quarta-feira, 28 de abril de 2010

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Do carnaval e da fantasia. O carnaval é, sem dúvida, a maior festa popular do Brasil. Carnaval é também o nome de um álbum da banda carioca Barão Vermelho, lançado em 1988, o terceiro depois da morte do Cazuza (sete de julho de 1990), seu primeiro vocalista. Na letra de “Carnaval”, música que nomeia o álbum, Frejat canta, rasgado: “Carnaval / Eu danço no temporal / Carnaval / Eu queimo meu arsenal...” Para a maioria dos brasileiros, o carnaval é justamente isto: uma queima de fogos de artifícios, todos os tiros disparados. No Brasil, gostando ou não da festa pagã, não há quem não saiba o que ela seja. O que todos não sabem, decerto, é que, embora seja uma festa tipicamente brasileira – pelo agigantamento que ganhou na mídia nacional e estrangeira –, sua origem data de muito mais longe, da Idade Média, com as chamadas “festas dos foliões”. “A Festa dos Foliões floresceu durante um período em que o povo possuía uma capacidade bem desenvolvida para a festividade e a fantasia”, diz Harvey Cox em The feast of fools, de 1969. O autor ainda diz que “o que se destacava no período medieval era uma espécie de festividade que relacionava os homens à história e os unia entre si numa comunidade única”. Algo muito próximo ao que José Ramos Tinhorão, sobre o poder agregador da festividade popular, nota em História social da música popular brasileira (1998), transcrevendo o trecho de uma longa carta do padre provincial da Companhia de Jesus, Manoel da Nóbrega, datada de 1549, em que este descreve ao provincial de Lisboa a festa do Anjo Custódio, realizada em Salvador, no dia 21 de julho daquele mesmo ano: “Fizemos precissão com grande música, a que respondiam as trombetas. Ficaram os índios espantados de tal maneira, que depois pediam ao Pe. Navarro que lhes cantasse assi como na precissão fazia”. “O espanto dos índios”, comenta Tinhorão, “não terá sido menor do que haviam experimentado um mês antes quando, segundo ainda o mesmo padre Nóbrega, se realizou a procissão de Corpus Christi pelas ruas enfeitadas com ramos de árvores, incluindo todas as suas ‘danças e invenções alegorias à maneira de Portugal’. É que, tal como faz observar o tradutor e anotador das cartas, padre Serafim Leite, em pé de página esclarecedor, essa procissão de Corpus Christi – certamente a mais popular e mais espetacular de Portugal – incluía verdadeiras alas (no estilo das modernas escolas de samba), pois entre as tais ‘danças e invenções’ havia ‘mouriscas, danças, coros, músicas, bandeiras, representações figuradas, folias, etc’.” O carnaval, com mais fantasia (e, logo, com mais roupas), oferecia a oportunidade de uma pessoa A, por um dia de alegria, fantasiar-se de B. O príncipe podia ser mendigo; o mendigo, príncipe; a freira, puta; a puta, freira. A máscara não escondia somente o rosto, mas trazia à luz o alter ego (o outro Eu, "the other I") adormecido de cada um, que podia fantasiar ser o que não podia, ou que podia, mas não ousava em dias “comuns”. Trata-se, pois, de uma festa de origem religiosa. Padres e príncipes, no Renascimento, introduziram vestimentas, máscaras e fantasias, com as quais se misturavam à turba que saía às ruas, celebrando. Outros, menos afoitos, mantinham a pose elitista, fazendo as festas em seus salões, duplamente fechados, longe da plebe. O povo, porém, classe inferior, como ilustrado numa célebre cena da refilmagem de Titanic (1997), com roteiro e direção de James Cameron, fantasia menos e festeja mais. Na referida cena, Jack (Leonardo Di Caprio) conduz Rose (Kate Winslat), passageira da classe A, a um baile que ocorre na classe B: “Eu nunca havia me divertido tanto”, ela confessa. É o povo quem, sim, faz o melhor carnaval; porque o povo, mesmo em toda a sua inautenticidade (consciência de rebanho) e sub-condição crítico-psicológica, como podem sugerir alguns, vive a realidade in re; e a fantasia que usam, quando tem uma para usar, é menos polida, menos trabalhada – fora dos muros do castelo. O povo, para Hegel, é o ponto de partida para a totalidade histórica e concreta, para a totalidade ética (sittliche totalität): “A totalidade ética não é nada mais do que um povo”, declara. O carnaval, tanto no medievo quanto na atualidade, ainda guarda essa possibilidade de fuga do Eu, no Outro; uma transgressão consentida, orientada pelo Espírito (do/no povo) que festeja. É o momento em que as diferenças sociais e religiosas somem por alguns momentos, debaixo das máscaras; é o momento em que o tosco, o sério e o trágico se misturam a outros sentimentos e sensações: belos, alegres e cômicos. Como no trecho de A banda, do Chico, onde a moça triste sai à janela e se alegra com a música que vem da rua, e a moça feia tem um momento de beleza: “A moça triste que vivia calada sorriu [...] / A moça feia debruçou na janela / Pensando que a banda tocava pra ela...” Mas a realidade, como prenunciada na quarta-feira de cinzas, sempre se impõe: “Mas para meu desencanto / O que era doce acabou / Tudo tomou seu lugar / Depois que a banda passou / E cada qual no seu canto / Em cada canto uma dor / Depois da banda passar / Cantando coisas de amor...” No calendário cristão ocidental, depois do carnaval e das suas ilusões de amor e alegria, vem a quarta-feira de cinzas, que é o primeiro dia da Quaresma - quarenta dias de penitência e orações. As cinzas que os cristãos devem receber nesse dia, são símbolos para a reflexão sobre o dever da conversão, da mudança de vida. São lembrados aí que a alegria é transitória, que a ilusão é passageira, que a fantasia é efêmera, e frágil é a vida humana, sempre sujeita à morte e às contrariedades da Fortuna - como quando o seu bloco precisa sair da rua, conforme descrito no frevo-canção do pernambucano Luiz Bandeira: “É de fazer chorar / Quando o dia amanhece / E obriga o frevo acabar / Oh, quarta-feira ingrata / Chega tão depressa / Só pra contrariar...”, ou como no samba do Chico e do Francis Hime (“Vai passar”, de 1984), que fala da vida dura dos afros no Brasil colonial, construindo coisas e penando a vida. Eles, doce ilusão, “um dia, afinal, tinham o direito a uma alegria fugaz / Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval...” Sim, como Ray Bradbury diz, numa citação de Mary Harrington Hall (A conversation with Ray Bradbury & Chuck Jones: the fantasy-makers, 1968): “A habilidade de fantasiar é a habilidade de sobreviver”. Essa, talvez seja a receita de o Brasil, com todos os seus acidentes sociais e desigualdades, produzir o melhor carnaval do mundo; essa, talvez – e eu disse “talvez” – seja a receita para, afinal, se viver um grande amor.

