quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

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Do fiel e da sua fidelidade. Longe de ser uma marca da cultura cristã ocidental, o sentimento de fidelidade foi o meio que a Vontade encontrou para, por meios indiretos – de uma suposta pena eterna, pela falha moral –, preservando o indivíduo, preservar-se a si mesma. Não fosse assim, os exemplos de infidelidade seriam comuns entre os animais puramente instintivos; mas isso não ocorre com tanta freqüência na natureza. Dadivosa, ela dota cada espécie com as armas que a mesma necessita para viver, continuar vivendo; embora, para isso, algumas sejam mais aptas que outras, as que já se extinguiram. Na guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes) - como diz Hobbes, caracterizando o homem em seu estado natural, aquele em que homo homini lupus -, criam-se as mentiras, os engodos históricos, as farsas do poder (ou para o poder), justificando-os com a máscara da moral, da piedade cristã, da civilité, civility, civilization. Mentiras político-morais, como a que é brilhantemente ilustrada na sátira alegórica Animal Farm: a fairy story (1945), de George Orwell: “Todos os bichos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.” As leis, os códigos de ética e de moral estão aí, ditando o certo segundo “X”, segundo “Y”, segundo “Z”. “Todos os homens são iguais perante a lei”, dizem; e para que essa lei se sustente, se cumpra, exige-se, dela, o reconhecimento, e a fidelidade. As igrejas, os Estados, as autoridades constituídas (por títulos histórico-consensuais) e as autoridades auto-constituídas (por carismas, et cetera) unem-se na cruzada que tem, lugar comum em seus discursos, o substantivo feminino “fidelidade” por mote: fidelidade a Deus, primeiramente, depois à pátria, ao cônjuge, a isso e àquilo outro. Do mesmo modo que um sistema político não é perfeito, como o socialismo stalinista criticado por Orwell, assim também a fidelidade do homem a todos esses poderes. No final de tudo, e para todos os fins, só se é fiel a si mesmo.

Um comentário:

  1. então partimos de uma fidelidade do indivíduo à uma consensual e, enfim, historicamente derivada da coletividade e outorgada à instituição. eu não diria que só há fidelidade a si, talvez nem tanto se encararmos as coisas de uma outra perspectiva (se bem que mesmo uma "infidelidade auto-orientada" recai numa fidelidade fundamental em detrimento do que quer que seja que a tenha impedido de opor-se anteriormente, enfim), mas ainda creio possíveis as relações mais ou menos, talvez encarando o tempo e suas implicações como um princípio, livres de exigências. por natureza, isso é ser fiel a si mesmo, ainda que a dois, ainda que essa fidelidade implique num qualquer altruísmo destrutivo e irreversível. quando tenho consciência que altruísmo mediato é sempre egoísmo, qual é a grande crítica a ser feita a respeito do egoísmo? contanto que ele seja, na prática, capaz de realizar o meu egoísmo e o egoísmo (quer enquanto necessidade quer mero capricho) alheio, ele é legitimado tanto pela moral aqui implicada como pela socialmente estabelecida.

    olha lá, desculpa-me por fugir um pouquinho ao tema...

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patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo