quinta-feira, 29 de outubro de 2009

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Do significado emotivo [ou Uma segunda opção contra o pessimismo em “Das amorosas nostalgias”]. O amor, para Spinosa, “é uma alegria acompanhada da idéia de uma causa exterior”. No amor “de Spinosa”, não há necessidade da presença física do outro; não há uma urgente querência, nem uma falta. A existência do objeto amado, basta, ao que ama. O desejo de união do que ama ao abjeto do seu amor é, meramente, uma propriedade do amar, e não, sob nenhuma hipótese, sua essência. Antes de estar no outro, é em mim que o amor está. E a alegria de amar é, por isso mesmo, uma alegria antecipada, antes do encontro. Não era isso que dizia a Raposa nas suas lições sobre “cativar”, ao Pequeno Príncipe: “Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade!” Antes, porém, quando o principezinho anuncia que vai partir, e a Raposa diz que vai chorar a sua falta, ele pensa, com a mente de uma criança: “Viu? Não é bom isso de cativar ou ser cativado, porque, na minha ausência, você vai sofrer”. Mas a Raposa, com a mente de um filósofo estóico, diz: “Não! Não fale assim! O vento soprando o trigal dourado, no crepúsculo, me trará à lembrança os teus cabelos dourados, e me trará você; é uma saudade boa. Dói, mas é boa. E eu sorrirei com a sua imagem bem viva dentro de mim, o meu sorriso secreto”. A imagem viva, em nossa paráfrase, é a do que pode haver do objeto amado. Ama-se não a ausência, mas a presença da memória, do amor que houve e que, só assim, por ter ido, pode, de fato, haver. A presença constante do objeto amado aniquila o amor. Lembra o dito do Quintana? “O sumo bem só no ideal perdura... / Ah! Quanta vez a vida nos revela / Que ‘a saudade da amada criatura’ / É bem melhor do que a presença dela...” (2, 32). Antoine de Saint-Exupéry sabia bem disso. Tanto sabia que, noutra parte, repete as mesmas palavras ao dizer: “Se tu amas uma flor que se acha numa estrela, é doce, de noite, olhar o céu. Todas as estrelas estão floridas”. Também o baiano Jorge Amado, naquele que é um dos mais belos romances/fábulas já feito por um brasileiro (O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá: uma história de amor), com base na obra de Estevão da Escuna, poeta popular da Bahia, trata sobre essa memória doída e, “incoerentemente”, boa. A fábula, publicada em 1976, trata de um amor impossível, incompatível, entre um Gato – que era, para todos na floresta, feroz e mal-humorado – e uma jovem Andorinha, que via o Gato rabugento como um desafio. O romance, que tem o prazo de um ano, começa na Primavera - tempo das flores e das promessas de vida - e finda no Outono – tempo da solidão, dos dias cinzentos e das folhas despencando no chão, e das árvores com os galhos nus contra o céu –, aparentemente, de um modo bem infeliz: a Andorinha acaba se casando com um Rouxinol e deixa o Gato. E assim, depois de tudo, vem o Inverno, e a tristeza mais triste... “Mas”, acode-nos o Jorge,

Mas porque falar de coisas tristes, por que contar as maldades do Gato Malhado cujos olhos andavam escuros de tão pardos? Disso falavam as cartas enviadas pelos habitantes do parque, cartas que o Pombo-Correio levava a outros parques distantes. As notícias chegavam até o longínquo esconderijo da cobra Cascavel e mesmo ela tremeu de medo. Diziam da maldade do Gato, mas diziam também de sua solidão. Jamais o Gato Malhado voltara a dirigir a palavra a quem quer que fosse. Tão grande solidão chegou a comover a Rosa-Chá que confidenciou ao jasmineiro, seu recente amante:
- Coitado! Vive tão sozinho, não tem nada no mundo...
Enganava-se a Rosa-Chá quando pensava que o Gato Malhado vivia solitário e não tinha nada no mundo. Bem ao contrário, ele tinha um mundo de recordações, de doces momentos vividos, de lembranças alegres. Não vou dizer que fosse feliz e não sofresse. Sofria, mas ainda não estava desesperado, ainda se alimentava do que ela lhe havia dado antes. Triste, no entanto, porque a felicidade não pode se alimentar apenas das recordações do passado, necessita também dos sonhos do futuro.