sábado, 10 de abril de 2010

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Do amor como paixão e da codificação da intimidade. O meu título, a propósito, vem da tradução brasileira da obra de Niklas Luhmann, O amor como paixão: para a codificação da intimidade (Lieb als passion, 1982). Como em História das lagrimas: séculos XVIII-XIX (Histoire des larmes, XVIIIe-XIXe siècles, 1986), em que Anne Vicent-Buffault investiga a vasta literatura romancesca do período, para mostrar como as lágrimas, pouco a pouco, vão sumindo das páginas dos livros e da vida dos homens, conforme passa o tempo e conforme avança a... Modernidade, também Luhmann analisa o amor (no sentido do sexo, da intimidade) - que ele distingue entre amour, passion e amor romântico – em suas manifestações temporais, literárias, através de um vasto apanhado bibliográfico que, segundo ele, serve de fundamento para codificar as passagens históricas do sentimento amoroso e suas demonstrações, bem como o processo civilizatório/civilizador do flerte (affaire), do galanteio e do cortejo sério do que pede a mão da moça: ela em pé ou sentada, e ele de joelhos ou educadamente inclinado; ela pensando em jardins floridos e perfume pelo ar, e ele pensando em quartos escuros e intimidades. Como na vida real, o romance escrito, diz Jean Regnault de Sagrais (Les nouvelles françoises ou les divertissements de la princesse Aurelie, 1657), é mais frequentemente uma apresentação de galanterias do que uma narrativa plausível. E eu iria bem mais longe: como na vida real, o romance é uma história que se conta, que se inventa para dar alguma graça à vida, ou à sua Vontade desnuda que é feia, que mostra o que há por baixo da pele perfumada da mulher amada, do homem amado. Em O nome da rosa, que acabei de usar no texto anterior, o padre Ubertino, na tentativa de demover o jovem Adso do seu desejo por uma camponesa, com quem ele teve uma noite de amor – que seria lembrada com suores e saudades, pelo resto da sua vida –, diz, apontando para a coitada, prestes a ser queimada, acusada de bruxaria: “Tu a olhas porque é bonita. É bonita, não é? Se olhas para ela porque é bonita, e ficas perturbado (mas sei que estás perturbado, porque o pecado de que ela é suspeita torna-a ainda mais fascinante para ti), se olhas para ela e sentes desejo, por isso mesmo ela é uma bruxa. Toma cuidado, meu filho... A beleza do corpo se limita à pele. Se os homens vissem o que está sob a pele, assim como acontece ao lince da Beócia, sentiriam calafrios ante a visão de uma mulher. Toda aquela graça consiste em mucosidade e em sangue, em humores e em bile. Se se pensa naquilo que se oculta nas narinas, na garganta e no ventre, não se achará senão imundície. E se te repugna tocar o muco ou o esterco com a ponta do dedo, por que desejaríamos abraçar o saco que contém o esterco?” A mulher, aí, visão comum na Idade Média, é objeto de tentação constante; uma verdadeira arte do Diabo, embora seja feitura de Deus, segundo dizem os próprios padres. Quando comecei a estudar teologia, uma das disciplinas era sobre História da Igreja, e usávamos o livro clássico de Earle E. Cairns, O cristianismo através dos séculos: uma História da Igreja cristã (Christianity through the centuries: a History of the Christian Church, 1970). Aí há uma antiga ilustração de um monge que, tentado por uma mulher, que lhe observa, queima um dos dedos da mão na chama de uma vela, como penitência e fuga... Na mesma mão e na outra, porém, já não há mais dedos a serem queimados. É provável que, por tanto se preocuparem com a tentação, os religiosos, os moralistas e os pudicos de todos os tipos sejam os mais tentados; pois o Diabo sempre estará onde mais se acreditar que ele esteja.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

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Da imaginação e da pederastia. Falei há pouco que, da tentação que se deseja fugir, não adianta, pois: “Tudo está na mente. Mesmo a curva de uma árvore ou o curso sinuoso de um rio, dado o caso, lembra o corpo de uma mulher, os cabelos longos que tremulam ao vento.” E aí me lembrei de uma passagem muito engraçada de O nome da rosa (1980), de Umberto Eco. O velho padre Ubertino está junto à estátua da Virgem, e reza. Nisso, chegam frei Guilherme e seu jovem discípulo, Adso, a quem Ubertino, depois de dizer algumas coisas, fala da beleza de Maria, figurada na imagem esculpida. Seus olhos brilham, como quem está em algum estado de graça: “Tu deves te iniciar no amor sem mácula. Eis alguém cuja feminilidade foi sublimada. Por isso dela podes dizer que é bela, como a amada do Cântico dos Cânticos. Nela até a graça do corpo torna-se signo das belezas celestiais, e por isso o escultor represento-a com todas as graças de que a mulher deve ser adornada.” Depois disso, diz o narrador (Adso, agora um velho monge no mosteiro de Melk): “[Ubertino] apontou-me o busto delgado da Virgem, sustido no alto e apertado por um corpete preso no meio com laçarotes, com os quais brincavam as pequenas mãos do Menino”. E Ubertino continua: “Estas vendo? Pulchra enim sunt ubera quae paululum supereminent et tument modice, nec fluitantia licenter, sed leniter restricta, repressa sed non depressa... O que experimentas diante desta dulcíssima visão?” A pergunta de Ubertino faz o jovem pretendente ao sacerdócio tremer. Não é a imagem da Santa que ele vê, mas a da mulher. O que poderia responder? Ele mesmo diz: “Eu corei violentamente sentindo-me agitado como que por um fogo interior. Ubertino deve ter percebido, ou talvez tenha percebido o ardor das minhas faces, porque logo acrescentou: ‘Mas deves aprender a distinguir o fogo do amor sobrenatural de delíquio dos sentidos. É difícil mesmo para os santos.’” Se é!, eu digo; na verdade, acho-o impossível. O mestre franciscano Bernardino de
Sahagún, que foi um dos primeiros educadores de jovens no México colonial, foi também um dos mais ácidos críticos do sistema educacional implementado pela Igreja em Tlatelolco, com o fito de arrebanhar jovens nativos para o seu serviço: “Qui veut faire l’ange fait La bête”, disse. “Quem quer se fazer de anjo, é besta”. O frade fala, aí, da homossexualidade que se tornara comum no tal recinto sagrado. Em seu modo de ver, a tal mudança de comportamento era resultado do método de internato imposto aos jovens mexicanos. Não demoraria muito e as autoridades coloniais fariam parar as atividades do colégio de Tlatelolco. Naquele tempo, Helena, a tolerância à pederastia era mais severa. Fato que me lembra uma viagem que fiz a Crato, interior do Ceará: eu, Marta e Mabel – com quem me casaria tempos depois. Lá, fomos visitar um Seminário católico que dá nome ao bairro onde moram umas primas minhas. Depois da visita, e ao sairmos, Marta me pergunta, meio afirmando, meio admirada, meio perplexa: “Antoniôoo...!, o requisito pra ser admitido nesse seminário é ser viado, é?” E eu ri, e achei melhor não falar bobagens.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

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Da inveja. “Nunca serás feliz enquanto te atormentares porque outro é mais feliz.” São palavras de Sêneca, às quais Schopenhauer faz a seguinte colocação: “Nada é tão implacável e cruel quanto a inveja; e, no entanto, estamos sempre empenhados em suscitá-la com todas as nossas forças”. Dos amores da minha adolescência, guardo a imagem de uma menina que não me queria, porque só pensava em um “fulaninho” lá. “Fela da puta!”, eu pensava. Como eu queria matar o desgraçado e... Não, não; não queria... Eu queria mesmo era ser ele! Mas não queria e nem podia deixar de ser eu mesmo; pois que, senão, quando eu a tivesse, já não seria eu quem a teria, mas ele. Ah!, dilema dos infernos! Como era complicado!, como eu sofria!, como eu era infeliz! “De fato”, como diz Fleischer, “não vivemos como queremos, mas como podemos.” Às pancadas do tempo, eu não me tornei mais feliz, mas me fiz mais estóico.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

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Do sexo santo e imaculado. Conforme Agostinho de Hipona, não havia no homem, antes da Queda, o desejo do sexo, só a sua necessidade, mas sem a paixão, sem a tirania da vontade. Não havia, diz ele, “a vergonha do desejo” (De civitate Dei, XIII, XXVI). “Os membros genitais obedeciam ao arbítrio da vontade tal como os demais, e o marido ter-se-ia introduzido nas entranhas da esposa sem o aguilhão arrebatador da paixão libidinosa, na tranquilidade da alma e sem corrupção alguma da integridade do corpo. [...] E então poderia assim o sêmen viril penetrar no útero da esposa mantendo-se a integridade do órgão genital feminino – tal como presentemente o fluxo do sangue menstrual pode sair do útero de uma virgem sem prejuízo para a sua integridade. De fato, é pela mesma via que um se introduz e o outro sai”. Depois, percebendo que essa explicação do santo coito não era lá assim tão convincente, antes atiçava os pensamentos de quem visualizava as imagens vibrantes da descrição fantasiosa, inclusive os dele, o santo Doutor encerra a conversa dizendo: “É mais conveniente que nossa exposição se refreie pelo pudor que nos retrai do que seja ajudada pela nossa débil eloquência. [...] Como é que, então, um tal assunto poderia sugerir aos nossos sentidos humanos outra coisa que não seja o exercício duma turbulenta paixão em vez do exercício de uma tranquila vontade? Daí que o pudor impeça quem fala, embora não faltem argumentos a quem pensa”. É; a vontade é tirana mesmo! E não há freio moral que lha domine por completo, em definitivo; há que se morrer para isso. E de pouco adianta a mutilação do “instrumento do mal”, como fez Orígenes de Alexandria, o maior dos alegóricos da Antiguidade cristã, que, interpretando literalmente o versículo doze do capítulo dezenove do evangelho segundo são Mateus (“Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do Reino dos céus. Quem pode receber que o receba”), arrancou fora o pênis, para poder viver santamente. Conforme Eusébio de Cesáreia, na sua Historia ecclesiastica (talvez escrita entre 303 e 323), Orígenes ficou à frente da escola catequética de Clemente por 28 anos, levando uma vida extremamente ascética, santa e piedosa. Quanto à sua castração, para fugir das tentações, não adiantou; não adianta. Tudo está na mente. Mesmo a curva de uma árvore ou o curso sinuoso de um rio, dado o caso, lembra o corpo de uma mulher, os cabelos longos que tremulam ao vento. É na própria Escritura, no Cântico dos cânticos, que, de um modo poético pouco recomendado hoje, encontramos o Amado falando à Amada numa linguagem metafórica, ligando-a à natura:

Como és bela, minha amada,
como és bela!...
São pombas
teus olhos escondidos sob o véu.
Teu cabelo... um rebanho de cabras
ondulando pelas faldas de Galaad.
Teus dentes... um rebanho tosquiado
subindo após o banho,
cada ovelha com seus gêmeos,
nenhuma delas sem cria.
Teus lábio são fita vermelha,
tua fala melodiosa;
metade de romã são teus seios
mergulhados sob o véu.
Teu pescoço é a torre de Davi,
construída com defesas;
dela pendem mil escudos
e armaduras dos heróis.
Teus seios são dois filhotes,
filhos gêmeos da gazela,
pastando entre açucenas.

E é no mesmo livro que encontramos a mulher amada sendo despertada pelo amante que lha deseja, lha quer possuir: “Abre, minha irmã, minha amada, / pomba minha sem defeito!”. Mas ela joga com os seus desejos: “Já despi a túnica, / e vou vesti-la de novo? / Já lavei meus pés, / e vou sujá-los de novo?” A imagem seguinte é o do amado, que se foi, como se chateado pelo jogo: “Abro ao meu amado, / mas o meu amado se foi... / Procuro-o e não o encontro.” Depois, bem mais adiante, os dos dois estão juntos, vencidos pelo desejo: “Madruguemos pelas vinhas, / vejamos se a vinha floresce, / se os botões estão se abrindo, se as romeiras vão florindo: / lá te darei o meu amor... / Sua mão esquerda / está sob minha cabeça, / e com a direita me abraça.” Não, Helena! Não faz sentido a hermenêutica que diz que há, aí, uma metáfora da “relação amorosa do Cristo com a sua Igreja”. O que o poema sagrado mostra é a beleza da vida sendo celebrada, e a naturalidade do sexo - que é como respirar, ter sede; o que está sendo mostrado aí é que, contrariamente ao que o santo Bispo de Hipona parece sugerir, uma boa trepada pode ser, sim, santa e imaculada.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

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Da construção da identidade individual e do Outro como problema e solução. A construção da identidade indivíduo-social é um processo lento, carente da memória, dos relógios, dos calendários e, acima de tudo, da vida vivida, experienciada. Aí, os acontecimentos, por menores que sejam – e eu não ignoro que a nossa memória preserva umas coisas e descarta outras, conforme um mecanismo próprio de defesa –, requerem interpretações, hermenêuticas, critérios de/para escolhas várias. Sim: mais do que uma memória individual, a memória quer ser memória coletiva – embora lute para manter a sua identidade própria: o Eu que me penso e, partindo de mim, penso sobre o Outro, sobre o Mundo. O problema é que a identidade individual só se constrói a partir das identidades coletivas, desses outros. É nela que, desde cedo, me espelho, me faço, me humanizo, me reconheço, me aproximo e, para continuar sendo eu mesmo, também me distancio, quero me distanciar. Isso explica, grosso modo, o desejo que temos de que aquilo que alimenta o nosso desejo (o objeto amado, por exemplo) seja, para o desejo do Outro, conhecido, apreciado, desejado; mas, por ser nosso – o sentimento de posse é inevitável –, restrito a esse Outro. O que queremos, dele, é só o desejo do/por nosso desejo; como uma criança que desafia a outra: “O meu jogo é melhor do que o seu!” Nós nunca crescemos realmente; o que crescem são os objetos dos nossos desejos. O Outro, acerca do nosso objeto, não deve ter mais do que o desejar: desejar o nosso desejo. Essa é a única liberdade que lhe damos, lhe permitimos ter, no mais comum dos casos, no mais comum das vezes. O Outro deve querer o que eu quero para que eu mesmo continue querendo o que, agora, quero, é meu. O não-querer do Outro, para o que é meu, enfraquece o meu próprio querer, me faz duvidar do valor que lhe atribuo. Coisa rara, raríssima, é ocorrer o contrário. Há, pois, o querer individual que quer e deseja o desejo de querer do querer coletivo, e do Outro, indivíduo isolado como eu, e, aí, mirado – mas isso sob limites, sob muitos limites: para que esse querer, na sua progressiva e natural expansão não “engula” o querer individual, despersonificando-o, inautênticizando-o. Como se vê, é um carnaval canibal (para usar uma expressão de Baudrillard); como se vê, é um dilema permanente. Pois é assim também que o amor que dizemos ter por outrem precisa, mais do que a sua aprovação, ter a aprovação do Outro, a aprovação dos outros. Um elogio à mulher amada ou ao homem amado é, indiretamente, um elogia àquele que a ama, àquela que o ama – nós mesmos. Uma palavra depreciativa, de igual modo, é o contrário disso. Que efeito medonho não causa em nosso espírito a chacota dos amigos que dizem: “Fulano, meu amigo, como é que você não tem vergonha de sair por aí com essa marmota! Pelo amor de Deus, homem!” Ou ainda: “Fulana, querida: isso é mau gosto mesmo ou falta de opção?”, ou et cetera e mais et ceteras sem fim... Isso tudo, assim dito, bem pode explicar o esfriamento de certas paixões, de certos quereres. O problema e a solução estão, afinal (oh, terrível contra-senso!), no Outro. Daí Sartre (Entre quatro paredes, 1944), com razão, dizer que é aí que o inferno habita.