempo, além de ser afamado por suas aulas de filosofia, também o era por compor poemas românticos. Aqueles que, por influência de Abelardo ou de Eros, compunham tais canções, “subversivas”, exaltando o amor terreno, foram rotulados como pertencentes à “família de Golias”, conforme consta nos “sagrados e oficiais documentos da Santa Igreja”. O amor, seja ele qual for, conforme o testemunho da vasta literatura, está sempre envolto em confusões dogmáticas e subversivas.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

14
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Dos estragos do amor errante. O amor é sempre “amor por algo”. Não se ama o vazio (ou o “Nada”), por exemplo – e mesmo que alguém afirme amá-lo, numa contestação infundada, por ser “do contra”, como dizemos, ainda assim o seu amor pelo “nada” será, por assim dizer, um amor por algo. Dizer o Nada é, numa ontologia fundamental heideggeriana, dizer o Ser do Não-ser; algo, portanto. O “Nada”, dizível, é somente enquanto conceito que denota a ausência de... Não é não-ser, realmente; pois que, senão, também não dizível. A simples menção desse “algo” é a afirmação do Ser do mesmo, quer de modo positivo ou negativo. Assim também são os discursos sobre o amor romântico. Por isso que o amor pode, entre dois amantes, fazer a sua morada no coração de um só. Neste, amor demais (= paixão) é dor demais. Há quem queira fazer distinções conceituais e sutis entre passio e amor, mas a passio é, tão somente, um sintoma da Vontade, e o amor, enquanto termo que nomeia um sentimento, um nome dessa máscara, uma invenção do engenho humano e da própria Vontade que, nos homens, diferentemente dos animais, vai além do instinto... instituição. Estar apaixonado, ou in love (amando), é achar-se doente. E isso, essa máscara e essa doença dos sentidos, basta estar vivo, acontece muito freqüentemente. Freqüentemente alguém diz ter amor por outro alguém que, indiferente a esse apelo da paixão do Outro que procura o seu objeto, diz que seu coração – sua casa – está fechado; freqüentemente alguém chora quando vê o seu amor, como um inquilino pobre, receber ordem de despejo; freqüentemente alguém escreve um poema ou uma canção triste, triste tão triste que pode fazer Orfeu chorar - ou rir da cena ridícula -; freqüentemente uma noite pode parecer mais longa, mais fria e mais escura do que todas as outras noites juntas; e o mundo, uma vez tão sólido, parece ruir sobre uma velha fotografia, enquanto uma estrela no céu se apaga, imersa na escuridão... DOENÇA. “Amor é sofrimento, é descontentamento; é mais que violento, o amor”, diz a Adélia. É, o amor romântico também é erradio; nômade por vocação. Confundido (co-fundido) com a paixão, desvanece – paixão é fogo (“O amor é fogo...”, diz Camões, plagiando Petrarca), fogo que apaga logo –, e não há lenha que lhe baste. Quem sabe disso é quem já lhe deu abrigo e o viu partir rumo ao horizonte desconhecido, sem bilhete de adeus, sem justa justificativa. O amor romântico, coisa mais que horrorosa, nunca parte sem estragos: ele sempre parte o coração, seja o de quem vai ou o de quem fica; ou de ambos.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

13
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Da amorosa valoração. De acordo com o Mário Quintana: “Quem ama inventa as coisas a que ama”. Coisa que Comte-Sponville, relacionando Spinosa a Cristo, ou o inverso disso, concorda plenamente: “Os mestres nos dizem que é necessário começar por amar os que são amáveis (nossos amigos), mas que a verdade verdadeira é que não é porque as pessoas são amáveis que temos de amá-las; ao contrário, é porque você as ama que elas são, para você, amáveis. É onde Jesus e Spinosa estão mais próximos: não é o valor do objeto amado que governa ou justifica o amor; é o amor que dá valor a seu objeto. [...] O amor cria o valor, muito mais do que depende do valor”. Mais que isso, só a constatação do óbvio: aquele que ama, ama o valor do objeto amado, mesmo que desconheça qual valor é esse. Assim, quando o Cristo pergunta a Pedro: “Pedro, tu me amas?”, e Pedro diz: “Sim, Senhor; amo-te”, o Cristo não demora a dizer: “Apascenta as minhas ovelhas”. O apascentar as ovelhas, de Pedro, em tese, é feito por amor ao Cristo, e não exatamente pelas ovelhas. Mas o Cristo, sendo reconhecido como Deus e Senhor, e exigindo o esforço do servo, dá coerência e respaldo à interpretação mais crua, mais real, porém. O esforço, o valor do esforço, tendo a marca do serviço, espera por uma recompensa: a salvação eterna; a sua salvação, Pedro. Assim, embora o Cristo possa amar a Pedro com o ágape, é com o stergein que Pedro amará o Cristo. E como poderia ser diferente? O amor, meus caros, nunca é sem um interesse próprio; o que ama, afinal, mesmo que diga amar o Outro – ou a Deus –, é a si mesmo, e só, que ama: amour de soi.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

12
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Do tempo e da eternidade (2). Na teoria da relatividade, de Einstein, o espaço é curvo e, assim, a menor distância entre dois pontos não é, como todo mundo aprende em geometria espacial básica, uma reta. Nada é reto, por fim; nada é preto no branco, afinal. Da física, porém, fiquemos por aqui. Avançaremos, no entanto, a uma parte menos complicada, mantendo apenas a “idéia da relatividade”. Da relatividade...
Ao maratonista que ficou dois segundos atrás daquele que chegou primeiro à reta, por exemplo, dois segundos é muito tempo; para o menino que passou toda a manhã construindo uma pipa, brincar com ela por uma tarde inteira é pouco tempo. Acontece que, nos relacionamentos amorosos, o tempo também pode ser bem relativo. Apaixonado, o sujeito acha pouco todo o tempo que fica ao lado da mulher amada; foi-se a paixão, não suporta mais a presença dela – ou suporta, literalmente, como no caso de Walter em relação à Marjorie, em Point counter point, de Aldous Huxley (cf. 1, 35). As horas ao telefone, para os namorados, simplesmente não existem. Depois de casados, três minutos bastam: “Diz logo o que tu quer, criatura!”. Coisa complicada, o tempo. Santo Agostinho, a propósito, no Livro XI das Confissões, escreve: “Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? Que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.” Viagem psicológica das mais viajosas. Parece que podemos resumir tudo o que foi dito, sem cair num reducionismo pueril, assim: tempo é memória, experiência e expectativa. “O tempo não pára! Só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo”, diz o Quintana. Saudade é sentida no presente, e aquele ou aquela que a sente não pensa em guardá-la para o futuro - a não ser que a saudade seja a única ponte entre o/a que ama e o objeto amado, como a mulher que arruma o quarto do filho morto (Chico). Presente, tudo. Enfim: do ontem, não temos mais do que a memória; do futuro, nada além da expectativa e da sua absoluta incerteza; tudo o que temos, portanto, é o presente... “Presente”, “dádiva”; aproveitemo-lo bem.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

11
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Do tempo e da eternidade. “Porque o tempo é uma invenção da morte: / não conhece a vida – a verdadeira – / em que basta um momento de poesia / para nos dar a eternidade inteira” – dito pelo Mário Quintana. O amor romântico - que confundimos (co-fundimos) aqui com paixão, com passio (o que se sente, se sofre) -, sendo temporal, sonha com eternidades, e propõe-se alcançá-la mediante o thauma (o espanto, a perplexidade) poético; mas essa metafísica, esse salto ontológico é dado apenas a priori, por meio de concessões do discurso filosófico mais elementar, da linguagem simbólica, das metáforas e das analogias. Santo Agostinho, nas Confissões, e para efeito de resumo nosso, explica que o tempo (tempus) é a sucessão do passado, do presente e do futuro. O passado, todavia, não é, uma vez que já não é; o futuro, também não é, uma vez que ainda não é. Assim, conclui, resta-nos o presente, o já agora mesmo. No entanto, caso o presente permanecesse presente estático e não dinâmico, não seria o tempo, mas uma falsa eternidade, como o rosto de uma moça numa velha foto, “de modo que o que nos autoriza a afirmar que o tempo existe é o fato de que ele tende a não mais existir”, conclui o Hiponense. Dinamicismo, devir; mesmo a foto envelhece, e o rosto da moça, amarela - embora sem as rugas. Mas, talvez, possamos ir pelo caminho contrário; pelo caminho que sugere que o presente permanece pré-sente e é, conseqüentemente, o mesmo que eternidade. “Ah!, mas o momento em que eu comecei a ler esse texto é, agora, passado”, alguém poderia dizer. Exatamente! Mas quando você começou a ler este texto o presente era presente e, agora mesmo, ainda o é. O presente é sempre presente, “de modo que a única coisa que nos autoriza a afirmar que o tempo é, é que ele não cessa de se manter”, diz Comte-Sponville. E diz ainda que é essa permanência do tempo que Spinosa chama de duração – que não é o mesmo que a “soma do passado mais o futuro, que só têm uma existência imaginária, mas a continuação indefinida de uma existência”, ou, em outras palavras, a perduração do presente. O passado permanece, no presente, enquanto memória; e o futuro, enquanto perspectiva – ambos, porém, inexistem sem que sejam e estejam, eles mesmos, no presente, pré-sente. Se você leu esse texto em três minutos, você teve a experiência de três minutos de presente, ou três minutos de eternidade – como na experiência poética do Quintana. Ora, que dizemos com “esperar a eternidade”? Já estamos nela. E é por isso que todo amor temporal é também, por esse viés, um amor eterno; “eterno enquanto dura” – tal no poema do Vinícius.

domingo, 13 de setembro de 2009

10
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Da palavra e do silêncio. Cheio de onda, Rubem Alves conta de uma mulher que, tendo perdido um seio, chorava abraçada ao marido, “sentindo-se mutilada na sua feminilidade e beleza”. Será que o marido ainda a amaria assim? Mas o marido abraça a mulher e, tendo-a colada a si, peito no peito, diz: “De agora em diante, ao abraçar você, o meu peito estará mais perto do seu coração”. [Pausa dramática]. É, às vezes a melhor palavra é o silêncio.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

9
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Da ternura. Foi Antônio Rezende quem, à teoria de Freud sobre o desenvolvimento da libido, sugeriu que se acrescentasse a “fase da ternura”. É que o Antônio Rezende, psicanalista, entende que, além da fase oral - que é aquela que inicialmente experimentamos -, da fase anal e da fase genital, que respondem pelo completo desenvolvimento dos nossos desejos sexuais (conforme a classificação freudiana), há uma fase que responde quando os genitais param de responder aos estímulos, quando a libido se vai; trata-se da fase da ternura. Não mais tendo libido, os velhos têm a ternura. O mesmo é sustentado por Rubem Alves, que diz haver “uma diferença fundamental entre a fase da ternura e as fases que a antecedem. Nas fases que a antecedem, a libido busca prazer. Na fase da ternura, ele procura a alegria”. E assim, como num poema de T. S. Eliot, voltamos sempre a este começo: “E o fim de todas as nossas explorações será chegar ao lugar de onde saímos e conhecê-lo então pela primeira vez”. A alegria, ou a felicidade, foi, aos pensadores que antecederam Agostinho e Kant, um proto-imperativo categórico. Nenhuma alegria será verdadeira, no entanto – e aí caímos na “doutrina” da ternura –, se não for como a alegria de uma criança: gratuita. No fim, quando os adultos procuram pela alegria ou pela felicidade, é pela criança que, neles, dentro deles, há muito se perdeu.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

8
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Dos saltos ontológicos. Em A Trindade, livro escrito entre 399 e 419, por Agostinho de Hipona, o amor – qualquer que seja ele - aparece como substrato menor do Amor maior, Absoluto. “O amor”, diz o Hiponense, “porém, supõe alguém que ame e alguém que seja amado com amor. Assim, encontram-se três realidades: o que ama, o que é amado e o mesmo amor. O que é, portanto, o amor, senão uma certa vida que enlaça dois seres, ou tenta enlaçar, a saber: o que ama e o que é amado?” Denis Huisman, comentando tal passagem, afirma: “Aquele que ama, aquele que é amado e o amor constituem uma unidade”. Uma representação desta unidade seria a seguinte: O amado (quod amatur) estaria sempre no centro da “atenção” daquele que ama (amans), unidos no amor (amor), formando assim uma unidade, ou uma Trindade – já que é nessa intenção que Agostinho fala sobre o amor na supracitada obra.
Deus, que é sempre Deus Uno-Trino, Deus Trindade, na linguagem de Agostinho, é a origem e fonte de onde emana todo o amor que há – até mesmo os amores carnais. É assim que, transportando as formas da linguagem (representativas) às Pessoas da Trindade (não representativas), o Pai é amans (o que ama), o Filho é amatur (o que é amado) e o Espírito Santo é amor. Mas essa tripartização das Pessoas – não da essentia – da Trindade traz um problema: ao afirmar que “Deus é amor”, por exemplo, o apóstolo João afirma a essentia Dei. Assim, toda a realização criacional de Deus é fundamentada nessa essentia e, a ela, está condicionada, subordinada. De modo semelhante, na sua primeira epístola, ao exortar os cristãos ao amor mútuo na assonância: “amados, amemo-nos...” (agapētoi, agapōmen...), o apóstolo tem em mente que o amor procede de Deus e Deus só pode ser conhecido mediante o amor. “Porque”, nas palavras de John Stott, “Deus é a fonte e a origem (ek) do amor, e todo verdadeiro amor deriva dele, [e assim sendo] é óbvio que todo aquele que ama, isto é, que ama a Deus ou ao homem com aquela devoção que é o único amor verdadeiro segundo o ensino de João é (literalmente, tem sido) nascido de Deus e conhece a Deus. Mas Deus não é somente a fonte de todo verdadeiro amor; Deus é amor em Seu Ser mais profundo”. E assim, se o evangelista afirma que Deus charitas est, então como relacionar a Caridade com o Espírito, qualificando-o em relação ao Pai e ao Filho? Agostinho, ainda em A Trindade, formula a questão da seguinte forma: “Agora, desejamos examinar se a sublime Caridade é o Espírito Santo, de modo próprio. Caso não seja, investigar se é o Pai a Caridade, ou o Filho ou a mesma Trindade. Isso porque não nos podemos opor à certeza da fé e à abalizada autoridade da Escritura que diz: Deus é amor (1Jo 4,16)”.
Ora, se o sumo Bem e a Caridade dizem respeito à Trindade, então não é incorreto afirmar que, tanto o Espírito Santo é amor como também o Pai e o Filho, já que são, em essentia, Pessoas distintas que compõem a Trindade, sem qualquer distinção hierárquica. De modo semelhante, não se pode afirmar, por exemplo, que o Filho não ame – pois o apóstolo, testemunhando do amor que o Filho demonstrou para com ele, afirma “que [ele] me amou e se entregou a si mesmo por mim”. O Filho, neste caso, é amans, o apóstolo amatur, e entre o Filho e o apóstolo o que há é o amor, amor gerado pela ação do Espírito – além do mais, quem vê o Filho vê o Pai, uma vez que ambos se revelam no amor sacrificial, que é administrado aos fies mediante a ação do Espírito. Portanto, ao afirmar que Deus charitas est, o apóstolo não se refere somente ao Pai, mas também ao Filho e ao Espírito Santo, à Trindade. Assim, tudo o que dissermos sobre a Caridade, o sumo Bem, Deus ou a Trindade, estará relacionando às Pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Isso tudo se resume na regra canônica da fé e das atribuições, ou seja: onde uma das Pessoas da Trindade está, ali está Deus. E onde há Deus, como dizia Tolstoi, aí há amor.
Não! É claro que Agostinho não explicou o mistério da Trindade. Mas elevou o amor, mesmo o humano, a uma categoria de divino – e aí a justificativa desse nosso teologismo. Mas é evidente que há, em Agostinho, como afirma Kant, um salto ontológico que faz o amor passar de uma esfera inferior (analítica) para uma esfera superior (metafísica). Desse amor sublime, agostiniano, nada podemos “entender” a não ser mediante uma entrega pessoal e silenciosa da fé à fé, nele – e aí, realmente, não há nada mesmo a ser entendido. Por isso que, em se tratando do amor, em nossas divagações, como já foi dito, falamos apenas do amor feinho – como diz a Adélia –, do amor “menor” que é, todavia, passível às análises do juízo. Aqui, não há salto algum. Ao que diz: “ora, só se pode falar do sublime se se reconhecer o seu contrário – sem essa dialética não há discurso algum”, dizemos: nada mais humano e sublime do que o “seu contrário”. O “sublime”, pois, é uma palavra só, e só uma palavra.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

7
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Da sublimação e da desconfiança. “O oposto natural de tudo o que é sublimado é a desconfiança”. Dito por Klaus Berger, em relação à figura e a mensagem de Jesus, e endossado por mim, em relação à “figura” e a “mensagem” do amor romântico.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

6
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Do erótico e do sublime. Não há dúvida de que a felicidade seja, sob todos os sentidos, a principal meta das filosofias, do filosofar. Pascal, por exemplo, dizia que “todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar”. E Platão, no Eutidemo, pergunta: “Não é verdade que nós, homens, desejamos todos ser felizes? De fato, quem não deseja ser feliz?” De tão óbvia, a resposta era desnecessária. Quem não deseja ser feliz? Mais que a felicidade, que é naturalmente destacada, é preciso dar ênfase ao desejar (enquanto verbo, no infinitivo) ser feliz, ou ao desejo de felicidade, situando-o na experiência individual; como na citação que vem na cena final de The great estasy of Robert Carmichael, violento e perturbador filme de Thomas Clay: “Voz do Lago: ‘O que para cada um de nós é inevitável?’ Yudhishthira: ‘Felicidade’.” Como o viver para o que vive, assim também, ao vivente, é o desejo, e o desejo de felicidade. Mas, ora; só se deseja o que se não tem. Então, assim, o desejo vem antes mesmo da felicidade desejada – que é aquilo que, através do amor, por exemplo, pensamos poder conseguir, poder reter. O desejo amoroso, ou o querer amar é, pois, o desejo de felicidade. Desejo, todavia, é falta, é querença, é não ter o que se quer, e é, por fim, nas palavras de Schopenhauer, a infelicidade (ou o sofrimento), tendo o que se desejava, o tédio de já não mais querer o que se tem; o não-desejo.
Em O banquete, de Platão, podemos examinar mais diligentemente essa questão. O banquete não é propriamente um diálogo. É, antes, uma seleção de discursos sobre o amor. Discursos esses que, na definição de Denis Huisman, “[são] irregulares e pitorescos, em que o sério e até sublime se sucede ao cômico e mesmo à farsa”. Todavia, visto que o “amor” é, sem dívida, um tema central à filosofia – pois ela se define como “amor à sabedoria”, e não “possuidora” dela –, dois tipos de amor aparecem em destaque: o amor erótico, a quem se aplica o pitoresco, o cômico, a farsa; e o amor sublime, ideal... o amor do discurso de Sócrates. E o que vemos nele, muito evidente, é o idealismo platônico: o amor erótico (Eros), levado à farsa; o amor ideal, sublimado à categoria de divino.
Realizado na casa de Agatão, o primeiro a se manifestar é Fedro, para quem o amor é o mais velho dos deuses, o mais reverenciado e um dos mais poderosos. É o princípio que transforma jovens comuns em heróis, uma vez que aquele que ama tem vergonha de fazer o papel de covarde diante da sua amada. “Dê-me um exército de amantes e conquistarei o mundo”, diz ele. O amor, em Fedro, é de grande valor pedagógico, pois transfigura quem ama, moldando-o de fraco a forte, levando-o a querer ser mais, superando-se. Procurando respaldar sua assertiva, Fedro utiliza-se de vários exemplos oriundos da mitologia.
Depois dele vem Pausânias: “Sim”, ele diz,
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mas é preciso distinguir entre o amor terreno e o amor divino – a atração entre dois corpos, de um lado, e, de outro, a afinidade entre duas almas. O amor vulgar do corpo cria asas e foge ao passar o viço da mocidade. Mas o nobre amor da alma é perpétuo.
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O amor divino (a Afrodite divina) é verdadeiro, nobre, eterno; o amor terreno (a Afrodite terrena) é falso, fugaz. No amor há, segundo Pausânias, uma hierarquia – o discurso de Pausânias não será ignorado por Sócrates. Em seguida vem Erixímaco, que apresenta uma teoria cósmica do amor. Em tal teoria, dentre outras coisas, o amor é responsável pela saúde dos corpos, as harmonias musicais, as revoluções astronômicas, a adivinhação, etc.
O comediógrafo Aristófanes, por sua vez, sai com esta explicação novíssima sobre os efeitos que o amor exerce sobre os amantes: “Nos tempos antigos”, diz ele,
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andavam os dois sexos unidos num único corpo. Esse corpo era redondo como uma bola, tinha quatro mãos, quatro pés e duas faces. Movia-se com assombrosa rapidez, utilizando-se dos oito membros que tinha, como se fossem os raios de uma roda, numa série contínua de saltos mortais. A força dessa raça de homens-mulheres era tremenda, e sua ambição sem limites. Assim planejaram escalar os céus e atacar os deuses quando Júpiter teve uma feliz idéia: ‘Dividamo-lo em dois’, disse ele, ‘e eles terão, assim, apenas metade da força que têm, e nós, o dobro de sacrifícios’. E dito isso, o deus separou os dois sexos, e desse dia em diante as duas metades daquele corpo outrora unido, vêm se consumindo no ardente desejo de se reunirem novamente, para serem, como antes, um só. E é esse anseio pela reunião dos sexos que chamamos amor.
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Agatão, que havia organizado o banquete para comemorar o primeiro lugar que obtivera na redação de um drama para o teatro, explora seus talentos literários, também tratando sobre o amor. Mas, convenhamos, depois dessa de Aristófanes, qualquer discurso corre o risco de tornar-se enfadonho, principalmente quando se tenta provar as perfeições do amor, como no caso de Agatão.
Sócrates, por fim, contrariando o dono da festa, expõe os conceitos de Diotima – sacerdotisa de Mantinéia –, para quem o amor romântico é fundamentalmente imperfeito, existindo sempre como falta, como aspiração inquieta, nunca podendo ser possuído. O amor romântico só existe enquanto falta. Daí ser ele imperfeito, simulacro. Um amor alcançado (ou um desejo realizado) é, assim, uma aniquilação do desejo e, conseqüentemente, uma nova infelicidade.
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– Não é isso então amar o que não está à mão nem se tem, o querer que, para o futuro, seja isso que se tem conservado consigo e presente?
– Perfeitamente – disse Agatão.
– Esse então, como qualquer outro que deseja, deseja o que não está à mão nem consigo, o que não tem, o que não é ele próprio e o de que é carente.

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Antes de o amor nascer, o desejo e a querença anunciam-no como falta. Em nascendo o amor, a falta e a querença não mais são – pois realizam-se naquilo que anunciavam. O não-desejo e a não-querença anunciam, agora, o funeral do amor.
Em pouquíssimas palavras, é disso que trata O banquete. E se eu falo dele aqui, nessas minhas divagações, é para que não digam que o ignoro – embora eu pense que, pelo andar da carruagem, isso já ficou mais do que evidente, em sentido inverso, é claro.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