O velho Jorge sabia das coisas; sabia bem o que dizia, e cada palavra, aí, tem o seu lugar marcado, insubstituível, como o Chico em suas músicas. Indo mais além e de modo mais... poético-otimista, Spinosa entende que há uma satisfação do que ama, hoje mesmo, e mesmo que o objeto do seu amor tenha partido sem promessas de voltar amanhã, ou depois de amanhã. A satisfação de amar é a própria expectativa, e a sua possibilidade, ou a recordação primaveril do amor. Ah! Os cabelos dourados do Pequeno Príncipe; o vôo delicado da Andorinha Sinhá; o retrato dela, dele... A alegria amorosa tem uma significação emotiva atemporal. No final, afinal, cativa-se não o Outro, mas a sua imagem, que vive em nós, enquanto vivemos.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

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Das amorosas nostalgias. A Saudade é irmã gêmea da Tristeza, filha a quem Amor mais se afeiçoa. Pai ordinário, faz de Tristeza um instrumento, aquele que leva os amantes à loucura. Por isso que a Saudade mora na casa do passado, ao passo em que a Tristeza, presente, não tem casa nenhuma – porque mora onde quer, nômade por vocação. O mundo inteiro é o seu lar, e os corações dos homens e das bestas irracionais são seus quintais, seus playgrounds. E as duas irmãs vivem assim: distantes e próximas; porque assim completam todo o engenho, todo o mecanismo emocional. Saudade pode morrer, em vindo, por exemplo, o encontro com o “objeto” que lha causa... é o que se chama de um encontro feliz; mas Felicidade também tem vida curta. Tristeza, diferentemente, não morre nunca – só para quem morre, mas aí já é outra categoria. “Tristeza não tem fim; felicidade, sim”, diz o Vinicius, no poema A felicidade. De fato: Felicidade – frívola amante de Amor – sempre morre pela inconstância deste. Mas o fruto de tal coito metafísico é, novamente, Tristeza. Ela, como o fogo para Heráclito, é sempre outra, devindo, mas recebe sempre o mesmo nome. Do outro, morto, morta, fica a recordação: recordação do que foi bom e que, agora, naturalmente, já não é... e é: a presença de uma ausência que dói. Tristeza. Não se tem saudade das coisas que foram ruins, como, por exemplo, a extração de um dente siso. É certo que a Saudade, também, pode ser o único fio a ligar o objeto amado àquele ou àquela que não mais o possui. De algum modo e por algum artifício psicológico, nosso cérebro procura eliminar as más recordações, ao passo em que preserva as boas. E mesmo que a lembrança das coisas boas seja, agora, ruim – pelo fato dessas mesmas coisas não mais estarem conosco, e estarem (em nossa saudade) –, ela também é, numa contradição da vontade, boa. “Dos nossos planos é que tenho mais saudades / Quando olhávamos juntos na mesma direção. / Aonde está você agora além de aqui dentro de mim?”, canta o Renato Russo numa tristeza confessa, na letra de Vento no litoral, do álbum V, de 1991. O objeto amado se foi, mas mora, como uma saudade dorida, dentro do peito. De algum modo nós entendemos, numa comovida resignação, que as lembranças tristes nos dizem que, nesse mundo cheio de pequenas alegrias e grandes tristezas, todos experimentam essa alternância da roda da fortuna. E se agora só há tristeza, é que a roda ainda não fez o seu giro completo. A Vontade da vida nos faz crer assim porque, do contrário, nos entregamos ao fatalismo doentio que, psicossomático, nos leva à degeneração anímica, letárgica. A ignorância também nos preserva disso, e é, por esse viés, uma bênção - mas a tristeza pode vir em igual medida para todos. A lembrança de alegrias passadas, por fim, bem pode ser uma promessa de novas alegrias, mais adiante... se houver mais adiante. No final, como saldo positivo dessa contabilidade sentimental, fica assim: se a Saudade traz a Tristeza, é que houve uma Alegria (Felicidade, não; porque aí já é otimismo demais; e ser otimista é ser idealista, e ser idealista é achar-se embriagado, entorpecido), e se houve uma Alegria, outras mais são possíveis. O idealismo é o ópio do povo!

