terça-feira, 30 de junho de 2009

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Das incógnitas. Ela estava tão linda naquele dia; mais do que já era – coisa que, para ele, parecia impossível. Em sua casa, os dois jantavam enquanto a delicada Isobel Campbell cantava Let the good times begin. O mundo, apesar de tantas barbaridades, parecia aproximar-se, afinal, de alguma perfeição. Fazer amor com ela era como mergulhar num paraíso idílico, quente e doce... uma deliciosa sensação sem nome. Passado o tempo, era hora de levá-la em casa. No caminho, entre as centenas de veículos que normalmente trafegam o movimentado retão de Manaíra, ele pôde perceber que ela olhava para o cara que dirigia um Sedan prateado. Não que aquele olhar lhe incomodasse; isso, não. O que lhe incomodou mesmo foi vê-la disfarçar tão mal o despretensioso flerte. Sem querer magoá-la, ficou em silêncio. Mas algo dentro dele, como se fosse uma taça de cristal, partiu-se. “Ah, Capitu!”, ele pensou, “por onde andam as tuas crias?”. Ela não entendeu quando ele disse que depois ligava, e nunca mais ligou. É que ele, à semelhança do atormentado Bentinho, não tinha qualquer certeza da traição; tinha, porém, absoluta certeza da sua própria dúvida – e onde há a dúvida, disso todo mundo sabe, tudo dança suspenso no ar, diluindo-se ao leve sopro de qualquer vento erradio. O silêncio, às vezes, tem o peso das montanhas, das nuvens tempestuosas. E é assim que os amores às vezes se desfazem: ao sutil toque do acaso.

domingo, 28 de junho de 2009

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Das simetrias. A perfeição é a medida exata da simetria. Dizemos belo àquilo que é simétrico. Ser simétrico, ou belo, portanto, equivale à idéia de um padrão absoluto a partir do qual tudo no mundo pode ser medido, mensurado. Expressões como: “esse arranjo está lindo!”, por exemplo, afirmam a nossa crença na existência de um modelo estético a partir do qual a beleza pode ser dita como mais ou menos bela. Percebendo ou não, fazemos afirmações que oscilam entre esse mais e esse menos; e fazemos isso a todos os instantes e para tudo. Assim fazendo, assumimos um platonismo que nem de longe chegamos a pensar como a estrutura fundo-fundante de nossas idéias mais, ou menos, filosóficas. Essa filosofia toda, ou essa filosofice, aparece disfarçada nas coisas mais elementares do nosso cotidiano: “O amor é lindo!”, “Você viu como ela falava alto? Que falta de educação!”, “O dia hoje está muito quente!”, et cetera. Pois foi inconscientemente levado pelas perfeições simétricas que Igor casou-se com Joana. “O casal mais lindo da cidade!”, diziam os/as colunistas. “O filho desses dois vai ser uma coisa do outro mundo!”, diziam as tias velhas, segurando as suas taças cheias de Peter Brum. Dois anos depois, a coisa do outro mundo nasceu, e deram-lhe o nome de Melanie. Nascida de oito meses, Melanie trazia as marcas assimétricas que malogrosamente herdara, com toda a certeza, do irônico destino, e não dos seus belos e jovens pais. Por algum efeito químico, talvez, a criança, filha de pais brancos, branquíssimos, nascera moreninha, assim meio parda, meio... algo assim, indefinido. Os cabelos, ralinhos, eram crespos e de difícil acesso. Um ano depois, ainda não conseguia dizer “papai” ou “mamãe”. Igor, com o pouco do amor paternal que lhe sobrara depois de todas as desventuras que lhe sobrevieram desde então, começou a desconfiar de que a sua mulher, para gerar tal “criaturazinha”, lhe houvesse traído com um desses unzinhos que existem por aí, aos borbulhões, apesar de todo o amor que dizia ter por ele. Joana, desconfiada de que o marido portasse algum problema genético-biológico, apesar de os médicos asseverarem que não, recusou-se a ter outros filhos. “Uma frustração dessa magnitude é o suficiente para a tristeza de uma vida toda”, dizia-se a si mesma. Mas Igor queria porque queria ter outro filho, “para reparar as feridas que Melanie trouxera”, pensava, em mortal silêncio, com medo de estar blasfemando do bom Deus que dá vida a tudo. De tanto insistir com Joana, acusando-a de racista, preconceituosa, et cetera, et cetera e tal, vieram brigas sobre brigas, tristezas sobre tristezas. E foi assim que, no ano seguinte, quando faltavam sete dias para o terceiro aniversário de casamento dos dois, eles decidiram que não dava mais para viverem juntos, não daquele jeito. Melanie ficou com a mãe, e com os avôs maternos; Igor voltou a morar com os pais, e com as tias velhas, fofoqueiras e frustradas. Essas, assimétricas que eram, nunca arranjaram casamento, e por isso davam todo o amor que tinham ao sobrinho infeliz, como se, ele, um filho delas fosse. Ademais, contentavam-se em ver novelas e dar conta da vida alheia. Nas fofocas familiares, perguntavam-se espantadas: “Como é que tudo pôde findar assim?”. “São as simetrias, minhas tias; são as simetrias...”, berrava Igor, bêbado.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

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Da possessividade. O amor de um sempre procura possuir o amor do outro, que é objeto do seu próprio amor; e não há palavra melhor do que esta, para definir o amor: possuir. Era assim que Maria amava Sérgio, que se tornara, ao mesmo tempo, seu doce céu e seu amargo inferno. Se ele estava em casa, mesmo sendo grosso como costumava ser, ela estava bem – pois sabia que ele não poderia estar, ao mesmo tempo, com ela e com “aquelas vadias” da repartição – embora o marido jamais tenha demonstrado o menor sinal de alguma “traição”; e nem precisava, ela ficava louca só de pensar na possibilidade. Assim, mal Sérgio começava a se arrumar que Maria ficava paranóica, perguntando:
– Pra onde é que você vai?
