quarta-feira, 11 de novembro de 2009

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Das flores e do símbolo [II]. Na história do mundo, e nas mais variadas culturas e religiões, conforme o belíssimo estudo do mitologista americano Joseph Campbell em The power of myth – um livro em seis partes, baseado numa série de documentários que foi ao ar em 1988, na americana PBS (Public Broadcasting Service) -, as flores costumam aparecer como meios pelos quais o Sagrado também, bem, pode se revelar; conforme entendem os homens religiosos, e conforme as suas teologias. No último livro da Divina comédia, por exemplo, Dante contemplava o paraíso como uma rosa branca, imaculada, sobre a qual e “como um enxame de abelhas”, anjos pousavam e alçavam vôos reverentes. Subindo, os anjos fitavam o interior da Suprema Luz, vendo ali a beatífica Trindade. Acontece que, como ocorre na história de Brahma – que tem quatro cabeças e está entronizado na Índia sobre o lótus do sonho de Vishnu –, assim também ocorre com a imagem que Dante faz da Trindade no interior da rosa, um Deus que se manifesta em três pessoas e que, como diz Campbell, “ao poeta foi dado conhecê-las por intermédio de seu enlevo na beleza de uma mulher terrena”, Beatriz.
Emile Mâle, em seu livro Notre-Dame de Chartres, de 1948, falando da Virgem que aparece no portal oeste de Chartres e no portal de Sain Anne da Catedral de Notre Dame de Paris, observa que: “A Virgem do século XII e do início do século XIII é uma rainha. Ela aparece entronizada em solenidade real. Ostenta a coroa sobre a cabeça, porta o cetro de flores na mão e tem o filho sentado em seu joelho. Dessa forma, ela se apresenta no belo vitral de Chartres conhecido como ‘la belle verrière’, e também no maravilhoso vitral de Laon”. “O cetro florido na mão direita da Madona entronizada”, afirma Campbell, “- sendo ela o próprio trono vivo de seu filho – corresponde simbolicamente ao lótus na mão esquerda da deusa budista [Tara]. Sentada sobre um trono de lótus sustentado por um par de cariátides leoninos, simbolizando o ‘rugido do leão’ da sabedoria de Buda, ela mantém a mão direita aberta no gesto da ‘dispensação das bênçãos’, enquanto, acima do lótus, na mão esquerda, flutua a imagem de um Buda salvador. Analogamente, a coroa sobre a cabeça da Virgem Mãe revela seu caráter celestial, a criança sobre seu joelho corresponde ao Buda no ícone oriental”.
O humano e o divino, aí, aparecem num dualismo que não é chocante, embora contraditório: humanidade e divindade, terra e céu, maternidade e virgindade, temporalidade e eternidade, et cetera. Como o vitral de Chartres que, embora seja feito de matéria terrena, é transpassado pela luz do sol, que revela cores e constitui-se, em si, num “agente revelador” de Maya (ilusão); assim também as flores, como o lótus ou a rosa, revelam uma intenção metafórica, subconscientemente humana. Desse modo, o lótus no ombro esquerdo da Rainha Dedes da Dinastia Singasari – uma estátua-retrato que personifica Prajna-paramita (um ser mítico que simboliza a doçura da “Sabedoria [prajna] da Margem do Além [paramita]” – sustenta o livro que ensina tal revelação oriunda de muito além dos opostos ilusórios.
Indólogo, mitólogo e historiador da arte, o alemão Heinrich Robert Zimmer, numa palestra sobre a simbologia na arte hindu, fala que, em 1220 d.C., o rei governante de Singasari foi derrubado por Ken Arok, um aventureiro que se casaria com a Rainha Dedes e subiria ao trono com o nome de Rajasa Sang Anurvadhumi. O novo rei teve um reinado breve e, em 1227, foi morto. “O principal tesouro que nos resta de seu tempo”, diz Zimmer, “é [uma] imagem de sua consorte, como a Shakti do Adi Buda”. Acontece que o termo shakti, em sânscrito, tem uma importância capital para o que aqui nos interessa: a flor e o seu símbolo. Shakti pode significar “poder”, “capacidade”, “energia’, “faculdade ou aptidão”, e do modo como temos utilizado aqui, diz respeito a um poder ativo de uma divindade masculina incorporado em sua esposa. Toda esposa, assim, é shakti do seu marido, toda mulher amada é shakti do seu amado – como fora Beatriz para Dante, Isolda para Tristão, Julieta para Romeu, Yashodhara para Sidarta, Dalila para Sansão. Em hebraico, o nome de Dalila soa onomatopéico, vindo de “dal”, que significa “fraco”, “débil”, “doente”, “hesitante”. Mas Dalila tem algo que faz Sansão muito fraco, o sexo. “Sansão, o herói, o valente, o forte, o guerreiro, o estrangulador de leões, o super-homem que enfrenta mil filisteus com apenas uma queixada de burro, ele que carrega nas costas os portões da cidade até o topo da montanha, esse gigante é vencido pelo sexo fraco, pelos requebros e pelo choro duma mulher. A história de Sansão e Dalila põe duas forças em confronto: a virilidade física do homem e a beleza sedutora da mulher”, são palavras de Rômulo Cândido de Souza, em Palavra, parábola: uma aventura no mundo da linguagem. “Para nos aprofundarmos ainda mais”, diz Campbell, “a palavra shakti denota poder espiritual feminino em geral, do modo como se vê, por exemplo, no esplendor da beleza ou no nível elemental do poder absoluto do sexo feminino para produzir efeitos no masculino. Atua no poder que o útero tem de transformar a semente em fruto, para nutrir, proteger e dar à luz”. A analogia do útero ou do órgão sexual feminino com a flor não é feita de modo gratuito. No plano psicológico, e de modo análogo, shakti é o poder que o sexo feminino tem de induzir o homem à sua razão, sua realização enquanto homem (plantar a semente [sêmen]) e/ou, do modo contrário, destruí-lo em sua masculinidade. Goethe sabia disso, e, nos conhecidos versos do Fausto, dizia: “Das Ewig-Weiblice / Zieht uns hinan”, ou: “O eterno feminino / Nos incita a progredir”.

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