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

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Dos homerismos. “O amor puro engrandece as almas; e quem sabe amar, sabe morrer. Não há pérola semelhante ao amor”. Palavras de Victor Hugo, poeta francês. Acontece que os gregos, não menos poetas – conforme representados nas epopéias –, deram à palavra “amor” um peso tão maior quanto as palavras honra e glória - é por amor a essas duas que se morre, se mata, torna-se herói. O herói trágico é amado pelo seu espírito elevado, acima do indivíduo comum. Heroísmo, essa coisa tão desejada e divinizada pelo homem. Qual o herói que não é trágico e que, bufão, merece mesmo tal título? O desencanto com os heróis, no final da letra de “Cidadão da mata”, de Chico Anysio e Arnaud Rodrigues (Baiano & Os Novos Caetanos, álbum homônimo de 1974), é tocante: “Amo, amo a mata. / Amo o verde que me envolve, / O verde sincero que me diz que a esperança não é a última que morre. / Quem morre por último é o herói, / E o herói é o cabra que não teve tempo de correr...” “O heroísmo de pouco vale”, diz Camus, “a felicidade é mais difícil”. Ideais altruísticos? Não mesmo! No lastro das intenções tudo é bem mais subjetivo, e ao critério de cada um... o amour de soi impera, absoluto. Ademais, morre-se por tudo nesta vida; e pelo engano divinizado como Verdade, em especial. Tristão e Romeu, só pra citar dois dos exemplos mais conhecidos, têm a mesma culpa: a culpa do amor mortal: que morre, que mata. Matando ou morrendo, “por Isolda ou por Julieta”, e por eles mesmos que eles morrem, que eles matam. Não ser herói, um exercício à Virtude.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

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Das redes telúricas de um romance ideal. Há quem pense, na sua insanidade amorosa, que o amor é um só, e que dura para sempre. Fala-se até em “alma gêmea” – que nem fazia a Lorayne (cf. 1, 43). Esperando pelo amor de Julio, morreu coroa, cotovelos na janela, olhos fitos na estrada sinuosa... Julio nunca veio. Nesses casos, particularmente nos casos semelhantes ao de Lorayne, o ser amado habita no mundo fantasioso da apaixonada ou do apaixonado que não consegue ver mais nada nem mais ninguém além da onipresente figura fantasmagórica daquele que lhe tem prendido. Pois vocês não sabem? Não há melhor prisão do que esta: a da pseudo-eterna-unicidade do amor. “Não sei amar na vida mais ninguém”. Conversa! Isso só cabe na poesia. Do contrário, é doença, perturbação psicológica. Ainda hoje há pessoas que, a espera de um grande amor (de um “príncipe encantado” que chegue montado num cavalo branco), deixam o tempo correr sem que percebam os amores possíveis que sempre vê, e que existem por toda a parte – amor possível é aquele que, mesmo vazio de promessas de eternas felicidades, ou de perfeições estéticas, é bem recebido por ser, eo ipso, o que, na realidade, é, , pode ser. O amor possível, logo, é contrário ao amor platônico – aquele que é idealizado como perfeito, absoluto, mais real (não me peça para explicar como isso é possível) do que este que há antes do salto ontológico sempre dado a priori. Em outras palavras, e para que não nos percamos nos raciocínios, é assim: “não tem tu, vai tu mesmo”, como reza a sabedoria popular. O amor romântico não é o ideal que existe e não se conhece, é, antes, o que se conhece, real, embora não ideal. Uma coisa que prende toda uma vida, tolhendo as possibilidades reais da possível felicidade – como o amordaçamento da árvore inteira num minúsculo bonsai –, só pode ser enquadrada na categoria de doença da alma: os tolos sonhos de um amor perfeito. E assim chegamos, do modo mais cândido, ao grande paradoxo do amor romântico: sendo ele uma artimanha da Vontade em função da vida e sua preservação, é, aí, a sua castração mais cruel. Paga-se a pena da morte com a vida.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