– Pra onde eu vou? Ora, Maria! Vou pro trabalho. Não é isso que faço todo santo dia nessa mesma hora?
– De que horas você volta?
– Volto depois do trabalho.
– Me promete que não vai beber.
– Tá, Maria, eu prometo. Além do mais, você sabe bem disso, já faz é tempo que não bebo, por recomendações do médico.
– Você me liga?
– Pra quê, Maria?
– Ah, só pra ligar...
– Ai, meu Deus! Tá bem, Maria; se você quer que eu ligue, eu ligo “só pra ligar”.
Ele disse, fazendo aspas no ar, com as pontas dos dedos. E era assim que, quase todo santo dia, Sérgio saía de casa, com vontade de não mais retornar para ela, para a sua mulher grudenta, ciumenta, chata e gorda. Ele, cada vez mais, sentia que trabalhava somente para sustentar aquele estorvo que, não sabia como, trouxera para a sua casa, para o seu mundo, para a sua vida. E Maria, como toda mulher, sabia perceber isso muito bem... esse desinteresse do marido: a falta de beijos, o desejo de sexo... ela sabia. E também sentia que, qualquer dia desses, Sérgio sairia para o trabalho e nunca mais retornaria. A idéia de perdê-lo foi crescendo como uma monstruosa avalancha. Pensando nisso, Maria, por noites a fio, não conseguira dormir direito. As noites mal-dormidas deixavam-na ainda mais chata, mais feia, mais gorda e paranóica, sem falar nas profundas e escuras olheiras que desenvolvera. Não demorou muito e ela começou a ver insinuações vindas de todas as partes. Se alguém ligava e Sérgio atendia, ela logo queria saber:
– Quem era?
– O Helinho. Queria saber se vou pra pelada no sábado.
– Era o Helinho mesmo?
– Claro que era, Maria! Que é que tá havendo, hem?
– E você vai pra pelada?
– Isso eu ainda não sei. Tô vendo aqui...
– Se você for, eu vou contigo.
– Que é que você vai fazer numa pelada onde só tem marmanjos, mulher? Ah, isso não será possível; sinto muito.
Não fazer parte da vida de Sérgio em todos os momentos parecia abrir lacunas que caberiam uma galáxia inteira. Ela queria que ele fosse, como disse o padre no dia do casamento, “ossos dos seus ossos, carne da sua carne”. E foi, talvez por isso, que Maria teve a tenebrosa idéia de manter, para sempre, Sérgio junto a si, dentro de si.
Numa abafada noite de outubro, enquanto ele dormia profundamente depois de um enfadonho dia de trabalho no Centro Administrativo, Maria foi até a cozinha e apanhou a faca Ginsu que usava para cortar carne. Aquela faca era, sem dúvida, um exemplar raro de precisão cirúrgica. Os frangos que Maria destroçava com ela, pareciam feitos de isopor, de manteiga... a propaganda da TV não lha enganara desta vez. A Ginsu serviria, sem dúvida, para a realização final da sua união carnal e definitiva com Sérgio; nesta noite ele seria, enfim, seu eterno amor.
Meses depois, diante do juiz, Maria não sabia responder se o Sérgio chegou a acordar quando ela desferira os primeiros golpes sobre ele, bem na região onde fica o coração, o seu coração. Só sabia que, nas semanas seguintes, alimentara-se com as deliciosas carnes do marido, que lhe eram como um banquete celeste, um “maná vindo dos céus”. Fizera com elas os mais diversos pratos, testando todas as receitas conhecidas e imaginárias – pois não queria desperdiçar nada daquele corpo que, agora, de fato, lhe pertencia em sua totalidade. Ela lembrava bem das aulas de filosofia na Faculdade, quando o professor, citando Feuerbach, dizia: “O homem é aquilo que come”. Os ossos, como num ritual sagrado, foram queimados, triturados e, misturados às farinhas, massas e condimentos, transformados em bolos, salgados, tortas, docinhos, quibes, et cetera.
– Maria, Maria! Como você pôde fazer uma loucura dessas?!
Perguntava-lhe o juiz, perplexo ante a narrativa das monstruosidades fundamentadas na filosofia de Feuerbach, na Sagrada Escritura e nas possessividades do amor. Condenaria Maria a 35 anos de prisão, não dispensando, claro, o seu acompanhamento psicológico.
– Se eu pudesse agarrar a alma do Sérgio, sua Excelência – disse Maria, olhando para o teto –, eu a beberia.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

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Das fantasias. Os apaixonados, coitados, vivem num mundo à parte: o mundo da Lua. Talvez seja por isso que a Lua exerça tão grande fascínio sobre os apaixonados. Ela, feminina (passiva), é iluminada pelo Sol (ativo) que lhe adorna em reluzente e embriagante prateado: reflete-o; ele, sobre ela, tal amante apaixonado, derrama (sêmen) os seus raios fecundantes de mais luz. Não é uma bela metáfora para o amor, o amor romântico? Vontade, fecundidade. Hoje, nas grandes cidades, a fumaça e os prédios encobrem o céu quase que por completo, e aquele romantismo de que agora a pouco falei, proporcionado pela luz fugidia do luar, quase não aparece mais. Mas, noutros tempos, isso não era assim. Minha mãe, a propósito, dizia que meu pai, dentre as muitas promessas que fazia para seduzi-la, prometia-lhe, caso ela quisesse namorar com ele, dar-lhe a Lua e, de bônus, as estrelas. Minha doce e ingênua mãe, nada entendendo de astronomia, aceitou a descabida proposta. Mas a única coisa que meu pai lhe deu foram dois filhos, sendo eu mesmo um dos tais, o último. Depois lhe deu o desprezo e, de saldo, a solidão de muitas e muitas noites frias e escuras. Paixão = sofrimento: “A paixão quer sangue e corações arruinados”, diz o Renato Russo na letra de “Longe do meu lado”, música em ré menor no álbum “A Tempestade ou O Livro dos Dias”, de 1996, da Legião Urbana. Mas, ai de quem tenta dar conselhos aos apaixonados; é que eles, em relação à frieza da razão, nada podem entender, têm a mente obnubilada pelo calor entorpecente da potente droga do amor novinho – toda paixão é um amor novinho, se ela vicia ou não, isso é outro departamento – e, por isso, eles só entendem o que querem entender, só ouvem o que desejam ouvir. Paixão é igual gripe suína: se não mata, passa.

terça-feira, 23 de junho de 2009

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Da perfeição. Tito conheceu Eleonora durante o show de lançamento do primeiro EP da Star 61, banda de um amigo seu, no Parahíba Café. Moça linda, professora de inglês na Wizard da Epitácio. Conversa vai, conversa vem, trocaram telefones para um novo encontro. E foi assim que, uma semana depois, eles se achavam lanchando no “navio” do Mag Shopping.
– Então, Elê... Posso te chamar assim?
– Sim! Claro!
– Você vai sempre ao Parahíba Café?
– Muito raramente; só quando minhas amigas vão e me convidam. E você?
– Eu? Eu até que tenho ido bastante nesses últimos dias; mas também não sou lá tão freqüente. Na verdade, eu só vou mesmo é quando tem alguma atração à qual eu esteja, de algum modo, ligado, seja por amizade ou por ofício.
É que o Tito, isso eu ainda não disse a vocês, é metido a produtor, músico, escritor, desenhista... faz de tudo um pouco: um brasileiro nato.
– Na verdade – continuou ele –, quem faz os lugares são as pessoas, não é verdade? Às vezes os lugares são bem legais, mas se a sua companhia não for boa, o ambiente acaba ficando chato, não é? E, às vezes, o lugar é bem chatinho, mas se você estiver bem acompanhado, as coisas se resolvem numa boa, não é verdade?
– Concordo plenamente.
Ela disse. E ele, procurando o que conversar, porque não a conhecia bem e, evidentemente, tinha que achar o que dizer a ela, ou perguntar – disso dependia o sucesso do encontro e a possibilidade de um outro, se fosse o caso –, perguntou:
– Mas, Eleonora, que tipo de música você costuma ouvir?