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Dos objetos. “O bebê que toma o peito, você tira o peito, ele chora, está infeliz. Você lhe devolve o peito, ele se acalma. Há anos uns e outros buscaram nosso peito. Queríamos um ‘bom objeto’, como dizem os psicanalistas, que pudéssemos possuir, que nos saciasse, que fizesse que nada nos faltasse... Que azar: somos desmamados, essa história acabou, ponto final.” São palavras tristes, mas verdadeiras, de André Comte-Sponville. Porque você acha que os homens gostam tanto dos peitos das mulheres? Eles procuram, nelas, aquilo que já não podem ter em suas mães. Quando, em 1910, Freud escreve sobre o Complexo de Édipo, descreve-o como um desejo inconsciente que a criança tem de “matar o pai”. Este, ao menino de três a cinco anos, é rival em relação ao peito materno. A fase seguinte - que vem depois desta, fálica - vai marcar para toda a vida o/a destino/meta psicológico/a de todo indivíduo macho, “devidamente são”: desapegar-se da mãe; reconciliar-se com o pai; encontrar, para amar, uma que não seja idêntica à mãe. “Essas tarefas”, Freud escreve, “cabem a todos, e é notável a pouca freqüência com que lidamos com elas de maneira ideal”.
Outro dia um amigo me disse, jocoso, olhando uma mãe novinha que por nós passava: “Se eu tenho uma mãe dessas, até hoje estaria mamando”. Mas, a depender do gosto estético, outra pessoa poderia dizer a mesma coisa, referindo-se à mãe daquele meu amigo. Não é a beleza que buscamos, afinal – ela é somente o atrativo, a propaganda –, mas a vida. Acima do desejo erótico está o desejo de segurança, da saciabilidade daquela fome mais primitiva. No fim de tudo, reverbera silenciosa a voz do nosso instinto mais básico, comum a todos os bichos: autopreservação. Aquilo que ocorre ao bebê, ocorre também conosco: não ter um peito deixa-nos infeliz... é a tristeza. Quando o peito não nos falta, a vida está assegurada... somente o tédio, agora, nos assedia. Daí Schopenhauer, valendo-se de Lucrécio, dizer que “giramos sempre no mesmo círculo sem nunca poder sair... Enquanto o objeto de nossos desejos permanece distante, ele nos parece superior a todo o resto; se ele é nosso, passamos a desejar outra coisa, e a mesma sede da vida nos mantém em permanente tensão...” Noutra parte, Schopenhauer também dirá que “a vida oscila [...] como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento ao tédio”. E, nessa historia toda, parece que a gente não tem muita escolha. A razão, por esse viés, nunca é suficiente, libertadora. Acima de tudo, da própria razão, da própria autopreservação, ela: a Vontade.

domingo, 6 de setembro de 2009

4
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Dos grandes e pequenos feitos. Nada do que foi feito de grande ou pequeno, na arte, no mundo, na história do mundo, se realizou sem amor; e, sem ele, nada pode se realizar. O problema de tudo isso é entender claramente o que se diz ou se quer dizer com “o amor”. O maior e melhor tratado já feito sobre o tema, tem o seguinte título, em alemão: Die Welt als Wille und Vorstellung (“O Mundo como Vontade e como Representação), e foi escrito em 1818, por Arthur Schopenhauer. Tudo o que Nietzsche, Lou-Salomé e Freud dirão sobre o amor, depois de Schopenhauer, é mera repetição e acréscimo. Schopenhauer: essencial.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