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Do estômago e do sexo. “Toda a existência humana decorre do binômio Estômago e Sexo. A Fome e o Amor governam o mundo”, afirmava Schiller. O homem é, essencialmente, estômago e sexo. Na busca por alimento ou por sexo, a luta é uma constante, mas transcende ao próprio homem – e por isso não lhe é imputada como essente –, está sobre tudo, sobretudo, na natureza, onde o mais forte devora aquilo que é mais fraco, ou não (como quando se obedecem aos limites que, culturais, são absorvidos, geralmente, sem que se saiba bem de onde vieram e porque funcionam assim; tabus, sanções morais, et cetera). Embora com limites, Estômago e Sexo resumem bem tais mecanismos e constituem-se, assim, dois mecanismos onipotentes da/na luta.
“Os artifícios da astúcia, disciplina da força, oportunidade da observação aplicada, são formas aquisitivas para a satisfação das duas necessidades onipotentes. O sexo pronuncia-se em época adiantada apesar das generalidades delirantes de Freud. O estômago é contemporâneo, funcional ao primeiro momento extra-uterino. Acompanha a vida, mantendo-a na sua permanência fisiológica. O sexo pode ser adiado, transferido sublimado em outras atividades absorventes e compensadoras. O estômago não. É dominador, imperioso, inadiável. Por isso os alemães dizem que o sexo é fêmea e o estômago é macho. Pérsio fazia do ventre o mestre das Artes, subornador do engenho. Magister artis ingenique largitor, Venter... A Fome faz cessar o Amor, diziam os gregos. Erota pamei limos. O Eclesiastes adverte que todo trabalho do homem é para sua boca. São Paulo temia-lhe a intervenção na obra divina da redenção: ‘Não destruas por amor da comida a obra de Deus’ (Aos Romanos, XVI, 20). Vinte ventres!, proclamava Caio Lucílio, 149-103 anos antes de Cristo”, Diz o potiguar Luís da Câmara Cascudo, nas primeiras linhas de História da alimentação do Brasil, que teve a primeira edição em 1967.
O alimento é necessário, todos os dias – alguns governos têm criado leis, como no Brasil, que garantam (ao menos em tese) o direito de três alimentações diárias para todos -; e luta-se por ele; o sexo também é necessário, a longo ou curto prazo, e todos necessitam dele para continuar vivendo, no outro que é gerado por mim, por você: “Ó metade de mim, ó metade arrancada de mim”. Do mesmo jeito que o Chico fala do filho morto, poder-se-ia também falar do filho vivo, que veio à vida, recém-nascido. Filhos são retratos dos pais; espermas crescidos (cf. 1, 38). Por toda a vida vive-se na luta pelo alimento. Há quem veja, nisso, motivo de prazer e satisfação – e não há dúvida de que um jantar acompanhado com quem se gosta, um picnic entre amigos, et cetera, seja mesmo prazeroso. E não há dúvida de que, achar-se apaixonado por alguém que lhe corresponde à paixão é, também, um prazer. Mas, depois de cheio, o estômago não deseja mais o alimento; depois da paixão realizada, o desejo quer viajar por outros caminhos, porque ele precisar manter-se vivo como... desejo. Omne animal triste post coitum, lembra-se? A saciabilidade é momentânea e, aí, mais luta, por uma ou outra coisa. Não existem pessoas satisfeitas, afinal e em absoluto; não é possível. Viver é muito custoso; morrer é muito ruim, e vai contra o nosso instinto mais básico, mais primitivo. Por isso que, contra a grande tragédia que atravessa o mundo, a tragédia de notar-se vivendo, lançado-aí, os gregos inventaram a arte. Só a arte é tábua de salvação. Assim constituiu-se, e de tal modo que, hoje, quase tudo – inclusive o alimento e o sexo – torna-se um modo de arte, dependendo de como os recursos (qualquer um) sejam utilizados, dependendo de como os artistas (qualquer um) os utilizem.

sábado, 17 de outubro de 2009

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Da soberania da Vontade. Um espectro paira por sobre o mundo, o espectro do amor romântico. Quase todas as artes, os meios de comunicação possíveis e imaginários, e as doutrinas várias, uniram-se numa santa cruzada com o fito de maquiá-lo, divinizá-lo: a pintura, a literatura, o cinema, a música e a moral do Ocidente cristão, principalmente. Qual o artista que, para vender a sua obra, não usou de tal artifício? E qual poeta, filósofo ou teólogo não acusou positivamente o Amor de ser uma coisa divina e engendradora da beleza, da arte e da vida? Desse fato decorrem várias conclusões. Uma primeira e essencial é: há o consenso de que o Amor seja um motor primordial à existência humana – e não só a dela -, coisa que é reconhecida por todos os que podem pensar, e vivida impulsivamente por todos os que, embora vivos, não pensam - mas as considerações mais profundas sobre tal consenso podem ser pensadas de outro prisma, e com aquela fidelidade à terra que Nietzsche falava. Outra: já é tempo de a razão retirar o véu de sobre o amor romântico, idealizado como reflexo de uma Perfeição extramundana - essa da primeira conclusão, por exemplo. A somatória de tal desvelamento é a constatação óbvia de que há uma idiotização em tudo o que se escreve sobre ele, como sublime, como elevado à décima potência do “bonitinho” e do “colorido”. Assim, e para desvelar o engodo de tais tendências que mantém a Idéia de uma realeza estranha ao bom e ao belo que se tem, in natura, expõe-se aqui o Manifesto da Vontade, escrito em três livros. Afinal, a história de todas as manifestações só é/foi reconhecida depois de escrita, porque, assim, historial. “A história de todas as sociedades que existiram até hoje”, dizem Marx e Engels, “é sempre a história das diversas lutas entre as classes... homens livres e escravos, patrícios e plebeus, barões feudais e servos da gleba; em poucas palavras, os opressores e os oprimidos sempre estiveram em oposição mútua, mantendo uma luta constante, às vezes disfarçada...” O egoísmo (ou o amour de soi), como se vê, é a mola engendradora da ação, mas há algo mais, por cima, mas não é uma mão divina. Esse é um dos disfarces da Vontade. De fato: o que não se disfarçou, nunca, foi o amour de soi que move cada um, em qualquer lado – no esforço do operário ou no repouso ocioso do burguês. Amour de soi; eis o espectro que move o mundo; mas esse, mesmo esse, é mera sombra da Vontade que impera sobre tudo e é, ela, sim, sem retoques, o que o romantismo e a moral chamaram de Amor, verdadeiro amor.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

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Das insaciabilidades. O amor romântico é como um buraco negro que se esconde no interior de cada um, no interior de todo mundo. O que os dedos são para as mãos, assim também a falta para o amor, e a necessidade de ter mais, ser mais, sempre mais... Ele, ao mesmo tempo em que quer atrair o objeto amado, também o repele – mesmo que não saiba onde guardá-lo para, quando vier a falta, reavê-lo, e aí querer a falta novamente. Existem mundos paralelos; e boas teorias já tentaram demonstrá-lo. Boas teorias são como remédios que todos dizem serem bons, mas que ainda não tiveram seus princípios ativos clinicamente comprovados. O grande amor de um é a grande dor do outro; pois que sempre há um amor que é mais forte que o outro, um que ama mais que o outro – e isso é assim em todas as relações amorosas. Quanto mais esse ama, tanto mais sufoca o amor daquele. Pois que o amor quer sempre conter em si o objeto do seu amor – como se ele mesmo, o que ama, se visse refletido em uma sala, rodeado de espelhos. Ora, o amor, sendo amor por algo, não pode ser amor apenas por si mesmo. Mas só é assim, e assim somente, numa extensão que faz de si mesmo - e eis aí a grande contradição dinâmico-antitética -; como quando alguém abraça a outrem é diz, com o peito repleto de buracos negros: “eu queria você dentro de mim”. O romântico tem dentro de si buracos que são, acredita, na exata proporção do objeto do seu amor – só ele (ou ela) o “completará”, pensa. Daí o amor ser também, por natureza, antropofágico, antropomórfico. Daí também Ludwig Feuerbach dizer, aprofundando o sentido da afirmação de Hipócrates (trata-se do materialismo histórico em oposição à metafísica): “O homem é aquilo que come” - o duplo sentido, aqui, é necessário e inevitável. Não é assim que o corpo todo se mantém, com a absorção do outro? Não é por isso também que algumas tribos bebem as cinzas do morto, para que ele, nelas, nos vivos, permaneça vivendo? No final das contas, nesse desejo absurdo que o amor tem de possuir o objeto do seu amor, é a vida que, novamente, dá as cartas, escondida sob o manto do mais profundo do profundo desejo amoroso. O amor é um buraco negro que suga tudo para, na sua outra extremidade, alimentar a vida. O vazio é só um conceito. Para onde os buracos negros regurgitam aquilo que sugam? No caso do amor, para mais amor, mas vontade, mais falta. Sem essa dialética, a vida não seria possível.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

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Das frases feitas. Três citações de Shaw: “Não há amor mais sincero que o da comida”; “Uma vida inteira de felicidade? Ninguém agüentaria: seria o inferno na terra”; “Quem deseja uma vida feliz com uma mulher bonita assemelha-se a quem quisesse saborear o gosto do vinho tendo a boca sempre cheia dele”. Isso resume, até o momento, tudo o que já tratamos sobre desejo, amor, estética, verdade, felicidade, et cetera. George Bernard Shaw, o mestre das citações.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

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Do desejo e da falta. George Bernard Shaw, famoso escritor, jornalista e dramaturgo irlandês, dizia que, na vida, existem duas grandes catástrofes: “a primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos; a segunda é quando eles são”. Se você tem filhos já deve ter passado por esta experiência: fazendo compras no supermercado, seu filho vê um brinquedo que, imediatamente, deseja possuí-lo. Mas você realmente não está disposto a gastar mais do que já havia planejado na sua lista de compras. E comprar aquele brinquedo, mais um, caríssimo, vai exceder em seu orçamento – sem falar que não é bom alimentar a idéia que seu filho tem de que, tudo o que quiser, poderá ter. Ele, no entanto, aos berros, não está nem um pouco interessado em saber quais são os seus planos, sua psicologia de manuais; somente o desejo dele é que conta agora, e sua melhor arma, não dispondo de outra, é o choro, e o insistente: “Commmpra, paiiii...” Você consegue adiar aquele gasto todo prometendo ao menino que, se ele se comportar direitinho no trato com a sua irmã, comprará na semana que vem. E é espantoso ver como o menino se comporta, muda completamente. Você aprendeu lendo aquele monte de livros de “como criar seus filhos” que, se prometer alguma coisa ao menino, ou à menina, cumpra - pois que a sua moral depende disso. Promessa cumprida, o menino não consegue se conter de alegria ao ver o brinquedo tão desejado, finalmente, em suas mãos. Nos próximos dois ou três dias ele só terá olhos e tempo para o tal brinquedo. Mas, dias depois, esquece-o quase que por completo, trocando-o por um novo desejo. O amor, que habita na falta, sucumbe ante o desejo realizado; pois o desejo não habita na constância, mas confunda-se (funde-se com) com a paixão (fogo) que, por sua vez, confunde-se com o amor (idealismo). “O sumo bem”, porém, “só no ideal perdura...”; lembra-se? (cf. 2, 32). É por isso também que, ainda segundo Shaw: “Não há diferença entre um sábio e um tolo quando estão apaixonados”, e “O primeiro amor [não] é [mais do que] um pouco de loucura e muita curiosidade”. Desejar é sonhar; ter o objeto desejado é encontrar-se desperto. E tudo voa, depressa, pela primeira janela aberta que encontra. É que o amor só existe enquanto falta. Pois você não sabe? Nós não crescemos nunca, o que crescem mesmo são os brinquedos dos nossos desejos.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

32
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Da presença e da falta (II). Conforme diz o Quintana: “O sumo bem só no ideal perdura... / Ah! Quanta vez a vida nos revela / Que ‘a saudade da amada criatura’ / É bem melhor do que a presença dela...” Isso se aplica, sem retoques, ao seu amor, à sua amada, ao seu amado. A presença constante do objeto amado é qual passarinho engaiolado, e como o sangue nas veias, parado... perde o viço, apodrece. A realidade, dizia Heráclito de Éfeso, é marcada pelo conflito (pólemos) entre os opostos, como o fogo (pyr) que queima e se autoconsome, simbolizando tal dinâmica. Nas coisas do amor romântico, também alegorizado pelo fogo, dá-se o mesmo - adjetivação. Dia e noite, calor e frio, vida e morte, desejo e tédio são opostos que se complementam. Tudo é devir, devindo; vir-a-ser. Dialética (dialectica); destino (fatum). Certo mesmo só a incerteza, presença da falta.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

31
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Da presença e da falta. “Tem mais presença em mim o que me falta”. Dito pelo Manoel de Barros, pantaneiro. Em nossa arqueologia sentimental, nada é mais presente, e dolorido, e nostálgico, e benquisto, do que as nossas memórias inventadas.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

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Dos retratos. “É preciso a saudade para eu te sentir / como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida... / Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista / que nunca te pareces com o teu retrato... / E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!”
Em Presença, poema do Mário Quintana, o retrato preserva imóvel, mas apenas à ilusão dos olhos, o “instante da eternidade”, a fração temporal da atemporalidade. Nós, no entanto, sujeitos temporais (e por isso mesmo sujeitos, ou sujeitados), nada sabemos com certeza dessa atemporalidade da qual falamos; e falamos tão somente, como um atormentado Agostinho discorrendo sobre os mistérios da santíssima Trindade, pra não silenciarmos; licença poética. Tudo o que aparece como retratado ou retratável, no tempo, está devindo, e eo ipso, não é senão não-ser. Dorian, embora não faça tão grandes elucubrações filosóficas – coisa que, na obra de Wilde, caberá ao Lorde Harry –, sabe disso muito bem, mediante o desejo que sente o seu corpo jovem e, principalmente, a satisfação do mesmo: satisfação temporal e, logo, eterna insatisfação. Afinal, levando a questão a fundo: quem é que, realmente, mata a sede? Toda a água do mundo não serve a uma única pessoa. O desejo, satisfeito, esbarra no tédio; como no caso do desejo sexual: Omne animal triste post coitum. A fala de Sócrates, por instrução de Diotima, no livro O banquete, de Platão, é respaldo para o dito, sobre o desejo, e sobre o tédio. E quanto mais plenamente realizado tal desejo, tanto mais plenamente é o tédio que vem depois... e no caso de Dorian, haviam muitos depois, e com eles, mais e mais tédio. E assim, mais que o tempo que a tudo destrói, o ânimo de uma vida toda, morto o desejo, é fatal, fatalista. Não é isso que o próprio Dorian sente e lamenta: “Ah! Que instante maldito aquele em que o orgulho e a paixão o haviam levado a implorar que o retrato suportasse o peso dos seus dias, para que ele pudesse conservar o esplendor imaculado da eterna juventude! Todas as suas infelicidades daí provinham?”
De que vale uma mente velha, que sente que já desejou demais, em um corpo jovem que sente o peso da velhice de sua mente? Não é o corpo que deseja, mas a mente – o corpo, que não sou Eu, obedece; o Eu mesmo, “por trás de nós oculto”, como dizia Emily Dickinson, “é muito mais assustador”. Outra mulher, Adélia Prado, entende isso muito bem e o demonstra no poema que diz: “Não quero a faca e nem o queijo, quero é a fome!” A fome é do corpo, mas o desejo, não. Melhor que o tédio, crepuscular, é o desejo; mas o corpo e a mente precisam da sincronia. Pois, não é isso que os retratos nos dizem? Dizem que o momento vivido – ou o desejo realizado – é passado, e que de nada vale lembrá-lo, a não ser que se tenha a intenção de trazer, para o presente, alguma alegria, ou um aprendizado qualquer por meio de uma saudade dolorida; a mente, velha, não suporta o viço do corpo, dos seus desejos pueris; quer sempre transcendê-lo. Foi assim que o jovem Dorian, olhando para a sua “feiúra” estampada no retrato: “De repente odiou sua própria beleza e, atirando o espelho ao chão, despedaçou-o, pisando em seus pedaços prateados com os saltos dos sapatos. Fora a sua beleza que o havia levado à perdição, sua beleza e aquela juventude cuja permanência tanto implorara. Não fossem essas duas coisas, sua vida poderia ter sido imaculada. Sua beleza tinha sido para ele somente uma máscara, e sua juventude, uma zombaria. Afinal, que era a juventude? Um período de viço e imaturidade, repleto de impulsos...”
O corpo acompanha a mente, e não o contrário – mesmo quando não pode obedecê-la por motivos próprios –; assim também nós, em relação ao tempo. Daí que, no retrato, nunca somos o que realmente somos, apenas o que estivemos nalgum instante daquele devir indizível, atemporal, desmedido: “No retrato que me faço / – traço a traço – / às vezes me pinto nuvem, / às vezes me pinto árvore” – diz o Mário Quintana noutro poema. Talvez mais do que as nuvens, e talvez menos do que as árvores, sejamos assim dissolvidos pelo tempo, no tempo. Os nossos retratos para muito pouco nos servem, porque não podem captar o que somos; apenas o instante da eternidade que, no presente, representa tão somente a recordação, a memória do que nos fizemos, do que foi feito de nós - e essa memória, quase sempre, dolorosa: por haver sido boa e ser, só, memória; ou por haver sido ruim, e estar aí, na lembrança, como cicatriz. Os nossos retratos, mais do que nossos, são retratos do tempo. Nós mesmos, sempre devindo, somos irretratáveis.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

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Dos acidentes. “[...] todo retrato pintado com sentimento é um retrato do artista, não do seu modelo. O modelo é simplesmente o acidente, a oportunidade. Não é a ele que o pintor revela. Quem se revela sobre a tela colorida é o próprio pintor”. Palavras de Basílio Hallward, personagem de O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Da mesma forma que o retrato pintado – Hallward pintara o retrato de Dorian Gray e apresentava-o ao lorde Henry, amigo seu – não revela o modelo, mas aquele que o pintou, assim também o amor de quem ama: ele nunca revela o objeto do amor, o objeto amado, mas aquele que ama. O amor é, sempre, amour de soi. O Outro, o acidente.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

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Das prisões. Nós nunca nos livramos, realmente, dos retratos dos amores findos. É que eles ficam espalhados pela casa, por sobre os móveis da sala, aprisionando sorrisos e olhares perdidos, voltados pra uma mesma direção, e para o infinito. Olhar... verbo no infinitivo. O meu amor quer se prender ao tempo, à eternidade das fotografias e às flores de plástico. E se prende, de algum modo. É por isso que as coisas não morrem nunca; o que há e o que morre é o tempo, não as coisas e os mundos em que ficamos presos na experiência do Olhar, do sentir, do sentir-se sendo, no mundo. Mundos paralelos. Ser é perceber-se sendo, ; o/a Outro/a – mesmo o/a da fotografia – é apenas o acidente.