– Ah!, eu gosto de Zezé Di Camargo & Luciano, Aviões do Forró, Exaltasamba, Bruno e Marrone, Victor e Leo... “Percebo que o tempo já não passa,você diz que não tem graça amar assim...”, essas coisas...
– É mesmo?! Que interessante! – disse o rapaz, visivelmente decepcionado com os gostos musicais da moça. É que ele andava noutro mundo de cores e de idéias, in the wave of alternative bands, such as Sonyc Youth, Yo la Tengo, Galaxie 500, The Velvet Underground, Stereolab, Belle & Sebastian, et cetera. Era difícil para ele acreditar que alguém que gostasse de tais “sons” pudesse ser uma companhia agradável para algo mais sério, tipo um namoro.
– Bom – disse ele –, melhor a gente ir andando, né?
– Mas, já? Aqui está tão legal, você não acha?
– Olha, se João Pessoa fosse um cachorro, isso aqui seria a bunda do bicho.
....................
Moral da história: não há encanto que resista por muito tempo aos detalhes individuais das nossas tolas fantasias de perfeição. Uma simples palavra, às vezes, tem a fúria dos furacões, a potência da Bomba H. No mais, é como diz o filósofo João Estevam: “Cada qual, é cada qual”.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

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Das palavras etéreas. Na novela, à mexicana, Cláudio Fernando beija Serena e diz, com olhar de peixe morto: “Oh, Serena, como eu te amo! Você nem faz idéia de como te quero bem! Se eu pudesse, nunca me afastaria de você; e ficava para sempre colado ao seu corpo... assim...” Agora, numa tomada mais aberta, Cláudio Fernando beija Serena novamente, apertando-a contra si, em ardente fogo, fúria e sofreguidão. Serena, todavia, depois do beijo, ganha um ar de severidade, de desconforto, e se livra o mais depressa que pode dos braços fortes e peludíssimos de Cláudio Fernando. “O que você tem, meu amor? O que há de errado?” Cláudio Fernando pergunta, visivelmente confuso. Serena, pegando o vaso sobre o móvel, arremessa-o contra Cláudio Fernando, gritando, furiosa, com os olhos rasos d’água: “Você diz isso a todas, seu infeliz mentiroso! Seu monstro! Como você pode, Cláudio Fernando, como você pode ser assim tão... tão imprestável?! Como pode ser assim tão, tão... oh?!...” E, de supetão, sai da sala aos prantos, batendo a porta atrás de si. Cláudio Fernando, num flashback em branco e preto, lembra-se da cena anterior, quando do seu encontro com Clarissa... ele havia repetido as mesmas palavras, como que decoradas... palavra por palavra. Serena, certamente, estaria por trás de uma daquelas portas, daquelas cortinas. “Ah, porca miséria! mais que droga, Cláudio Fernando!”, recrimina-se, vencido: “Por que você não teve mais cuidado?”, pergunta-se. A câmara se afasta e, sobre o cenário, a luz vai sumindo. Agora, sozinho, na penumbra, com as duas mãos sobre a cabeça, Cláudio Fernando desaba sobre a poltrona. Escuridão. O amor, meus caros, é uma novela mexicana.

sábado, 20 de junho de 2009

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Da tranqüilidade. O amor de Pedro por Matilda era como a tranqüilidade de quem caminha sobre uma planície eterna, sem acidentes, sem aclives, sem declives, sem novidades. E, talvez por isso, ele se achava cansado. Pois vocês não sabem? A tranqüilidade cansa, fomenta o tédio. E foi num dia desses, de tranqüilidade, que ele conheceu Milena. A belíssima Milena, a semelhança do seu velho e cansado amor, tinha somente a repetição de algumas letras do seu nome; no mais, era a novidade, a expectativa de dias mais pungentes, vibrantes! As imagens do seu tranqüilo amor, de repente, viram-se embaralhadas pelo tufão que foi essa nova paixão. Aflorara agora, como nunca, os defeitos de Matilda em oposição às afrodisíacas imagens de Milena. Apaixonara-se. Apaixonando-se por Milena e, assim, apaixonara-se por sua própria imagem refletida naquele olhar magnético, cheio de promessas de um viço eterno. Teria de tê-la para poder ter-se a si mesmo, de um modo intenso e voluptuoso, tal qual nunca antes experimentara. Mas, a idéia de fazer Matilda infeliz fazia-o infeliz, também. Como chegar para ela e dizer: “O meu amor por você acabou. Eu amo outra pessoa”? Como acabar assim uma relação de tantos bons e maus momentos? Como botar um fim numa coisa que pensava ser eterna? E foi numa noite de outubro, depois do sexo desapaixonado e metódico que já a muito fazia, que Pedro falou para Matilda:
– Precisamos conversar sobre...
– Por favor, Pedro; eu tenho que lhe dizer uma coisa – interrompeu Matilda, assentando-se na lateral da cama. – É sobre o nosso casamento... Olha, Pedro, eu amo outra pessoa, e acho que não posso mais viver junto de você, mentindo, escondendo isso. Me perdoe por ser assim, tão direta, mas acho não sei dizer de outra maneira. E acho também que não posso mais transar com você só para manter as aparências... formais. Isso me dá nojo às vezes. Nojo de você, nojo de mim mesma. Me perdoe, Pedro. Não me tenha mal; eu lhe peço, por favor...
Naquele instante o chão, sobre os pés de Pedro, desapareceu. Como ela poderia estar fazendo isso com ele? Como poderia estar dizendo isso para ele? E ele olhou para ela como nunca havia olhado antes. Ela estava tão linda. Seu corpo nu, de costas para ele, ali na sua cama, era de uma brancura inebriante, erótica, provocante. Ele tentou tocá-la mais uma vez, uma, talvez, única vez. Mas ela recusou seu toque. Levantou-se da cama, pôs a camisola preta que adorava e saiu do quarto. Pedro não acreditava que aquilo tudo estivesse acontecendo. A sensação que percorria seu corpo era de leveza, de liberdade, de, estranhamente, tristeza. Pouco depois ela voltaria, com os cabelos molhados do banho.
– Eu vou levar uma muda de roupa para uns dias, depois mando alguém apanhar o resto – disse, mexendo nas coisas do guarda-roupa. Em seguida, segurando uma pequenina mala, ela sairia do quarto e da vida de Pedro, para sempre. Desde então, ele sequer suporta ouvir a voz de Milena ao telefone, seja convidando-o para o cinema ou para um outro programa em que os dois tenham de estar sozinhos. Na memória de Pedro, como em um retrato em branco e preto, há lugar apenas para as costas nuas de Matilda, para a sua voz dizendo “adeus; vê se se cuida”. E no seu coração, como num filme da Leni Riefenstahl, tudo é preto e branco, deserto e desolação.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

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Da união conjugal. Um dia, quando o Sol estava a pino, Zaratustra viu um homem carregando um asno com dois pesados fardos de feno. Os homens que o ouviam, num canto isolado da praça, viram os olhos do louco se enternecerem de compaixão ante a servidão passiva do inocente animal. “Ele vai falar”, pensaram. E ele falou: “Que vedes aqui, senhores?”, perguntou num gesto solene como somente ele sabia e ousava fazer. “Que vedes aqui?” E como os homens nada dissessem, pois que ele não esperava que dissessem nada mesmo, continuou: “Eu vos digo a que se afigura a cena: afigura-se a união entre um homem e uma mulher; a isso que todos dão o nome de casamento, realizado mediante contrato e troca de alianças, e em presença de testemunhas. Mas, tantas precauções, eu vos pergunto: por quê? Em tal união, um é, para o outro, naturalmente, cônjuge. Sim, e se não sabeis, tal palavra é revestida com o sentido de ‘fardo’, ‘fardo em comum’, ‘jugo com jugo’. Assim, no casamento, um e outro, mutuamente, comprometem-se em carregar um e mesmo fardo, na alegria e na tristeza. E ambos, inocentemente, acreditam fazer isso por amor. Pois, que outro motivo seria tão grande e tão sublime ao ponto de fazer com que alguém, além do seu próprio fardo, queira e comprometa-se perante testemunhas a carregar um outro? Todavia, eu vos pergunto: quem disse que, na vida, existe tal fardo? Quem disse que ele precisa existir? Compreendeis? A minha doutrina é a doutrina do novo homem: o homem-pássaro.” E as pessoas não entendiam porque Zaratustra usava tantas parábolas.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

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Da fortuna. Quando meu avô virou adubo, foi uma festa. Casa cheia, gente na sala, na cozinha, gente por todos os cantos. Os meninos brincando no quintal, e eu entre eles; as crianças não entendem o mistério e o sofrimento que traz uma desencarnação como aquela; só entendem o espetáculo: o mundo é céu ou inferno, sem as divagações contemplativas do Magnum Mysterium – sem a ratio é a experientia pura, ou a experientia docet, como Levinas diria. “Parem já com isso!” Dizia um. “Vão brincar mais longe!” Dizia outro. O mundo das crianças não é o mundo dos adultos. Dasdores, que Deus a tenha em bom e espaçoso lugar, que o diga. Nunca aprendeu a ser adulta, sempre criança. As pessoas diziam que ela era retardada em oito anos. Aos dezoito, tinha uma mente de dez. E o retardo, depois daí, parecia só aumentar. Assim, aos trinta, parecia ter somente oito ou nove anos, ou menos. “A bichinha!” Diziam os que se apiedavam da mulher-criança. “Veio ao mundo somente para sofrer!” Diziam as más línguas – ou não tão más assim – que o pai, aproveitando-se da sua ingenuidade de criança e do seu corpo de mulher, servia-se dos seus dotes sexuais. Mas isso ninguém nunca pôde provar. “O povo fala demais, e de tudo”, ele dizia. “Tem gente que, quando morre, precisa de dois esquifes: um pro corpo e outro pra língua”. O certo é que Dasdores, que não conhecia homem nenhum, pelo menos era o que todo mundo pensava, apareceu, assim, do nada, grávida. Aquilo, com certeza, não era obra ou graça do Espírito Santo. Que fosse uma obra não havia quem o negasse, mas não tinha graça nenhuma. “Meu Deus! Que escândalo!” A família em pânico. Quem teria embuchado a retardada; pobrezinha... E ela não dizia nada, nem mesmo sob as ameaças da mãe doente e da irmã mais nova que, com o tempo, assumira uma postura vigilante-ditatorial em benefício da segurança da irmã doida e da honra familiar. Tempos depois, quando não era mais possível esconder a barriga da infeliz, ela foi enviada à casa de umas tias velhas que moravam distante. “Assim ela pode dar à luz ao vivente em paz e escapar do falatório desse povo maldito. Tem gente que tem prazer na desgraça dos outros”, diziam às tias, procurando convencê-las a cuidarem de Dasdores. Meses depois a notícia: o menino nascera morto. Nem chegara a ver esse mundo desgraçado. Dasdores, depois de um período de descanso, foi enviada a um convento para ser guardada pelo Senhor e pelos muros enormes que protegiam o santo lugar. “Aqui ela ficará bem”, disse a madre superiora, despedindo-se da família. “Eu sei, madre, por isso que a trouxemos para cá”. Respondeu o pai, numa tristeza disfarçada de alegre alegria. “Nos dias determinados os senhores poderão visitá-la, conforme o tratado”. E assim foi. E assim passaram-se os dias que viraram meses, e os meses que viraram anos. Estranho foi quando, ó infortúnio!, Dasdores apareceu grávida novamente. Outro escândalo; desta vez não somente para a família, mas também para o convento. “Deus, amado!” Diziam as irmãzinhas em polvorosa, “quem teria engravidado a irmã Dasdores?” Cogitou-se a possibilidade de ter sido o padre Zé Vicente que, meses atrás, havia sido enviado a pastorear uma pequenina paróquia em Pinheiros, para escapar aos comentários de pedofilia que estavam sendo ventilados por toda a cidade. Pensou-se também se, numa infelicidade extrema, num descuido fatal, Dasdores não estaria grávida do jardineiro que, como ela, tinha uma mente de criança. Eram, afinal, crianças que podiam gerar crianças. Mundo cão! Mas o infeliz, mudo qual uma pedra, não fazia a menor idéia do que lhe diziam, a isso relacionado. Logo foi descartada a possibilidade. Mas, fato dado, quem teria sido o seu artífice? E agora? Fazer o quê? Entreolhavam-se os familiares de Dasdores e as irmãzinhas, coradas de vergonha. A solução que pareceu mais viável a todos e a todas foi enviar Dasdores, novamente, à casa das tias distantes. Elas, tementes a Deus que eram, não rejeitariam a um pedido assinado pela própria madre superiora. Quisera Deus que, como da outra vez, tudo se arranjasse, sem maiores complicações. E assim foi. E assim passaram-se os dias que viraram semanas, e as semanas que viraram meses. Ninguém pareceu se importar muito quando a notícia chegou: Dasdores, dadas as complicações de um parto agonizante, não resistira, morreu ao dar à luz uma meninazinha miúda, esquálida, pálida, viva, porém. A meninazinha, tempos depois, na Paróquia de Santa Helena, seria batizada com o nome de Maria Dasdores, em homenagem à mãe e à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de quem a mãe era devota, mesmo que não soubesse o que era isso. Dizem as más línguas que a menina, por esta data, decorrido apenas um ano do seu nascimento, já demonstra claros sinais de retardo mental. Mas o povo fala demais, e de tudo. Tem gente que, quando morre, precisa de dois esquifes: um pro corpo e outro pra língua.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

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Das típicas confusões do confuso amor. Gabriela amava Júlio, que, coisa mais normal – Drummond que o diga –, não a amava; porque no seu coração só havia lugar para Alfredo... que morreu de AIDS em agosto de ’99. “Agora que o Alfredo bateu as botas”, pensava Gaby, “o Júlio há de olhar para mim”. Qual nada! Cinco meses depois, numa festa de carnaval, o Júlio achou de se enrabichar por um traveco chamado(a?) Luana. Vai entender as coisas do amor... “Odeio esses viados!”, dizia Gaby em seus excessos de ira e frustração. Gaby, agora aos 40, diz ter amor somente por sua cadelinha poodle, que batizou com o nome de Alfredo, em memória (e vingança) do falecido. Nem Freud explica.
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Dos infortúnios. “[...] a história não é o lugar da felicidade. Seus períodos de felicidade são suas páginas brancas”; sábias palavras de Hegel. A Sra. Ayer casou contra a vontade, para satisfazer os desejos dos pais, aos quais obedecia cegamente. Viveu com o Sr. Alfred Ayer longos e infelizes vinte e oito anos. Longos porque, nesse tempo todo, ainda morava em seu peito a imagem de Leonard Gilthyer, a quem amava desde a mais tenra idade; tristes porque, de algum modo, sabia que não podia tê-lo, a não ser por meios ilícitos – o que ia contra a sua natureza e os votos feitos no altar, perante o Senhor e todas as testemunhas. Mas, quem jamais compreendeu os desígnios do Senhor? Numa bela tarde, em pleno vigor de sua saúde, o Sr. Ayer faleceu, abruptamente. A causa misteriosa, misteriosíssima, nunca seria descoberta. A Sra. Ayer, não acreditando nos pensamentos que lhe vinham à mente, chegou a pensar se o Senhor, nos altos céus, na sua infinita misericórdia, não estaria lhe dando uma nova chance de ser feliz na terra, ao lado do “seu” belo Leonard – que ela sabia ter, também por ela, os mesmos sentimentos que lhes eram, até então, impossíveis. Já durante o funeral, que se realizou na tarde chuvosa do dia seguinte, sem muitas pompas, a Sra. Ayer diria a Leonard, num misto de tristeza, alegria, ansiedade e discrição: “Meu amor, agora você precisa ter paciência. Já suportamos tudo isso até aqui; poderemos, certamente, aguardar mais um pouco até que o morto seja esquecido pelo populacho”. E Leonard, sempre amável e paciente, assentiu à proposta. Os sofrimentos da Sra. Ayer, nos dias que vieram após o incidente, multiplicaram-se assombrosamente. Por um lado, sofria com o remorso de não ter sido uma boa esposa e, na morte tão repentina do seu pobre marido, não ter disposto do tempo necessário para lhe pedir perdão por algo que houvesse feito, contrariando-o; por outro lado, sofria com a expectativa de que o tempo passasse para que ela, por fim, pudesse entregar-se ao amor do seu Leonard. E assim, quando não era assombrada pelo fantasma do seu marido, reclamando um amor que nunca tivera, era assombrada pelo fantasma da solidão, do desejo de possuir e ser possuída, finalmente, pelo amor a que resistira por tantos e tantos anos. Passaram-se duas primaveras antes que a Sra. Ayer recebesse pela primeira vez em sua casa o respeitável e distinto Leonard. Marcaram o casamento para o final de maio do ano seguinte. Para manter o respeito e as aparências, restringiram os encontros a dois por semana, e sempre na presença de convivas, para que não levantassem suspeitas quanto à idoneidade das pessoas dos enamorados e daquele novo relacionamento. Fim de maio. O dia tão esperado, por fim, chegara. A Sra. Ayer quase não conseguia se conter de alegria e ansiedade. Por que as horas não passavam? O noivo, que morava próximo dali, viria em uma charrete especialmente alugada para a ocasião festiva. As horas pareciam eternas... E Leonard, por que não chegava? Quando o criado chegou, a Sra. Ayer previu mil recados, exceto aquele que aquela infeliz criatura trazia: o animal que puxava a carruagem assustou-se, não se sabe com o quê, e, descontrolado, fez a carruagem tombar. Num lance de pura infelicidade, Leonard caíra de costas, batendo com a cabeça numa pedra à beira do caminho. Morrera em seguida.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

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Dos vinhos. De conformidade com o provérbio latino, a verdade está no vinho (In vino veritas). O mesmo é dito por Balzac, nos Esplendores e misérias das cortesãs: “Corentin chamou Derville de parte e disse-lhe: – In vino veritas! A verdade está debaixo das rolhas”. Pois foi assim que Carlos Eduardo, numa festa de final de ano, depois de anos e anos de solidão e de amoroso silêncio, mediante os efeitos inebriantes do néctar dos deuses, declarou à Maria Estela, de joelhos, no meio sala, entre os convivas: “Eu te amo, Maria Estela; sempre te amei”. O povo amigo, igualmente alterado, desabou em assovios e aplausos de “arre! finalmente!”, e danou-se a repetir, com palmas desencontradas: “Beija! Beija! Beija!...” Era evidente que o Carlos, in natura, não teria coragem de fazer o que fazia ali, aquela cena toda. E Estela sabia que ele, apesar do porre, falava sério e tinha lucidez suficiente para compreender as implicações decorrentes do fato dado. Todos na sala, os que assistiam a cena “hollywoodiana”, sabiam que Estela também nutria o mesmo sentimento em relação ao confessante que esperava uma resposta favorável ao seu amor de tanto guardado. Estela, todavia, corada de vergonha ante a cena tão cafona, só conseguiu mesmo foi deixar a sua taça cair, manchando a ponta do tapete. E todos que esperavam ouvir um “eu também te amo”, ouviram apenas uma voz tristonha e melancólica que dizia por entre os dentes: “Levante daí, Carlos! Você tá ridículo!” E a festa, claro, não foi mais a mesma. É, in vino veritas, de um jeito ou de outro. Estava claro que Estela, in natura, não diria aquilo ao homem da sua vida; o homem que, no dia seguinte, e nos dias subseqüentes, passou a evitá-la como o Diabo à cruz. É que o Carlos Eduardo, além da vergonha do horroroso vexame, nutria agora uma crescente antipatia àquela que, de modo tão frio, o rejeitara.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Livro 1
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Onde são dados exemplos cotidianos do amor romântico, e do trágico que impera no mundo. A dor, como na filosofia de Arthur Schopenhauer e nos filmes de Werner Herzog, é o motor de tais modelos que, somente do Livro 2 em diante, serão aclarados.
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Das amorosas opções. Etelvina amava Marcelo, a quem chamava de Marcelinho, “meu Marcelinho”. Mas então, oh, lástima do acaso!, surgiu Vicente; que a mulherada toda dizia ser um “poço de perdição de boniteza”. E Etelvina, que amava Marcelo, viu aquele amor todo voar para os olhos de Vicente, os cabelos de Vicente, a boca de Vicente, e tudo o mais que dizia respeito ao Vicente. Viva Vicente para presidente! Pois vocês não sabem?!... O amor é sempre assim, exagerado. Grita nas vias públicas; envia torpedos e recados melosos no Orkut; é grudento e adocicado igual suco de mangaba, ou doce de goiaba. O amor tem dessas macaquices: está num galho, fazendo caretas e comendo piolhos da cabeça do outro e achando tudo lindo e maravilhoso; daí, “de repente, não mais que de repente” – que nem no poema do Vinícius –, pula para outro galho mais verdoso, segundo o seu incerto e fogoso juízo. E “do riso faz-se o pranto. De repente, não mais que de repente”. É por isso que o amor também vive acompanhado da dor, por causa da sua constante inconstância. Vez por outra, naqueles pulinhos, um galho desses se parte, e o amor, cheio de si, pesadão, despenca galho abaixo, vai ao chão. Já viu um amor durar para sempre? Nunca! Só naquelas histórias bestinhas que contam às crianças de oito anos: “... e os dois viveram felizes para sempre”. Não, meu amor. O amor, na vida real, é como a fé: está em tudo, mas é cego e burro, muito burro... burricíssimo! Quem tem razão é o Hermann Hesse, quando diz: “A fé não passa pela inteligência; e muito menos o amor”, e, noutro lugar: “Crer é confiar, não pretender saber”. Pelo mesmo caminho vai o “amor romântico”, mas ele próprio (a Vontade), que nada tem haver com “romantismo”, sonha sempre com um galho mais verde que aquele onde se pendura; sonha sempre com um rosto que nunca mude – como se quisesse para si uma estátua que fosse viva. Mas acontece de as árvores secarem, e o amor, que não gosta de pau seco, anda sempre por outros galhos. E é assim que sempre vai ter gente besta dizendo que vai amar para sempre aquele – ou aquela – que diz amar; e é assim que, também, surgem as tolas promessas de que nunca vai haver um galho mais verde e mais vistoso que esse que agora se tem – pois que o amante sempre pensa em possuir o amor do outro. E na sua felicidade do momento, deseja a eternidade. Daí Nietzsche, por boca de Zaratustra, dizer que “todas as coisas acham-se encadeadas, entrelaçadas, enlaçadas pelo amor” e que inutilmente dizemos ao sofrimento: “Passa... [...]! Pois quer todo o prazer – eternidade”. E daí também o Manoel de Barros, numa tirada de mestre, dizer que “[as] duas coisas que não vão acabar nunca no mundo são: gente besta e pau seco”.