terça-feira, 30 de março de 2010

43
.

Dos poetas, boêmios, amantes incontinentes e da parte que eles têm com o Diabo. Quando eu fazia meu doutoramento em Teologia, na EST, em São Leopoldo, Charles, um amigo que procurava ser o mais ortodoxo possível (e eu o respeitava por isso), tão logo alguém saísse com esta: “A noite é uma criança”, dizia, de pronto: “E vocês são os brinquedos dela”. Depois fiquei sabendo que o avô do avô dele, um daqueles que vieram na época da colonização, já dizia isso. Boêmios, poetas e românticos em geral têm, comum das vezes, predileção pela noite, pelo álcool e por mulheres. Paul Veyne, por exemplo, em L’Élegie érotique romaine – l’amour, la poésie et l’occident (de 1983), transcreve o famoso epitáfio de Rabelais, atribuído a Ronsard: “Du bom Rabelais, qui buvait / Toujours, cependante qu’il vivait; / Jamais le soleil ne l’a vu / Tant fût-il matin, qu’il n’eût bu / E jamais au soir la muit noire / Tant fût tard, ne l’a vu sans boite” (O bom Rabelais que bebia / Sempre enquanto vivia; / Nunca o sol o viu / Mesmo que fosse pela manhã, que não tivesse bebido / E a noite escura / Mesmo que fosse tarde, jamais o viu sem beber). O epitáfio de Rabelais, conforme consta, faz parte das peças do Bocage real, de 1544, de Ronsard – que depois foram suprimidas. Rabelais, aí, é mitificado como homem da noite, entregue às bebidas e aos prazeres mundanos. Todavia, não é porque falava de bêbados e notívagos que ele, ele mesmo, fosse um. A imagem que criamos dos outros é, em generosas medidas, a imagem que queremos ter – como a de um ídolo qualquer a quem amamos. Do modo contrário – questão de tempo –, e para desmistificar tal imagem, basta que se conheça o/a ídolo. Nós próprios, com o fito de causar alguma boa impressão, também costumamos nos mitificar, como se fôssemos as melhores ou as piores criaturas da terra. E isso, de nenhum modo, é fenômeno recente. Propércio, recorrendo ao Priamel (Der Priamel der Wert in Grieshischen von Homer bis Paulus, de 1964), fala a Demofoonte: “Tu me perguntas, ó Demofoonte, por que não posso resistir a nenhuma mulher? Não é uma pergunta correta: em amor nunca existe por quê. Não há pessoas que se cortam os braços com punhais sagrados e se mutilam ao som de ritmos de Frigia? A natureza assinala a cada um sua esquisitice, e meu destino é o de sempre ter em mente algum amor”. É a aventura humana e a exaltação do Eu à categoria de divino – ou de alguma proximidade com ela – que, desde os primeiros romances (enquanto categoria literária) se faz notar. Assim, na literatura helênica, por exemplo: “Descobertas modernas de papiros demonstram que as origens do romance grego, que os estudiosos do passado remontavam ao período romano tardio, situam-se no século II a.C. e são expressão típica da visão helenística da existência humana.” São palavras de Helmut Koester, estudioso da história, da cultura e da religião do período helenístico. E Koester ainda diz que “o romance reuniu num conceito literário novo todos os elementos da experiência humana e a superação das suas limitações, enquanto estas encontravam expressão em vários gêneros da literatura helenística. O romance leva em consideração os horizontes geográficos mais amplos expandidos por meio das conquistas de Alexandre, mas coloca o indivíduo humano no centro da trama e procura reconciliar seus heróis com os poderes do destino que frequentemente parecem tornar a vida sem sentido, culminando num final feliz”. É exatamente isso que podemos constatar no final da Odisséia, quando os patifes pretendentes da amada mais fiel, Penélope, são massacrados pelas hábeis mãos de um Odisseu enfurecido. De Penélope, não são esquecidas as noites e mais noites de solidão a tecer uma colcha que nunca acabava e, se parecia que ia acabar, era desfeita. Como ela poderia dormir com outro homem que não o seu amado Odisseu? No romance antigo, o excesso sexual é cabível apenas em personagens cômicos ou secundários. O romance em seus começos, ao contrário, defendia uma virtude que elevava o tema do sexo a um nível máximo da espera dolente; os amantes preservam sua castidade até o fim. Essa visão do sexo, às vezes ampliada pela vida prodigiosamente exemplar do herói ou da heroína, ganha contornos de uma virtude quase sagrada, sacralizando o sexo que foge do excesso, ou que simplesmente se anula em função – ou com o fito – de guardar a alma pura, neste corpo que lha aprisiona. Na Antiguidade Tardia e na Idade Média, principalmente, tal visão do sexo como “coisa suja”, “anti-heróica” e imoral, quando feito fora da alcova, por “simples prazer” ou antes do matrimônio, não somente foi ampliada como foi condenada em sua prática. Não havendo um meio racional de prevenir os pares contra a libertinagem, usavam-se as penas legais e, se não fossem suficientes para apagar tanto fogo, as penas capitais que recomendavam a alma do leviano e da leviana ao fogo do inferno aquecido cinco vezes mais. A Igreja, zelosa da moral e do poder simbólico imposto através de tanto medo reunido, tornou-se governanta (embora tenha se autoproclamado mãe) e mestra, e, às vezes, juíza e carrasco. A voz oficial da Santa Madre Igreja, por séculos a fio, fez a noite, o álcool, as mulheres (era uma época machista mesmo!) e o sexo, de algum modo, terem parte com o Diabo. Mancomunados com ele e olhados (às vezes vigiados) com desconfiança, estavam os poetas, os bêbados e os amantes incontinentes, como no exemplo de Propércio.
.
(Nos bancos que margeiam o busto de Lutero, no campus da EST):
TIAGO – Óo, gente; vamo ali no Cachorrão beber umas Polar e comer umas fritas...
CHARLES – Bah! Nem posso!
BENITO – Ué? Por quê?
CHARLES – Porque tenho que fazer umas lições de hebraico e...
GRÉGORI – Ôoo, mas ainda é cedo, Charlinhooo... A noite é uma criança!
CHARLES – E vocês são os brinquedos dela!
PATATIVA – Ah, Charles; cala a boca!