sábado, 3 de outubro de 2009

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Dos costumes e dos hábitos. Em latim, “costume” (mores) tem haver com as atitudes institucionalizadas por determinado grupo social, às quais são aplicados os qualificativos “bom” e “mau”, sendo os mesmos reforçados por sanções ou prêmios, conforme o agir individual - em relação ao Outro ou em relação à sociedade. Um conhecido adágio popular reza que “O costume é que mata”. Costume, aí, tem haver com o “hábito”. Em latim, hábito (consuetudo) é derivado do grego éthos (ética), que é o mesmo que “costume”, como vimos. Acontece que há, desde Kant, principalmente, uma sutil diferença entre um é outro termo, entre uma e outra coisa. Trata-se do habitus [note que é diferente de consuetudo], que deriva do grego éthis (ética), que tem mais haver com uma certa e constante disposição para ser ou agir de um certo modo. Um exemplo: você pode ter o hábito de “apagar a luz ao sair do banheiro”, como se isso fosse um compromisso para evitar desperdício, por consciência ecológica, et cetera; isso é relativamente diferente de “apagar a luz ao sair do banheiro” por mera rotina, mecanicismo, sem ao menos notar. Mas, enfim, voltemos ao primeiro sentido, aquele em que o “costume que mata” está colocado. É nesse sentido que se diz: “As coisas habitualmente acontecem assim”, indicando uma uniformidade nas ações, na “coisa” feita. Nessa acepção, Aristóteles dizia, na sua Retórica: “Faz-se por hábito aquilo que se faz por se ter feito muitas vezes”, acrescentando que “o hábito é, de certa forma, muito semelhante à natureza, já que ‘freqüentemente’ e ‘sempre’ são próximos: a natureza é daquilo que é sempre [que ocorre naturalmente]; o hábito é daquilo que é freqüentemente”. Esse sentido, clássico, vigora até hoje – na biologia, na psicologia e na sociologia, principalmente -, e Pascal, nos Pensamentos, fez o hábito incidir na crença, como que fundamentando-a no “freqüentemente” do Estagirita. “É o costume (coutume)”, diz ele, “que torna as nossas provas mais sólidas e dignas de crédito: ele redobra o automatismo, que arrasta o intelecto sem que este se aperceba”. Pobre do que se apaixona pela beleza! A acostumar-se a ela, vem “o automatismo, que arrasta o intelecto sem que este se aperceba”, e a Vontade sai à procura de outras belezas. Na letra de “Sete cidades”, Renato Russo diz a uma amada (ou amado) sua/seu, imaginária/o: “Já me acostumei com a tua voz / Com teu rosto e teu olhar / [...] Quando não estás aqui / Sinto falta de mim mesmo”. A Outra/Outro, objeto amado, se confunde com o amante. É uma liga beatífica, só possível na poesia, na metafísica, no êxtase poético, como uma Santa Teresa D’Ávila. No mundo real, nada poético, pode-se viver com o outro por hábito, costume, e não por paixão. Milhões de casais, por praticidade econômica as sanções morais – uma separação litigiosa ou não dá muito trabalho, e pode ser bem cara – vivem assim: acostumados um ao outro, conforme o mandamento evangélico que diz: “Suportai-vos, por amor”. O amor, aí, que nada tem haver com paixão, é obrigatoriedade cristã, fraterna, que instiga o fiel a ver o Outra ou a Outra como irmãos. Viu como Eros passa longe? É ágape quem manda aqui. A paixão, que é o espanto (pathos) inicial do êxtase perante a beleza do Outro, e daí a paixão, foi-se; ficou, para o que é cristão ou para o que quer viver segundo os “bons costumes”, a obrigação de continuar com Outro, amando-o assim: por conveniência, por obrigação ou por piedade, mas sem a paixão. Mas essa história toda não precisa terminar assim tão medonha; existem aqueles que têm a sorte de experimentar aquela “fase da ternura”, defendida por Antônio Rezende e Rubem Alves (cf. 2, 9); e há aqueles que também ganham na loteria.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

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Das ironias. “Óh! imagens e sonhos da minha juventude! Óh! olhares de amor, que momentos divinos! Como vos desvanecestes rápido! Penso hoje em vós como nos meus mortos”. Palavras de Zaratustra (“O canto do sepulcro”), em Assim falou Zaratustra, de Nietzsche. “Oh! que saudades que eu tenho / Da aurora da minha vida, / Da minha infância querida / Que os anos não trazem mais! / Que amor, que sonhos, que flores, / À sombra das bananeiras, / Debaixo dos laranjais!” Palavras de Casimiro de Abreu (“Meus oito anos”), em As primaveras. Não é irônico que o amor romântico viva da memória ou da perspectiva? Quando não é assim, é o fogo consumidor da paixão cega, e a insensatez de acreditar que o agora é o mesmo que o para sempre. Só o desejo, sempre devindo, mas pela variação da imagem, do objeto, é para sempre – até a morte, pelo menos (a morte pode ser, inclusive, o seu último objeto). Desejo... Não é dramático/irônico que ele, realizado, não seja mais... desejo?