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Das possíveis definições. Nietzsche dizia que não queria ser confundido; assim, concluía, “convém que eu mesmo não me confunda”. O mesmo valerá para mim, ao “destratar” o amor romântico do modo como venho fazendo. Sei que uns (ou umas) poderão argumentar: “Ele diz isso porque é mal-amado”. Outros, quem sabe, objetarão: “De que amor ele está falando?” Tomara que você esteja entre os tais do segundo grupo.
Ao primeiro grupo, como resposta, tenho apenas o silêncio. Silêncio que é, como diz o Abade Dinouart, já no título de um livrinho seu, A arte de calar, uma arte. Todo mundo sabe que o silêncio é, às vezes, mais eloqüente do que um milhão de palavras. As minhas “justificativas” em relação às possíveis conjecturas desse grupo, portanto, encerram-se aqui.
No que diz respeito ao segundo, boa é a observação. Sim, pois, de imediato, convém adiantar que não existe, pelo menos para nós – e eu falo de gente de carne e osso, como você e eu –, o amor, mas os amores – que é como fracionamos uma coisa só: aquilo que Schopenhauer chamava de Vontade (Wille) e que Freud chamava de Pulsão (Trieb) (embora houvesse delicadas diferenças entre um e outro conceito). Os amores, na divisão clássica, se distinguem em, pelo menos, quatro tipos: o erótico (Eros, eran), o filial (philia, philein), o desinteressado (Ágape, agapan) e o amor a si mesmo (amour de soi), que é o mesmo que amor-próprio (stergein). Nós, homens e mulheres, conhecemos apenas, por meio do intelecto e da experiência pura, o último dessa lista, que nada mais é do que uma resposta favorável ao primeiro: Eros. Mas a farsa, a maior de todas – a do amor romântico, que se espelha no amor ideal que, por sua vez, “une” todos os indivíduos numa fraternidade que vem desde o estóicos, com seu conceito de Logos universal, et cetera, e o apóstolo Paulo - pelo menos se levarmos em conta o que aparece nas entrelinhas do discurso hermenêutico da nossa cultura, que é, na crítica de Nietzsche, altamente fundamentada numa ética e numa moral cristãs.
Assim sendo, e para encurtar a história, o amor que o sujeito sente por sua mulher, ou por sua amante, ou por qualquer Outro (ou outra) que seja o objeto da sua atenção é, no final das contas, um amor que deseja e responde apenas a si mesmo; pois vê no outro aquilo que lhe faz bem, lhe dá prazer, lhe apetece os instintos: o EU refletido no TU. O Outro, objeto do seu prazer, mesmo que outros discursos digam o contrário disso – na tentativa sempre fútil de manter o modelo legado pela poeira dos séculos –, é um objeto, um meio para a satisfação pessoal do EU que somente ama a si mesmo. Está lá na carta do apóstolo Paulo aos cristãos de Éfeso: “Quem ama a sua mulher, a si mesmo se ama”. Certamente que esse, nosso, não é o sentido que o apóstolo quer dar à sua missiva, e é certo também que o contexto do seu discurso deixa claro aquele sentido fraternal-estóico que ainda agora falamos; mas a tal citação, no sentido que damos aqui, ilustra perfeitamente o que estamos dizendo. E se assim é, então o amor Eros é apenas um braço curto do amor-próprio e, logo, o mesmo – como também são os tentáculos de um polvo para o próprio.
Agora, suponhamos que alguém tenha um filho e, coisa mais que normal, diga-lhe: “Eu o amo.” Esse amor, fraternal-filial (de philia) é, ainda assim, um outro braço curto do amor-próprio. Pois que é isso, o desejo de ter filhos (e o pai, via de regra, deseja ter um filho, e a mãe, uma filha), senão o desejo de continuidade? Continuidade do EU no TU. Os pais, através dos filhos, mantêm-se vivos, se prolongam na história biológica do mundo. E, também via de regra, os pais – mais por amor a si que por amor aos filhos – desejam esta ou aquela profissão para o filho, ignorando, quase sempre, o que o próprio filho deseja para si. O amor do pai pelo filho é, mais que philein, stergein.
E assim chegamos, mesmo queimando etapas, ao amor ágape que é, nas palavras de Rubem Alves, “amor pelo feio” – para contrastar com o Eros grego, que correspondia exatamente ao amor pelo belo, sexual, libidinoso. O amor ágape, que é aquele que mais aparece na doutrina cristã – que praticamente ignora os dois anteriores aqui mencionados –, é o amor por algo que não merece amor, é o amor caridoso, de onde nos vem as palavras charis (graça, favor imerecido) e caridade (charitas). Daí algumas versões mais antigas traduzirem a palavra ágape, do capítulo 13 da primeira epístola de são Paulo Aos Coríntios, como “caridade”; o que é, sem dúvida, muito mais acertada do que a que aparece nas versões mais modernas.
Esse tipo de amor, evidentemente, só o próprio Deus pode ter em relação aos homens. Isso equivale a dizer que se, por um altruísmo qualquer, alguém fizesse uma caridade qualquer a outro seu igual, pelo simples fato de fazer, sem que sentisse qualquer emoção (o que eu julgo impossível), então estaria amando com um amor semelhante àquele que o próprio Deus tem. Mas, como já disse, ninguém pode ter o “mesmo” amor que Deus tem – por isso que utilizo o adjetivo “semelhante”, falando sempre por analogia. O amor, como já dissemos no Livro 1, é sempre amor por algo; e esse algo sempre esbarra em nós mesmos. Bom exemplo é o da Madre Tereza de Calcutá? Tanto mais amor demonstrado ou Outro, tanto mais amour de soi. No outro, vê–se o reflexo do si-mesmo. O suicídio, que parece ser o maior ato de desamor à própria vida é, conforme Pascal, a sua maior declaração de amor. “Todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar”. O suicida não é movido por outra coisa senão o amor-próprio e, no fim, afinal, procura mesmo é por uma felicidade in fine, sua felicidade. Dois casos extremos: Madre Teresa e o suicida, dois casos de amor, do amor incurável.
Quando se faz o bem a alguém, faz-se porque é bom fazer o bem a alguém ­– conforme o modelo dualista do Ocidente que diz que o bem é bom, e que o mau e mal, ruim. Tais conceitos, porém – e os filmes de Akira Kurosawa estão aí pra dizerem isso – não são assim tão precisos e infalíveis à toda prova. O que é o bom? O que é o bem? Para quem é ativo no ato dado/feito ou para quem é passivo ao mesmo? Quem faz o bem, a caridade, faz porque isso lhe faz bem, lhe dá algum prazer – um tipo de prazer que é julgado, evidentemente, superior àqueles que já mencionamos –, o prazer do dever [altruísta] cumprido. É uma satisfação que esbarra, novamente, naquele modelo platônico do Bem, do bom; um círculo vicioso típico da cultura do Ocidente.
No que diz respeito ao amor ágape, ele transcende as ações humanas e, eo ipso, não pode ser mencionado senão num salto ontológico, a priori, que se limita ao mínimo falando de um máximo desconhecido, o imperfeito falando do perfeito desconhecido e, assim, sempre um discurso cheio de limites, sempre carente de fundamentos. Mas o único fundamento para tal discurso é a fé, e a fé não precisa e nem pode ter fundamentos. Novamente, nesse “pormenor”, nesse exigido silêncio sobre as sublimidades do amor sublime, é exigido o silêncio. O melhor discurso sobre Deus, caso haja algum discurso, é o silêncio.
O que nos sobra, depois de tudo, é o amour de soi – que é o que mais temos, de uma ou de outra maneira; o amor sentimental (romântico), que nos faz mal ou bem, segundo a administração que dele fazemos, também ancora aí. Desse, sim, temos muito o que dizer.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

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Da morte e do paraíso. Henry de Montherlant dizia que nos “morremos quando não há mais ninguém por quem queiramos viver”. Mas isso é poesia, discurso de poeta. Diferentemente, afirmo como todas as letras: Não há ninguém, além de nós mesmos, por quem queiramos viver ou morrer. Mas podemos dizer o dito de modo melhorado – afinal, isto aqui não é poesia, realmente. Acontece que esse negócio de “ninguém, além de nós mesmos”, me acreditem, não tem mistério algum; não tem profundidade alguma. É que, às vezes, as coisas são tão evidentes que aparentam obscuras, profundas, misteriosas. Fernando Pessoa, em relação a esse mistério, essa profundidade das (ou nas) coisas, dizia que “mistério mesmo é haver quem pense o mistério”, e só; pois que tudo o mais é muito simples – mesmo que nos escape à compreensão mais imediata. E, afinal, nada existe para ser compreendido mesmo, tudo existe para ser vivido, experienciado. E pra não ir muito longe, mas para não deixar tudo assim, tão solto, lembramos de Paul Valéry que, da etimologia das palavras, dizia que não há uma só que possamos compreender, se formos a fundo. E aqui, e assim, exatamente aqui, esbarramos nas contradições da vida. A maior delas começa logo que nascemos: nascer é, já, começar a morrer. Vive-se para morrer. Mas, dado o paradoxo, a Vontade da vida não gosta disso; daí o seu mecanismo maior de autopreservação: o desejo. Desejar o homem ou a mulher que você ama, por exemplo, é obedecer aos apelos mais simples da Vontade da vida, do seu instinto mais primitivo. Sem o desejo não haveria o coito, sem o coito a vida dos pais não seria repassada aos filhos. Kierkegaard, vendo os tantos absurdos do mundo, numa das suas insinuações mais intimistas, falava de um suicídio ético universal: todo mundo pára de procriar e, assim, cessa o processo contínuo de trazer indivíduos à vida, ação que alimenta a morte; assim também cessa, de uma vez para sempre, as desgraças, as angustias, a doença mortal. No final das contas, ou no final de tudo, e se assim fosse, o mundo alcançaria a paz tão sonhada, a paz perpétua, o silêncio paradisíaco - o Todo/tudo e o Nada, que é, inevitavelmente, o lugar para onde todos se dirigem; pois que o homem é, essencialmente, memória, consciência.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Livro 2
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Em que se dão exemplos (filosóficos, históricos e literários) de como o amor romântico constitui-se em um disfarce engendrado pela moral – ou pelo idealismo platônico –, com o fito de maquiar o mecanismo natural, que é a Vontade de vida, a pulsão, os sexos.
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1
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Do silêncio. Um tratado de amor romântico, depois das longas definições do que ele seja e em quantas formas seja reconhecido, deveria, como num final escatológico, recomendar o silêncio, ou a precaução – dadas as variantes ortográfico-sentimentais do “amor romântico”, que é, afinal, o único que realmente “conhecemos” e que nos atinge a todos, mesmo que não o percebamos. Quem entende bem do bem que faz um amor silencioso é o Mário Quintana. No poema “Bilhete”, ele diz a uma amada sua, misteriosa... literária: “Se tu me amas, ama-me baixinho / Não o grites de cima dos telhados / Deixa em paz os passarinhos / Deixa em paz a mim! / Se me queres, / enfim, / tem de ser bem devagarinho, Amada, / que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...” Explicar um poema, isso sou eu quem está dizendo, é o mesmo que destruí-lo; o mesmo se pode dizer do amor romântico. O amor, meus caros, diferentemente da religião, não é um sentimento oceânico.