sábado, 27 de março de 2010

42
.

Das semelhanças entre a chama de uma vela e o mudar de casa. “B.-H.L.: Eu não sou romântico. Enfim: tento não sê-lo. E conheci, próximo de mim, muitos vínculos que se desfizeram por serem muito, muito prudentes. Porém, não digo, com efeito, que eles ‘se desgastaram’. Nem, de resto, que as paixões ‘se extinguem’. Não somente por essas palavras serem feias (ainda que isso conte, não é, a feiúra de uma palavra?). Mas é a própria idéia que eu recuso. Pois nos dois casos a idéia é a mesma. Ora se diz que a paixão ‘se extingue’ – e é concebida como uma espécie de chama, ou de vela, de combustão forçosamente limitada. Ora se diz que ela ‘se desgasta’ – e é concebida como uma velha corda que seria usada até o ponto de se romper. O ponto comum é que vêem essa paixão como um tipo de massa, ou de estoque, com tudo o que essas palavras podem ter de redutor. Há uma reserva de amor. Tira-se dele. Tira-se mais ainda. Uma bela manhã, nada mais há dele. Esgota-se a paixão, como se esvazia uma conta no banco. Bem, não creio nisso... Não creio, de maneira nenhuma, que seja assim que as coisas se passem...
F.G.: Não imagino a paixão como um ‘estoque’ que iria se esgotando, ou como uma chama que iria diminuindo. Extinguir, apagar: a palavra é ruim, você tem razão, se bem que seja a de Proust. Não encontro outra melhor para dizer que um dia há uma quebra e aí... pronto... se dissipa, desaparece, sei lá. Estava lá, agora não está mais...”
A.P.S.: Pois eu sei que palavra é essa: Perspectiva. E uso assim, com um “P” maiúscilo mesmo porque, dentre outras, bem muitas outras, está ligada diretamente ao Desejo, àquela Vontade que Schopenhauer também escreve com “V” maiúsculo – embora isso seja bem comum na língua dele. Enfim, penso que vocês se confundem porque, ainda, e não sei exatamente por quê, querem dar uma “explicação” da relação homem/mulher de uma perspectiva romântica, idealista, cinematográfico-hollywoodiana, ou sei lá o quê – para usar uma expressão sua, Giroud querida. Não é difícil ver: toda a beleza – e nenhum dos dois há de negar que o que aproxima um homem de uma mulher, ou o contrário disso, ou isso aí invertido, é essa coisa que chamamos de “beleza”, “empatia”, et cetera - tende a morrer, cedo ou tarde, diante do tédio cotidiano, dos olhos que se acostumaram com ela. Acontece que nós, carentes de absolutos – e a beleza absoluta não pode ser contida em um objeto limitado (e não há como não reconhecer que o objeto do nosso amor é sempre, de algum modo, limitado) – sempre procuramos essa “coisa” absoluta para além do horizonte: é o que alguns chamam de transcendência, e que outros querem fazer esbarrar em alguma divindade supra-lunar, metafísica e mais et ceteras. Assim, quando a chama se apaga – nem ligo se a palavra é feia –, logo tratamos de procurar uma chama de maior brilho; quando a grama escasseia, pulamos o cercado. Não é que a Vontade (ou o amor, como vocês insistem) se acabe; o que ocorre é que mudamos de casa, direcionamos a nossa vontade para outro alvo. O amor romântico, tal qual o conhecemos em seu modo mais comum, só se prende por amarras morais, e isso no plano físico – pois, noutro plano, voa por muitos ninhos, muitos jardins, como uma borboleta que procura, sem ao menos ter noção do porquê faz isso, a melhor flor, o melhor néctar. Amar é mudar de casa; continuar amando, é milagre!
*****
As duas falas, no texto, antes da minha intromissão, são de Bernard-Henri Lévy e Françoise Giroud, respectivamente. E elas fazem parte do capítulo 6 (“Do erotismo como ingrediente do casamento”) do livro Les hommes et les femmes, de 1993, que é o registro de um diálogo dos dois.

quarta-feira, 24 de março de 2010

41
.
Das perturbações da alma e de uma borboleta pintada por Mabel. Comprei, por ocasião do seu lançamento no XI Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF (2004), em Salvador, Bahia, o livrinho de Maria de Lourdes Borges, que tem o Amor estampado como título. Além de dedicado a mim, a caneta, o tal é dedicado, na impressão, “a um certo A.”, que Maria de Lourdes diz ser o seu “estóico preferido”. Dedicatória essa que, segundo me parece, é uma fala da paixão. Mas, ironicamente, é justamente contra as paixões (que, no latim, também pode aparecer como perturbatio, “perturbação”), que trazem intranquilidades à alma, que a filosofia estóica se posiciona, se impõe. Maria de Lourdes, evidentemente, entende isso muito bem, e ao fazer a interpretação de um certo texto de Sêneca, afirma: “Toda perturbação da alma é nociva para a vida do sábio, logo, toda perturbação deve ser aniquilada. Se todo o amor for perturbação, então o sábio deve tentar extingui-lo”. “Muito bem”, pensei, “ela não disse em lugar algum que era estóica”. Se fosse, seria a aplicação exemplar do conhecido ditado popular que reza: “Em casa de ferreiro, espeto de pau.” Mas, afinal, nas coisas do amor, nessas perturbações da alma, quem não usa uma máscara? Epicuro, Sêneca, Marco Aurélio e tantos outros sábios antigos que procuravam a felicidade (eudaimonía) na ataraxía (imperturbabilidade), na adequação do corpo e da mente ao curso natural do mundo (da natureza), não puderam escapar dessa máxima da vida, da Vontade de viver: amar não é opção (racional ou emocional), é imposição da natura. Na primeira página de Amor, uma dedicatória irônica, para mim: “Para Antônio, para que aprenda um pouco sobre o amor, Mª de Lourdes”.
.....
Hoje é o último dia deste ano de 2004, um dia quente... E eu tenho à minha frente o quadro que mostra uma borboleta pintada por minha mulher, Mabel, ainda quando criança. Na pintura, a borboleta não tem flor nenhuma, não repousa sobre nada. O meu amor, Maria de Lourdes, é uma borboleta morta; a minha primavera, uma pintura.

segunda-feira, 22 de março de 2010

40

.

