quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

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Dos divórcios. Os divórcios, propriamente ditos, existem bem antes de os casais se separarem; são como o “não matarás” dos Dez Mandamentos, em que se condena a intenção, que mata antes. A palavra “divórcio” (divortiu), que é um substantivo masculino, tem a mesma raiz de diversus, que é o particípio passado de divertere, que significa “andar em direção diferente”. Acontece que o divórcio é justamente isto: o fim de uma caminhada de dois corpos juntos, porém, em espírito, separados. Há quem ensine que, mais do que a união dos corpos, os casamentos devem ser, para durar, a união dos espíritos. Falar em “união de espírito”, não é o mesmo que falar da similaridade anímica que “igualha” duas pessoas, de modo que ambas pensem o mesmo, sintam o mesmo; é, antes, o esforço em cumprimento de um ideal que se cultive em comum acordo, ideal de ir adiante – como num jogo de frescobol, e nunca de tênis. Casamento, pra durar, tem que ser como frescobol, não tênis. Quando o apóstolo Paulo escreveu o texto que encontramos na carta aos Filipenses, nas exortações finais, fez um pedido: “Rogo a Evódia, e rogo a Síntique, que sintam o mesmo...” “Sentir o mesmo” é um pedido por entendimento no esforço de ir adiante – parece que os dois, Evódia e Síntique, embora fossem cristãos, não se entendiam muito bem. O apóstolo sabe tanto que esse seu rogo é difícil de ser atendido que, noutra carta, agora aos Efésios, pede que os cristãos vivam “suportando uns aos outros, por amor...” A importância dessa união se dá pelo fato de a própria Igreja ser sempre exemplificada na união matrimonial. Ainda na carta aos Efésios, o apóstolo diz: “Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e se unirá a sua mulher, e serão os dois uma só carne. Grande é esse mistério, mas eu me refiro a Cristo e à Igreja”. Desde o livro de Gênesis, a união matrimonial traz, de modo alegórico, a essência dinâmica da Igreja. Exemplo disso é a parábola das 10 virgens, na qual o Cristo aparece como noivo. Elas, as cinco prevenidas, são a Igreja, com quem ele vai às núpcias; as cinco imprudentes, são o mundo (no sentido de “sistema/viver mundano”, “pecaminoso”), que fica fora dos muros da casa. É uma metáfora escatológica de casamento e divórcio, de salvação e danação eternas. Sendo a Igreja indissolúvel – (“... as portas do inferno não prevalecerão contra ela”), é de se supor que os casamentos também o sejam, se levamos as analogias mais a fundo. Na prática, porém, a realidade das coisas não é bem assim – nem de uma e nem de outra perspectiva. Acontece que, enquanto a Igreja é pensada como um estamento espiritual (ideal), os casamentos são coisas materiais. Muitos casais, embora unidos materialmente, estão separados em espírito, são/estão divorciados. Estão, literalmente, “suportando um ao outro, em amor”... Mas, amor a quê? Às aparências sociais? Ao dinheiro que uma separação litigiosa move? Às famílias envolvidas? Ao preceito teológico que faz o Outro ser “próximo” e, por isso, digno de um amor recíproco, altruísta, sacrificial? A quê? A quê?... Mais do que aos próprios irmãos (a irmandade fraternal da Igreja reunida), os cristãos amam “a idéia” de irmandade. Por isso que a união carnal de um homem com uma mulher tem muito mais a ver com a alma do que com a substância. Quando os casais se separam não é por causa do corpo, mas por causa da animosidade contraditória de ambos, “em espírito”. Quando os espíritos aprendem a “com/viver”, apesar das diferenças, as separações não acontecem – mas eles vivem, no peso do real, em obediência à leveza do ideal. Mesmo assim, para o cumprimento dessa obrigação cristã, é muito, mas muito difícil mesmo obedecer ao imperativo paulino: “... que tenhais o mesmo ânimo” (ou “... que sintam o mesmo”). Pois bem, essa concepção cristã da vida conjugal – associada à essência da própria Igreja, instituição sagrada – é normativa (pelo menos em tese) aos que se submetem à sua doutrina, ou pelo menos a ela não se opõem. Mas, a quem pensa diferente, como Walt Whitman (que diz: “Quem anda duzentas jardas sem vontade, anda seguindo o próprio funeral, vestindo a própria mortalha”), tal convívio é um inferno certo em função de um paraíso duvidoso. Mais do que unir os corpos, o apóstolo ensina que os casais devem aprender a unir as almas; apesar das diferenças. Era em obediência a um preceito estranho a esse que, antigamente, quando o marido era transferido para um fim de mundo, como conta Rubem Alves, “a mulher era obrigada a ir. Ia contra a vontade, ficava triste, chorava, ficava deprimida, perdia a vontade de fazer amor, e o amor virava ressentimento, e ela pensava em silêncio: ‘Quando ele morrer, eu volto para o lugar de onde vim...’ Quem anda por um caminho obrigado, contra a vontade, fica desejando que aquele ou aquela que obriga morra. A liberdade é assassina”. Essa interpretação do Rubem, mais do que paulina (ideal), é whitmaniana (real) – e, como você pode ver, mais próxima do que vemos, não do que sentimos, ou acreditamos. Mais adiante, e ainda no mesmo sentido, Rubem acrescenta: “Por vezes o divórcio é o jeito de parar de andar contra a própria vontade, o jeito de não seguir o próprio funeral – e nem desejar o funeral do outro...” Há casos em que os espíritos são irreconciliáveis, apesar das doutrinas, apesar dos esforços comuns...

5 comentários:

  1. Meus namoros sempre foram o que chamam de namoro sério, sempre se encaminhavam naquela linha – pra casar. Mas na verdade, eu não me entregava, estava ali, mas vivia pela metade, porque no fundo o casamento não fazia parte de meus planos. Eu sempre estava apaixonada, mas fugia de casamento como o diabo foge da cruz. Não porque eu não acreditasse em casamento, pelo contrário, não queria casar justamente porque acreditava demais nisso. Isso é, eu almejava viver um relacionamento, um casamento que não existia no mundo real. Eu olhava a minha volta e via um mundo destruído, um mundo de relacionamentos falsos, que se sustentavam por mil motivos, mas nunca por amor e respeito. E nisso eu não queria tomar parte. Desde sempre eu sabia (me conheço bem) que para mim seria impossível viver uma farsa. Mas o tempo foi passando, eu fui amadurecendo e vendo que nem tudo estava perdido. Alguns casais realmente viviam uma vida de amor, respeito e dedicação. Não que não tivessem problemas, não é isso, mas como para eles “separar” não era uma alternativa, eles sempre acabavam encontrando um jeito de resgatar a felicidade e o frescor., porque encontravam no amor e na convicção de estarem sempre juntos a liga perfeita para seguir adiante. Então eu me abri para essa possibilidade. Abri as portas e permiti que o casamento me alcançasse. Metida a sabe tudo como sou, tratei de me abastecer intelectualmente de todas as técnicas possíveis para fazer um casamento ‘funcionar’ e por algum tempo fui capaz de jurar que tinha encontrado a “terra prometida”. Mas a vida, o destino, minha incompetência ou sei lá o quê... foi implacável e meio que do dia pra noite, tudo desabou. A impressão que eu tenho é de tsunami mesmo, sabe. Não sei onde exatamente eu peguei ou nós pegamos caminhos diferentes, não sei... olho pra trás e penso: mas dois e dois não são quatro? Eu tinha colocado dois na mesa e ele também, tenho certeza, eu vi! Eram dois e dois, então, como é que virou cinco? A emoção acabou. Mas como???? Eu não contava com isso, nunca cogitei isso... pra mim, casamentos acabavam porque você ou o outro faziam alguma merda, uma grande merda. Pra mim, tudo era muito cartesiano e eu repetia sempre: “amar é uma decisão!” Eu estava preparada pra isso, pra uma merda, qualquer merda. Uma traição, um filho fora do casamento, falta de grana, doença... eu estava preparada pra decidir continuar amando quando a merda acontecesse, mas a merda não aconteceu e eu não sei quando, nem como eu parei de amar.

    Nem sei como cheguei no seu blog, vim pulando de um blog pra outro e cheguei aqui. Mas o seu texto me prendeu de tal forma que foi impossível não me derramar. Desculpa o desabafo.
    Lia.

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  2. Tão bom quando você aparece, quando escreve... adoro! Sabe, são por blogs como o seu, do Marcelo Mayer e outros que eu fico P da vida quando leio comentários negativos sobre o conteúdo dos textos na blogosfera.

    Verdades doloridas nesse post de hoje.

    Dei uma olhada no MySpace do Madalena Moog, gostei muito. Também dei uma fuçada na net e vi alguns vídeos da banda. Como faço pra comprar o Cd?

    Beijos.

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  3. A carapuça serviu direitinho. Entendi, gostei da clareza e mais uma vez o texto que está ótimo, lembrou minha (que eu deveria ter dito nossa) família. Existe o desejo de juntar todos que fazem parte da mesma família, e esse desejo supera a incompatibilidade da "união de espíritos" cultivando o ideal de "ir adiante". Quando há opção pelo divorcio sem a preocupação com os outros membros da família, nem sempre fica tudo bem. A família dar uma direção, um rumo, situa a pessoa no mundo. Há conceitos que enraizam, ficam impegnados como a visão do casamento e a ligação com a família. Nem sempre sou moderna!!!

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  4. Querida Lia, obrigado pela confiança, pelo desabafo; fiquei comovido. Mais uma vez: obrigado; e volte mais vezes. Obrigado também à Letra, Marta e Clarissa, pelos comentários tão queridos e por encontrarem sentido no que digo. Feliz Ano Novo pra todos nós. Beijos.

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patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo