segunda-feira, 2 de novembro de 2009

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Da amorosa felicidade [ou Do Bicho de Sete Cabeças]. O amor romântico pode parecer e aparecer, às vezes, como um Bicho de Sete Cabeças. A que fica no centro e que comanda as demais poderia ter, na alegoria, o nome de Felicidade; e teria um excelente nome. Ora, quem não sabe?, aquele que procura pelo amor, procura mesmo é pela Felicidade? A Felicidade é o fim a que tudo se dirige, todas as nossas ações. Santo Agostinho, em A Trindade, por exemplo, faz a seguinte colocação: “Por certo, existe entre os seres vivos dotados de razão tanta harmonia que, ainda estando oculto a um o que o outro quer, há, no entanto, alguns desejos comuns a todos. Havendo um só desejo de alcançar e conservar a felicidade por parte de todos, é de se admirar a variedade de desejos acerca da mesma felicidade. Será falso aquele princípio do qual não duvidou o famoso acadêmico Cícero, o qual, no seu diálogo ‘Hortênsio’, ao querer partir de uma certeza, da qual ninguém duvidasse, coloca como exórdio de seu discurso: ‘Todos certamente querem ser felizes’? Longe de nós afirmar que isso seja falso.” Poetas, filósofos, teólogos, et cetera, todos estão, de algum modo, se esforçando para alcançar essa Felicidade – e, se isso parece muito evidente, é porque, realmente, é. O tema da eudaimonía, ou da “vida feliz”, pode ser examinado sob muitos aspectos, uma vez que, para ele, tal como é o círculo para o seu centro, tudo concorre.
A tradição filosófica grega (socrático-aristotélica), como sabemos, reconhece a sabedoria pela felicidade – não por todo tipo de felicidade, pois que, se o sábio é feliz, não o é de qualquer modo, ou a qualquer preço. Para os gregos, a sabedoria é uma felicidade, e a felicidade é o fim último da filosofia – ou o porquê do filosofar –, e a verdade é o caminho que deve ser trilhado por aqueles que querem chegar a elas. O que isso quer dizer? Quer dizer que se o filósofo tiver que optar entre a verdade e uma felicidade que não seja a felicidade, ele optará sempre pela verdade, por mais que essa lhe seja dolorosa. Assim sendo, é melhor a dor da verdade do que a alegria de uma falsa felicidade. A felicidade platônica é sempre ideal, absoluta e, para tanto, repousa na Verdade, com quem se confunde.
Para Aristóteles, os bens materiais são “vagos” (no sentido de imperfeitos para o alcance da perfeita felicidade) e “podem ser até prejudiciais”, pois, com efeito, “algumas pessoas no passado foram levadas à perdição por sua riqueza”. Se a riqueza pode trazer a infelicidade, a pobreza também. A verdadeira felicidade precisa ser escolhida e acolhida como fim em si mesma. Nas palavras do Estagirita: “Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais, embora as escolhamos por si mesmas (escolhê-las-íamos ainda que nada resultasse delas), escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa das várias formas de excelência, nem, de outro modo geral, por qualquer coisa além dela mesma”. Noutra parte, Aristóteles afirma que “ninguém deseja o que não considera bom”. No final de tudo, todos, por meio de tudo o que fazem, têm um desejo comum: serem felizes. A felicidade é, pois, o fim último de todas as ações.
Elevando a felicidade ao nível do sentimento oceânico, Agostinho, entende que ela só pode existir no encontro do indivíduo temporal com o Divino, o eterno atemporal. A felicidade real é uma esperança depositada para a eternidade. Daí, nas Confissões, o Bispo de Hipona dizer: “Criaste-nos para Ti, e o nosso coração estará inquieto enquanto não repousar em Ti”. Que é estar inquieto (inquietum) senão estar intranqüilo, apreensivo? Os prazeres sensíveis, em virtude de sua fluidez, não podem, portanto, realizar aquilo que pretende ser, ou pretende-se, eterno, guardado na eternidade. “Todo prazer quer eternidade”, dizia Nietzsche, por boca de seu Zaratustra, “quer eternidade profunda, oh, tão profunda!” No Diálogo sobre a vida feliz, Agostinho diz que “ninguém pode ser feliz se não tiver o que quer, mas também não pode ser feliz quem tem tudo o que quer”, pois, continua ele, “quem quer coisas más, ainda que as tenha é infeliz”. Como se vê, o tema da felicidade escapa ao despretensioso exame, que é o que tenho pretendido fazer, até aqui, em relação ao amor romântico. Por hora, vale o que foi dito por Pascal: “Todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar...” Lembra-se do Werther? Um tiro na cabeça parece ser, pra ele, a única porta contra a infelicidade de ter tão somente a impotência não poder ter o amor da doce e meiga Charlotte. O início da felicidade estava, para Werther, no fim do sofrimento. Espero, nisso tudo, ter justificado a posição a que elevei a felicidade em relação ao amor, Bicho de Sete Cabeças, Bicho Papão.
Outra cabeça, a mais comum a todos os indivíduos, chama-se Desejo. “Não quero faca nem queijo, quero é a fome”, diz a Adélia. E diz bem. De nada adianta a faca e o queijo se não houver a fome. O desejo é onde tudo começa. E o desejo tem, de modo explícito, uma única fonte: o corpo com todos os seus sentidos – em especial o da visão. Ver é desejar. E os desejos podem ser medidos segundo os padrões das convenções, das éticas, das religiões: “São os olhos a lâmpada do corpo”. Os desejos também podem, às vezes, ser medidos pela leveza da poesia que não exige o rigor científico. Em A insustentável leveza do ser, Milan Kundera diz que “o amor começa por uma metáfora. Ou melhor: o amor começa no memento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética”. É assim que, agora nas palavras de Novalis, “cada objeto amado é o centro de um paraíso”. O desejo é o que lança o desejante ao seu objeto - que é, para ele, caso realizado, um paraíso. Mas...
Acontece que, movido pelo desejo, o indivíduo lança-se, como que ascendendo por uma escada, à segunda cabeça do nosso monstro alegórico: a Esperança. E o que é a esperança? E o desejo não realizado e, todavia, num futuro qualquer, crido como possível. Werther desejava Charlotte com todas as suas forças. Um dia, numa leve e breve contradança, toca-lhe os braços, as mãos, sente seu corpo, fita-lhe os olhos. “Desde esse momento”, diz ele em uma das suas cartas, “Sol, Lua, estrelas podem seguir tranqüilamente a sua órbita, que para mim já não há mais dia nem noite, e o mundo inteiro dissipou-se à minha volta”. Esse êxtase romântico, quase místico, banha-se na substância do Absoluto, dissolve-se nele, espera-o... parusia da esperança, Romantismo. O desejo, porém, existe apenas enquanto desejo não realizado, logo, esperança. No amor romântico, ele se consuma no ato sexual. O ato sexual é a degola do desejo. Werther, todavia, não pode desejar Charlotte porque, segundo os seus valores, não pode possuí-la, pois ela é casada com Albert, amigo seu. Eis o dilema: se o desejo antecede a esperança, prefaciando-a, só pode existir em função dela; ela, realizando-se, destrói-lhe. O contrário, disso, equivale à tolice do sonho vão, ou à embriaguez dos sentidos. E assim chegamos à fronteira que separa o desejo e a esperança da felicidade, é o fim a que se destinam: o Desencanto. Todo desencanto é um lampejo da razão, da razoabilidade.
No caso de Werther, a razão lhe diz: “Você não pode tê-la. Ela já é casada e, como você sabe, isso é errado”. Werther, ouvindo a voz da razão, tenta anular o seu desejo. Antes, quando pensara: “Sol, Lua, estrelas podem seguir tranqüilamente a sua órbita, que para mim já não há mais dia nem noite, e o mundo inteiro dissipou-se à minha volta”, estava fora de si; só podia estar. Mas, como se vive numa razão tão fria que, por convenções, procura anular um tão forte desejo, tolhendo-lhe qualquer esperança? É assim que a felicidade fica sempre entre a loucura e a razão. Caso semelhante de tal loucura é o que vemos em Sonho proibido (Storia di una capinera, 1993), filme de Franco Zeffirelli. Na Sicília de 1854, em meio a uma epidemia da Peste Negra, Maria e Nino se apaixonam. O problema é que ela é uma noviça, ingênua e romântica, que foi internada no convento aos sete anos, logo após a morte da mãe - porque a madrasta, Matilda, queria mantê-la longe dos seus filhos naturais. Em um passeio, Maria conhece o jovem advogado Nino e logo entra em um conflito interno por ter caído em tentação. Nino acaba se casando com a sua meio-irmã Giuditta. O amor proibido, tanto pelos seus votos religiosos quanto pelo fato de o rapaz ser marido da sua irmã, levam Maria à loucura, como ocorrera à Irmã Agatha, que, segundo diziam no convento, enlouquecera por amar e por não poder possuir o objeto do seu amor.
Em todos esses casos, a razão funciona como um freio. Mas, mesmo essa razão pode levar o indivíduo à loucura. O certo mesmo é que, nessa ascese do desejo à felicidade, a única coisa que não se atinge mesmo é a bendita Felicidade. Alguns, ignorando a razão, pensando alcançar a felicidade, chegam muito mais apressadamente à Loucura, que é a quinta cabeça do nosso monstro. Que é a loucura? É a ausência de valores, medidas. Louco é aquele que não vê outros valores que não os dele, que ele defende com seus. Acontece que, no mundo, que existe como uma comunidade – e a comunidade só existe porque os indivíduos que a compõem aceitam se submeter às regras, aos padrões de juízos e de valores que devem ser comuns para todos -, não é permitido, por exemplo, que cada indivíduo tenha a sua própria lei, ou uma autonomia absoluta. Se tivessem, seria a barbárie. No processo de humanização, tais valores são incutidos como leis, desde que o sujeito ainda nem se sabe como pessoa, indivíduo. Desobedecer a leis de tanto assentadas, sem uma justa justificativa, requer punições, que podem ser várias: exclusão do grupo, advertências morais, et ceteras variados. Não efetivar o desejo, porém, equivale ao Fracasso (ou à Decepção), a outra cabeça do nosso monstro. A sensação de fracasso – que é muito semelhante à de rejeição – é horrível, angustiante, quase uma morte, dependendo do que estava em jogo. Por isso que, por alguns fracassos, e contra a tal sensação, a morte é buscada como saída.
No final de tudo, por um ou outro caminho, regula atrox, está a Dor, penosa e última das sete cabeças do monstro que chamamos de “amor romântico” – mas ela bem pode ser aquela que fica entre as seis, no lugar da Felicidade. Talvez seja por isso que tantos digam que “o amor é uma dor”, posto que a dor, em relação ao amor, representa sempre o seu produto final.

2 comentários:

  1. Gostei desse blog. textos bem trabalhados, assuntos profundos, mas tou com pressa! depois eu volto pra entender melhor esse bicho de sete cabeças. Muito legal, parabens!

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  2. Muitos compositores e cantores brasileiros usam esse tema para mostrar sua arte./não tem ninguem que mereça /não tem coração que esqueça / cresça e desapareça. Pois é, Werther juntou a loucura e a razão e desapareceu. Se Goethe criador do personagem Werther tivesse lido o texto DAS REDES TELÚRICAS DE UM ROMANCE IDEAL, não teria deixado seu personagem sofrer tanto. Teria sido pioneiro em trocar a morte por um novo amor, numa época onde o amor platônico era o ideal. Hoje, ainda há quem sinta que o amor é uma dor, mas nos braços de um novo amor. comentário confuso? tambem com tantas cabeças!!!

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patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo