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Da liberdade. Talvez nenhuma outra história seja tão encantadora e ilustrativa para o problema da liberdade amorosa – ou da posse – do que a história da Menina e do Pássaro encantado, contada por Rubem Alves, em Concerto para corpo e alma, de 1998. A história é assim:
Era uma vez uma Menina que tinha como seu melhor amigo um Pássaro Encantado. Ele era encantado por duas razões. Primeiro, porque ele não vivia em gaiolas. Vivia solto. Vinha quando queria. Vinha porque amava. Segundo, porque sempre que voltava suas penas tinham cores diferentes, as cores dos lugares por onde tinha voado. Certa vez voltou com penas imaculadamente brancas, e ele contou estórias de montanhas cobertas de neve. Outra vez suas penas estavam vermelhas, e ele contou estórias de desertos incendiados pelo sol. Era grande a felicidade quando eles estavam juntos. Mas sempre chegava o momento quando o Pássaro dizia: “Tenho de partir.” A Menina chorava e implorava: “Por favor, não vá. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar...” “Eu também terei saudade”, dizia o Pássaro. “Eu também vou chorar. Mas vou lhe contar um segredo: eu só sou encantado por causa da saudade. É a tristeza da saudade que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for não haverá saudade. E eu deixarei de ser o Pássaro Encantado. Você deixará de me amar.”
E partia. A Menina, sozinha, chorava. E foi numa noite de saudade que ela teve uma idéia: “Se o Pássaro não puder partir, ele ficará. Se ele ficar, seremos felizes para sempre. E para ele não partir basta que eu o prenda numa gaiola.”
Assim aconteceu. A Menina comprou uma gaiola de prata, a mais linda. Quando o Pássaro voltou, eles se abraçaram, ele contou estórias e adormeceu. A Menina, aproveitando-se do seu sono, o engaiolou. Quando o Pássaro acordou, deu um grito de dor.
“Ah! Menina... Que é isso que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias. Sem a saudade o amor vai embora...”
A Menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar.
Mas não foi isso o que aconteceu. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio. Não era aquele o pássaro que ela amava. E de noite chorava, pensando naquilo que havia feito ao seu amigo...
Até que não mais agüentou. Abriu a porta da gaiola. “Pode ir, Pássaro”, ela disse. “Volte quando você quiser...”
“Obrigado, Menina”, disse o Pássaro. “Irei e voltarei quando ficar encantado de novo. E você sabe: ficarei encantado de novo quando a saudade voltar dentro de mim e dentro de você...”
A estória termina assim: a Menina na espera, se preparando para a volta do Pássaro. Mas como ela não sabia de onde ele voltaria, todos os espaços ficaram encantados. Ele poderia vir de qualquer lugar. E todos os tempos ficaram encantados: a qualquer momento ele poderia voltar. Quando a saudade apertava seu coraçãozinho, ela dizia: “Que bom! Meu Pássaro está ficando encantado de novo!” E assim, a cada noite ela ia para a cama triste de saudade, mas feliz com o pensamento: “Quem sabe ele voltará amanhã...” E sonhava com a alegria do reencontro.
A história da Menina e do Pássaro Encantado, na verdade, não é nova; é uma releitura da história da Raposa e do Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry (cf., 2, 41). A constatação de que “sem a saudade o amor vai embora”, também, faz eco a tudo o que até aqui já dissemos, valendo-nos, sobretudo, de Schopenhauer, de Werner Herzog, de Hegel e de um sem número de autores nem sempre concordes. Nas coisas do amor romântico, repetimos, além do trágico, a ironia é muito presente. Hermann Hesse, por exemplo, dizia que o que “nós amamos é sempre um símbolo”, é o encanto que está sobre o Outro, e não o Outro exatamente. O Outro, alter, nunca é o objeto mesmo do amor, é somente o depositário do símbolo mágico da Vontade; e a Vontade é livre. O que amamos, afinal, bem pode ser a liberdade da Vontade, por meio da nossa vontade que não é livre. É por isso que o amor, como o Pássaro Encantado, não pode ser preso, porque ele nasce da Vontade. O símbolo falado por Hesse, portanto, é essa presença misteriosa da Vontade em nós, nos impulsionando hora pra frente, hora pra trás, numa dinâmica chocante (porque conflitosa) da Vontade com o real, pre-sente. E por toda parte, como em uma sala de espelhos, é a nós mesmos que vemos, com as distorções que fazem que, às vezes, não nos reconheçamos e pensemos amorosamente no Outro, quando o que queremos, realmente, é o que está no Outro. Tudo está em nós; no Outro/a, amado/a, o reflexo do objeto nosso, do nosso desejo... Amour de soi.
Daí a Cecília Meireles dizer: “Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no seu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes fugidios… Como Narciso, fico diante dele… No fundo de tua luz marinha nadam meus olhos, à procura… Por isto te amo, pelos peixes encantados…” Daí o Pequeno Príncipe dizer à Raposa: “O essencial é invisível aos olhos. A gente só o vê bem com o coração”. Daí Kierkegaard, comentando sobre o absurdo de se pedir aos amantes explicações sobre o seu amor, dizer que, para tal pergunta, a única resposta que eles possuem é o silêncio. Se, todavia, pedirem que falem do seu amor, sem explicações, eles serão capazes de falar por dias e dias, sem parar… Daí, por fim, santo Agostinho, nas suas Confissões, perguntar: “Que é que eu amo quando amo o meu Deus?” Ao que o Rubem Alves faz as seguintes observações: “Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: ‘Que é que eu amo quando te amo?’ Seria, talvez, o fim de uma estória de amor. Pois essa pergunta”, ele conclui, “revela o segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a amada o amante está amando uma outra coisa que não é ela”. É o símbolo, como dissemos; e o símbolo é, por outro nome, a Vontade.
O amor romântico é uma metáfora da Vontade. Como dizia Milan Kundera: “O amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética”. E o que é essa memória poética? É a saudade do objeto do seu amor, mesmo que tal objeto não seja o objeto mesmo do amor, mas apenas o depositário do símbolo mágico da Vontade. Não existe memória sem o distanciamento – o Pássaro Encantado longe – que a saudade requer, mas o distanciamento, demasiado, também mata a Vontade acerca de um objeto específico. No filme Beleza roubada (Stealing beauty, 1996), de Bernardo Bertolucci, Jean Marais (M. Guillaume) diz: “Amor não existe. Só as provas de amor.” Não há como prender o Pássaro sem que ele murche, perca a cor e a vontade de cantar. Sem liberdade, o amor romântico morre; com liberdade, também – porque a Vontade, para efetivar-se, requer a pre-sença material do seu objeto. O símbolo, porém, não pode ser real, jamais; pode apenas ser re-pre-sentado. Mas aí já é Outro, outra “coisa”.
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Da liberdade. Talvez nenhuma outra história seja tão encantadora e ilustrativa para o problema da liberdade amorosa – ou da posse – do que a história da Menina e do Pássaro encantado, contada por Rubem Alves, em Concerto para corpo e alma, de 1998. A história é assim:
Era uma vez uma Menina que tinha como seu melhor amigo um Pássaro Encantado. Ele era encantado por duas razões. Primeiro, porque ele não vivia em gaiolas. Vivia solto. Vinha quando queria. Vinha porque amava. Segundo, porque sempre que voltava suas penas tinham cores diferentes, as cores dos lugares por onde tinha voado. Certa vez voltou com penas imaculadamente brancas, e ele contou estórias de montanhas cobertas de neve. Outra vez suas penas estavam vermelhas, e ele contou estórias de desertos incendiados pelo sol. Era grande a felicidade quando eles estavam juntos. Mas sempre chegava o momento quando o Pássaro dizia: “Tenho de partir.” A Menina chorava e implorava: “Por favor, não vá. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar...” “Eu também terei saudade”, dizia o Pássaro. “Eu também vou chorar. Mas vou lhe contar um segredo: eu só sou encantado por causa da saudade. É a tristeza da saudade que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for não haverá saudade. E eu deixarei de ser o Pássaro Encantado. Você deixará de me amar.”
E partia. A Menina, sozinha, chorava. E foi numa noite de saudade que ela teve uma idéia: “Se o Pássaro não puder partir, ele ficará. Se ele ficar, seremos felizes para sempre. E para ele não partir basta que eu o prenda numa gaiola.”
Assim aconteceu. A Menina comprou uma gaiola de prata, a mais linda. Quando o Pássaro voltou, eles se abraçaram, ele contou estórias e adormeceu. A Menina, aproveitando-se do seu sono, o engaiolou. Quando o Pássaro acordou, deu um grito de dor.
“Ah! Menina... Que é isso que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias. Sem a saudade o amor vai embora...”
A Menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar.
Mas não foi isso o que aconteceu. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio. Não era aquele o pássaro que ela amava. E de noite chorava, pensando naquilo que havia feito ao seu amigo...
Até que não mais agüentou. Abriu a porta da gaiola. “Pode ir, Pássaro”, ela disse. “Volte quando você quiser...”
“Obrigado, Menina”, disse o Pássaro. “Irei e voltarei quando ficar encantado de novo. E você sabe: ficarei encantado de novo quando a saudade voltar dentro de mim e dentro de você...”
A estória termina assim: a Menina na espera, se preparando para a volta do Pássaro. Mas como ela não sabia de onde ele voltaria, todos os espaços ficaram encantados. Ele poderia vir de qualquer lugar. E todos os tempos ficaram encantados: a qualquer momento ele poderia voltar. Quando a saudade apertava seu coraçãozinho, ela dizia: “Que bom! Meu Pássaro está ficando encantado de novo!” E assim, a cada noite ela ia para a cama triste de saudade, mas feliz com o pensamento: “Quem sabe ele voltará amanhã...” E sonhava com a alegria do reencontro.
A história da Menina e do Pássaro Encantado, na verdade, não é nova; é uma releitura da história da Raposa e do Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry (cf., 2, 41). A constatação de que “sem a saudade o amor vai embora”, também, faz eco a tudo o que até aqui já dissemos, valendo-nos, sobretudo, de Schopenhauer, de Werner Herzog, de Hegel e de um sem número de autores nem sempre concordes. Nas coisas do amor romântico, repetimos, além do trágico, a ironia é muito presente. Hermann Hesse, por exemplo, dizia que o que “nós amamos é sempre um símbolo”, é o encanto que está sobre o Outro, e não o Outro exatamente. O Outro, alter, nunca é o objeto mesmo do amor, é somente o depositário do símbolo mágico da Vontade; e a Vontade é livre. O que amamos, afinal, bem pode ser a liberdade da Vontade, por meio da nossa vontade que não é livre. É por isso que o amor, como o Pássaro Encantado, não pode ser preso, porque ele nasce da Vontade. O símbolo falado por Hesse, portanto, é essa presença misteriosa da Vontade em nós, nos impulsionando hora pra frente, hora pra trás, numa dinâmica chocante (porque conflitosa) da Vontade com o real, pre-sente. E por toda parte, como em uma sala de espelhos, é a nós mesmos que vemos, com as distorções que fazem que, às vezes, não nos reconheçamos e pensemos amorosamente no Outro, quando o que queremos, realmente, é o que está no Outro. Tudo está em nós; no Outro/a, amado/a, o reflexo do objeto nosso, do nosso desejo... Amour de soi.
Daí a Cecília Meireles dizer: “Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no seu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes fugidios… Como Narciso, fico diante dele… No fundo de tua luz marinha nadam meus olhos, à procura… Por isto te amo, pelos peixes encantados…” Daí o Pequeno Príncipe dizer à Raposa: “O essencial é invisível aos olhos. A gente só o vê bem com o coração”. Daí Kierkegaard, comentando sobre o absurdo de se pedir aos amantes explicações sobre o seu amor, dizer que, para tal pergunta, a única resposta que eles possuem é o silêncio. Se, todavia, pedirem que falem do seu amor, sem explicações, eles serão capazes de falar por dias e dias, sem parar… Daí, por fim, santo Agostinho, nas suas Confissões, perguntar: “Que é que eu amo quando amo o meu Deus?” Ao que o Rubem Alves faz as seguintes observações: “Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: ‘Que é que eu amo quando te amo?’ Seria, talvez, o fim de uma estória de amor. Pois essa pergunta”, ele conclui, “revela o segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a amada o amante está amando uma outra coisa que não é ela”. É o símbolo, como dissemos; e o símbolo é, por outro nome, a Vontade.
O amor romântico é uma metáfora da Vontade. Como dizia Milan Kundera: “O amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética”. E o que é essa memória poética? É a saudade do objeto do seu amor, mesmo que tal objeto não seja o objeto mesmo do amor, mas apenas o depositário do símbolo mágico da Vontade. Não existe memória sem o distanciamento – o Pássaro Encantado longe – que a saudade requer, mas o distanciamento, demasiado, também mata a Vontade acerca de um objeto específico. No filme Beleza roubada (Stealing beauty, 1996), de Bernardo Bertolucci, Jean Marais (M. Guillaume) diz: “Amor não existe. Só as provas de amor.” Não há como prender o Pássaro sem que ele murche, perca a cor e a vontade de cantar. Sem liberdade, o amor romântico morre; com liberdade, também – porque a Vontade, para efetivar-se, requer a pre-sença material do seu objeto. O símbolo, porém, não pode ser real, jamais; pode apenas ser re-pre-sentado. Mas aí já é Outro, outra “coisa”.
Eu em relação ao amor tenho teorias baseadas nas minhas vivências, então, elas não são lá muito confiáveis. O texto tem citações muito bonitas,gostei de ler! =)
ResponderExcluirQuero mais amar não. Dá muito trabalho.
ResponderExcluirEsse seu texto, Patativa, não me fez bem. (rs)