Da eterna repetição do mesmo e do pêndulo de Schopenhauer. Salomão, filho de Davi e rei de Israel, apregoando um certo tipo de eterno retorno do mesmo, disse mais de uma vez: “Nada há de novo sobre a terra”. Não sei até que ponto uma afirmação assim tão geral poderia se sustentar; mas isso não vem ao caso, agora. Seja como for, ao menos de exemplo, aqui, serve. Assim, e por exemplo: tudo o que eu já disse sobre o amor, até aqui, com algumas pequeninas variações, já fora dito por Lou Andréas-Salomé em um livro de 1910, o Die Erotik (Erotismo). Lou, para quem não sabe, foi acusada por alguns de ser, pelo enorme fascínio que exerceu em Paul Rée, responsável por influenciar diretamente em seu suicídio; outros dizem que ela tem certa parcela de culpa pelas loucuras de Nietzsche e de Reiner (nome com o qual ela o rebatizou, em lugar de René, que julgava meio efeminado) Maria Rilke. Tanto a morte de um quanto as loucuras dos outros, conforme dá a parecer H. F. Peters, em My sister, my spouse: a biography of Lou Andreas-Salomé, de 1962, foram causadas pelo amor que todos lhe tinham, sem que pudessem possuí-la, como queriam. Lou, que tinha insaciável gana de liberdade, era inquebrantavelmente fiel a si mesma e, por isso, era incapaz de ser fiel a qualquer outro; rejeitava a fidelidade por amor à fidelidade – pois, do contrário, trair-se-ia. É que o amor, para Lou, como eu já espero ter demonstrado, é tão somente o nosso instinto mais primitivo, transvalorado, domesticado, maquiado pela civilidade; uma “coisa” biológica que a razão explica, mas que não domina. A idealização que dele, às vezes, se faz, escapa ao seu mais intrincado fundamento – e aí o erro de amar demais, perder-se no (ou de) amor. “Para Lou”, diz Peters, “o amor é antes de tudo uma necessidade física, como a fome ou a sede, e só pode ser bem compreendido se for considerado assim. Tendo raízes no subsolo de nossa vida, vamos encontrá-lo associado até mesmo aos processos puramente vegetativos do nosso corpo, como os sonhos. É uma força animal, pura e simples, mas no homem, animal superior, a pulsão sexual está combinada com uma influência mental que provoca uma excitação nervosa. A pulsão sexual transforma-se então em sensação. Isso leva a idealização romântica do amor e ao desejo de sua permanência. Exigimos daqueles que amamos uma fidelidade eterna”. Sim! É claro que Freud, que foi amigo pessoal e professor de Lou - a quem ela, em 1931, dedicou um livro seu (Main dank na Freud [Minha gratidão a Freud]) -, confirmaria mais adiante isso tudo que ela dizia, ampliando tais idéias nas teorias que já conhecemos bem. O amor, assim dito, é uma necessidade humana, como também é a capacidade de fantasiar sobre tudo, inclusive sobre ele. Peters, noutro lugar, ainda interpretando Lou, afirma: “Na realidade, porém, toda necessidade humana é logo satisfeita e reclama, a grandes gritos, uma modificação. O amor realizado morre de saciedade”. Isso aí, novidade nenhuma, é reprodução do conceito de amor apregoado por Diotima, conforme narrado por Sócrates em O banquete, de Platão. Principalmente nas coisas do amor, não dá pra ser diferente, porque, como já foi dito: “nada há de novo sobre a terra”. Desejo realizado é satisfação passageira, e tédio (Schopenhauer). Amor é carença, carença é falta e, falta, é Vontade, Desejo e sofrimento: do Desejo ao tédio, do tédio ao Desejo – o pêndulo de Schopenhauer. Adélia também se repete, e repete os sábios antigos: “Amor é sofrimento, é descontentamento”; e Camões faz o mesmo: “É ferida que dói...”; e eu e você experimentamos isso, mesmo que nunca escrevamos um livro, façamos um poema, enlouqueçamos de/por amor. Ferida que dói é no corpo, e, corpo e dor, isso nos temos!

quinta-feira, 18 de março de 2010

39
.

Da teoria do romance e do “superpoderio da realidade”. O quarto capítulo de Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia, de Lourdes Conde Feitosa, com a primeira edição de 2005, tem “A expressão popular nos grafites” como título. De um modo muito sério e lúcido, Lourdes Feitosa reúne e comenta vários documentos e registros de “grafites” de apelos amorosos encontrados nos muros de Pompéia, pequena cidade da Campânia romana (Colonia Cornelia Veneria Pompeiorum) que, como é de conhecimento geral, foi completamente soterrada pelas cinzas do Vesúvio na noite de 24 para 25 de Agosto de 79 d.C. Não sendo uma das mais importantes cidades da Campânia, e havendo sido interditada por Nero, conforme registros de Tácito, Pompéia só seria encontrada 1600 anos depois, em 1763, por puro acaso: quando se descobriu em suas ruínas uma inscrição com o seu nome. E aí foi que, também, se descobriram os grafites que, aqui, nos interessam. “O tema amoroso”, diz Lourdes Feitosa, “é um dos mais correntes em grafites pompeianos e foi expresso por meio da escrita e de desenhos”. É evidente que tais expressões não são exclusivas dos pompeianos, e Lourdes Feitosa tem consciência disso: “Povos de diferentes culturas e tempos históricos deixaram representações de tipo sexual”, ela diz. O tema amoroso é comum tanto às classes mais ricas (os honestiores) quanto às mais pobres (humiliores). Nos grafites (graphio inscripta) pompeianos, gravados com pincéis e estiletes (graphium), nos que resistiram ao labor dos dealbatores – rabalhadores que tinham por ofício a limpeza das paredes –, podemos ver a urgência do que ama em querer haver o seu objeto (“Amethusthus nec sine sua Valentina” [Ametusto não vive sem sua Valentina]); vemos também a dor ante a recusa amorosa (“Marcellus Praenestinan amat, et non curatur” [Marcelo ama Prenestina, e não é correspondido]) e o desespero que implora (“Rogo, domina, ut me ames” [Peço, senhora, me ame!]) e pragueja: “Quisquis amat pereat” (Que morra todo aquele que ama!). Diferentemente da escrita de elite, conservada em bibliotecas e locais privados, o grafite faz parte – como ocorre ainda hoje – da cultura popular; esta que não faz floreios para dizer o que realmente sente. Não posso deixar de mencionar que a expressão “cutura popular”, desconhecida nos tempos de Pompéia, somente surgiria no século XIX, na Europa, servindo para destacar o modo holístico de se falar de uma cultura única ou geral, conforme cada sociedade e suas particularidades tais como: lendas, crenças, canções, costumes, et cetera. Tal linguagem, porém, serve para que façamos a diferença entre a escrita fechada e esta, a do grafite: aberta, gritada ao público, aí, na rua, nos muros. Enquanto a fechada se destina a uma elite que pode tê-la, o grafite serve ao comum (humus), às classes populares (plebs), ao vulgo (vulgus) e à multidão (multitudo) que transita alheia à própria noção de arte e cultura. De fato, e mesmo onde havia, no mundo romano, alguma facilidade de obras de literários - como Virgílio, Tibulo, Ovídio, Catulo, Lucrécio, Tiburtino e Propércio, dentre outros - serem direcionadas ao público em geral (mas nem tão geral assim) e variado, o grafite se voltava para a maioria quase absoluta, às vezes nem carecendo ser lido para ser compreendido. Além do mais, como no caso exemplar de um grafite escrito a três mãos, havia a possibiliade de o leitor intervir/interagir no (com o) “texto”, dinamizando-o conforme sua opinião mais imediata. Neste, pompeiano, lemos:

a) Amantes, ut apes vita[m] mellita[m]
b) Valle
c) Amantes, amantes cureges


Ou, na sua tradução:

a) Os amantes, como as abelhas, buscam uma vida doce
b) Antes fosse assim!
c) Amantes, amantes, precisam e de tratamento!


A sabedoria popular, como a cultura, é cheia de riquezas. O amor, aí, à Vênus associado (“Essas inscrições sinalizam o sentido que Vênus toma entre populares de Pompéia, uma deusa íntima e acessível à condição de humanidade, a companheira que recebe os sinceros sentimentos das almas em júbilo ou tristeza, experimentados em cada vivência de amor.”), serve também de ponto crítico-simbólico demonstrativo do fracasso do ideal sob o peso do mundo fenomênico, o mundo dos não-poetas, da gente “menor” que anda a pé pelas ruas e vê a realidade sem fantasias. A idéia de cultura popular como “coisa inferior”, “cópia da erudita” (como o “artesanato”, no lugar da “arte”), como aparece na inscrição, precisa ser reavaliada. Vênus é tão íntima que, numa inscrição que denuncia uma grande desilusão, recebe ameaças severas: “Quisquis amat ueniat; Venire uolo frangere costas. Fustibus et lumbus debilitare deae: si pot[is] illa mihi tenerum pertundere pectus, quit ego non possim caput illae frangere fuste?” (Que aqui venha quem ama: quero quebrar as costas de Vênus a pauladas e deixar o seu lombo machucado. Se ela pode trespassar meu terno coração, por que não poderia eu rachar sua cabeça com um pau?). Nos compêndios da “história do amor”, os sentimentos e os seus resultados são sempre os mesmos, ontem e hoje; a única coisa que muda é a sua descrição: o estilo narrativo. Por todos os modos, tempos e lugares se constata: não há romantismo que resista a um só dia de “superpoderio da realidade”; é o que me sopra Adorno, fazendo referência a Georg Lukács em A teoria do romance, de 1962. A teoria do romance (Die Theorie des Romans: ein geschichtsphilosophischer Vesrsuch über die Formen der Grossen Epik), embora seja uma obra da juventude de um Lukács pré-marxista, ainda sob a grande influência de Hegel, denuncia que o romance, enquanto gênero literário, está coincidentemente associado ao advento da burguesia. O trabalhador no campo ou o operário na fábrica, na cidade, sem tempo e sem dinheiro para comprar livros – e, caso tenha dinheiro, falta-lhe o tempo para o ócio da leitura – sabe que o amor, mais que uma categoria conceitual, é uma prática que se faz a dois, e que resulta em três, quando a mãe é boa de cria. Se isso parece frio e sem poesia, é que o mundo da vida (ou “a totalidade extensiva da vida”) é mesmo assim. Não há romantismo que resista a um só dia de “superpoderio da realidade”. Amantes, amantes cureges.

quarta-feira, 17 de março de 2010

38
.

Do destino cego e de um sonho de Kaspar Hauser. A montagem de Irreversible (2002) é, conforme o meu juízo estético, perfeita. O filme, como já disse em outro texto, é dirigido pelo franco-argentino Gaspar Noé e estrelado pela belíssima Mônica Belluci. Começa pelo fim, literalmente: créditos, confusão, destruição, violência... O começo é uma praeparatio finis, preparação para o final. Do mesmo modo, Noé nos diz, também é a nossa vida, nosso nascimento – em Carne, curta-metragem de 1991 que ele escreveu e dirigiu, a mesma metáfora é utilizada. Noé, como Werner Herzog, sabe ver mais além do que a beleza esconde. Duas cenas fortíssimas de Irreversible - a do estupro e a do estuprador tendo o rosto esmagado por um extintor – são metáforas da vida que se vê aí, mergulhada na violência do dia-a-dia daquele que ama, que diz amar e, por isso, faz escolhas, elege o seu objeto. Toda eleição implica em alguma rejeição; e ser rejeitado dói. No entanto, tanto para o que escolhe quanto para o que é escolhido, o caminho é um só, e vai dar em um mote comum, inevitável: pólemos, dor, sofrimento – essa é a regra, nunca a exceção. No final de Irreversible, que é o seu início, a cena é tão bela e cândida quanto pode ser: a violentada, antes da violência, deitada na grama verde, lendo um livro, alheia ao mundo, cega ao seu destino; crianças brincam, gritam, correm à sua volta; os regadores respingam água, alimentando a vida semeada, fecundando a terra... A mensagem, aí, é: o mundo parece perfeito até que se veja a que destino ele se dirige. Outra imagem de igual conteúdo é aquela que Kaspar Hauser conta de um sonho seu, em O enigma de Kaspar Hauser (1974), perturbadora história real – e perfeita ilustração para a teoria do homem natural de Jean-Jacques Rousseau - levada às telas pelo genial Herzog: um homem sobe um íngrime monte com toda a dificuldade do mundo, sem poder ver claramente quem é que vai à sua volta, quem vai acima ou abaixo dele, e sem saber muito bem porque tem de fazer isto, porque tem de subir. A própria vida de Hauser revela o enfado que é viver, e a luta que é aprender a ser humano, humanizar-se para, no fim... nada: o destino é uma facada nas costas, e o assassino cruel é desconhcido; tão enigmático é o começo quanto o fim, e a única verdade que se tem é: viver, dói. Na última tomada de Irreversible, por fim, a câmara vai girando e subindo, girando e subindo, girando e subindo... E quando tudo vai escurecendo, parecendo ter acabado, vem o texto final, conclusivo, profético-escatológico: “O tempo a tudo destrói”.

domingo, 14 de março de 2010

37
.

Da baixa auto-estima e outros penhascos interiores. O que alguns pseudo-estudiosos do comportamento humano dizem do amor, às vezes, quando não é repetição do que todos já sabem, mais do mesmo, é ou cômico ou absurdo. É o caso do que li em Your child’s self-esteem (de 1975), da americana Dorothy Corkille Briggs: “A maioria das pessoas tem medo de gostar de si mesmas, ao menos de gostar demais”. O oposto disso é verdadeiro, sem exceção nenhuma. Na verdade, e para efeito de espontaneidade, não existe isso que as pessoas chamam de “baixa auto-estima”. O que uma pessoa sente em relação a si mesma é sempre um sentimento de universalidade macro-cósmica em relação a microcosmos. No meu mundo, enfim, tudo gira em torno de mim mesmo, do mundo fenomênico [físico-orgânico] que se dá a mim e, só então, ao Outro – que vive em seu próprio mundo e, à parte, comigo, faz parte do mundo nosso: este que nos aparece, nos é, de algum modo, comum e estranho. É assim que o homem se faz lobo do homem (homo homini lupus), como dizia Plauto. Quer dizer: tudo o que existe no mundo existe para o seu benefício, ou então para a sua ameaça; o que fazemos é reagir a isso, de um jeito passivo ou ativo, a depender das situações. Você já deve ter ouvido isto: “Cada pessoa é um mundo”? Nada mais verdadeiro. Quando alguém afirma que está com a estima baixa, na verdade, está dizendo que as coisas nos demais mundos não estão se comportando corretamente ao seu favor, como deveriam se comportar. Pensando nos “outros”, em como os outros deveriam agir para que o mundo fosse melhor, essa pessoa pensa somente em favor de si mesma, do seu mundo. “Mas”, alguém poderia argumentar, “o suicídio não é uma demonstração de baixa auto-estima? De falta de amor-próprio?” Na verdade (isso é Pascal quem nos diz), o suicídio é, muito provavelmente, a maior demonstração que alguém pode dar a respeito do grande amor que tem por si mesmo. Quando os mundos parecem não girar em favor do suicida, a morte procurada se torna uma válvula de escape contra a infelicidade de viver “isso” que se vive, torna-se a passagem para um “outro mundo”, quiçá mais venturoso. Nas palavras de Pascal: “Todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar...” Compreendendo tudo isso, fica também evidente o paradoxo do/no argumento do Dr. Walter Doyle Stapes, em Pense como um vencedor (lançado no Brasil pela editora Pioneira, em 1995): “A baixa auto-estima”, diz ele, “tem um efeito profundamente negativo sobre a personalidade e o comportamento humanos. A maioria dos psicólogos acredita que a baixa-estima, mais do que qualquer outro fator isolado, é a causa da maior parte dos distúrbios psicológicos, a razão principal da epidemia de fracassos humanos e da resultante miséria em nossa atual sociedade. Testemunhos disso são o aumento no abuso de drogar e álcool, na criminalidade, na gravidez de adolescentes, na violência doméstica, estupros, promiscuidade e abuso sexual de crianças”. Quanto absurdo! Livros de auto-ajuda, definitivamente, não ajudam em nada – a não ser em manter as pessoas na embriaguez que lhes diz que tal remédio, placebo, oferece toda cura para todo mau. Na verdade, e para o que diz respeito às palavras do Dr. Stapes, se você quer que realmente isso aí tenha algum sentido, então você deve ler tudo o que ele diz ao contrário: é a auto-estima das pessoas que lhas conduz ao álcool, à criminalidade, ao sexo, a isso e aquilo outro. A motivação do estuprador de criancinhas, do pau-d’água e do fracassado, mais do que embasada numa pseudo “baixo alto-estima” (o próprio termo é uma contradição), é enraizada em seu/nosso enorme amor-próprio (amour de soi), no seu/nosso desejo maluco de que tudo, no(s) mundo(s), gire sempre em seu/nosso favor.

quinta-feira, 11 de março de 2010

36
.
Das impossibilidades e dos delírios. Jorge Luis Borges, o maior escritor argentino do século XX, disse uma vez: “Parece-me fácil viver sem ódio, coisa que nunca tive, mas viver sem amor, acho impossível”. Algo bem semelhante ao que encontramos no russo Liev Tolstói: “O homem ama porque o amor é a essência da sua alma e por isso não pode deixar de amar”. Afirmações essas que destoam completamente daquela que encontramos em Olavinho Drummond, no seu livrinho Vida positiva, de 1995: “O amor é a grande saída, o melhor caminho, a mais doce opção. [...] Jamais deixe de amar”. Destoam porque, em primeiro lugar, o amor não é nunca “uma saída” – no sentido de “a melhor resposta para tudo” –, e isso é assim porque o amor, também, não pode ser “um caminho” – algo que se tome para..., algo que seja percorrido. Mais do que evidente é o que já constatamos em outros textos aqui: o amor não é nunca uma opção. Como alguém pode optar (amar, não amar) por aquilo que não está em seu poder, sob seu controle? Mesmo respirando aquelas nuvens etéreas do idealismo platônico relativo ao nosso tema, Tolstói também dizia que “o amor é a essência da [...] alma” e “não se pode deixar de amar”. Esse é o segundo ponto a destoar do clichê piegas de auto-ajuda de/em Olavinho Drummond. E eu levo tal ponto à última potência. Isto é: o amor é sempre uma imposição natural da vida que quer viver, da Vontade da vida. A única opção que temos é para os nomes que damos a essa força cega e impulsiva que nos lança uns contra os outros. O único momento que não amamos é aquele em que passamos da condição de vivos à condição de mortos, que é quando não pensamos mais sobre a vida e, assim, sobre o amor, sobre os amores, sobre o amar. Nós somos assim, sempre tão passíveis? Sim. E que escolha temos? Viver é opção; amar, estando vivo, não. Amar/amor é condição da (para a) Vida e, mesmo depois que se vão os desejos do corpo, é ainda o impulso cego que nos impõe a vontade de preservação do que há, do que ficou pelo caminho, do que geramos. Destruir o tudo feito, dá no mesmo. De um jeito ou de outro, amor é sofrimento do começo ao fim, como diz a Adélia: “Amor é sofrimento, é descontentamento, é mais que violento o amor...” Pólemos por toda a parte. Os teólogos repetem Platão quando, como faz o espanhol fundador da Opus Dei, Josemaría Escrivá de Balaguer, em Caminho, de 1934 (considerado um best-seller de espiritualidade), afirmam: “Não há outro amor além do Amor!” Esse amor ideal, caso fosse, seria o único realmente bom e verdadeiro. Mas nós não o conhecemos porque, limitados, só entendemos minimamente do que vemos, tocamos, cheiramos, comemos: o mundo fenomênico. Dizer ou ir além disso é viagem, delírio, metafísica. Sei que é chata a afirmação, mas, olhando a fundo – e ignorando a autoridade do santo –, percebo que Escrivá não diz nada com nada, apenas poetiza sobre um sonho e uma Vontade corrompida; pois, sendo natural, é aí espiritualizada, maquiada, travestida de uma luz que não existe além do conceito, do pensamento abstrato, da palavra que voa como vento e que não é mais do que isso. Os místicos cristãos, afinal, não são superiores e nem melhores do que alguns sábios chineses ou alguns gurus indianos que, em êxtase... deliram.

terça-feira, 9 de março de 2010

35
.

Do amor adolescente. Mais que os adultos, aos quais a moral (a cristã-ocidental, ou outra qualquer, patriarcal) já impôs as normas constitutivas da sagrada família, que é sempre vista como instituição divina e essência geradora (ou constitutivo-mantenedora de uma ordem), os adolescentes experimentam – ainda que coagidos por certos rudimentos da lei da coletividade, sempre restritiva, punitiva – algo do amor primevo, ou seja, aquele mais puro amor, animal, e, logo, para os adultos, mais irresponsável. É que os adolescentes são todo-hormônios, testosterona, libido... tudo neles está em ebulição, transformação, evolução. Um passo adiante, qualquer que seja, significa luta: deixar atrás de si o que se era, se pensava, vencendo-se a si mesmo e, também, ao Outro. Pólemos. O amor que sentem é, assim, um amor de competição – não é assim que o processo seletivo se afirma? (Darwin). O namorado de Letícia é, para Letícia, uma “arma contra as suas amigas”, contra a sua potencial extinção: “Vejam o meu namorado; como ele é gato!”, ela diz, ou pensa, ou algo lá dentro dela, que ela nem faz idéia, lhe diz isso de modo calado, puro instinto. Ela, com/por isso, quer dizer às outras: “Eu posso mais do que vocês; fui escolhida [eleita] por ele; estou no topo da pirâmide que diz que, das belezas aqui, sou a maior, a melhor para gerar filhos mais aptos às próximas gerações.” Competição, progresso. Sim, é verdade: Letícia, em seu namorico, ainda não pensa em ter filhos; mas ela não sabe que não sabe disso. Quem lhe denuncia é o seu jovem corpo exitado pelos beijos e abraços do namorado, ou as suas mais ingênuas manifestações maternais – como quando ainda era criança e brincava com as suas bonecas: fosse a do bebezinho que fazia xixi e chorava, ou aquela da Barbie, que é uma especie (modelo) de padrão de simetria, de estética, dizendo ao inconsciente coletivo que tal padrão - embora a cultura (que é engenho nosso), com o tempo, possa fazê-lo variar - é o ideal, que pode gerar outros exemplares simétricos, perfeitamente ordenados conforme as preferências estéticas do Mercado e da saúde. O amor adolescente, ou dos/nos adolescentes, é o amor da auto-afirmação: usa-se o outro, o mais belo possível, para, a si mesmo, afirmar-se como belo, como bom reprodutor ou boa reprodutora que pode gerar bons reprodutores. No final de tudo, mascarada nas disputas que, às vezes, dilaceram corações, está a vida, a Vontade de vida, de eternidade.

sexta-feira, 5 de março de 2010

34
.
Das incógnitas e da ignorância feliz. Machado de Assis, como se um Heráclito fosse, sabia ser enigmático, profundo, obscuro. Ao menos é o que uma citação sua demonstra, quando trata sobre o amor, o amor de cada um: “Cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba amar”. A parte em itálico fui eu quem colocou, para dizer que, aí, fiquei pensando no amor que têm os pedófilos, os estupradores, os fratricidas... “O modo, pouco importa...” Importa, sim! Claro que importa! Os meios não justificam os fins, mas, sim, o contrário (Maquiavel). É evidente que Machado de Assis não falava disso de uma perspectiva assim, nossa, pessimista; e, sim: é preciso sempre atentar para o contexto et cetera... essas coisas da hermenêutica. É preciso, e muito, levar em consideração essa colocação, e até as suas últimas consequências – porque Machado de Assis tinha em mente um freio moral para os amantes (mesmo uma leitura superficial da sua obra revelará isso), como aparece no final da citação: “o essencial é que saiba amar”. E aí é que se mostra todo o problema: saber amar. Saber amar implica em saber o que é(são) o(os) amor(amores). Saber sobre o amor, mesmo, é como explicar o arco-íris: vai-se a poesia, o encanto mágico: sobra a ciência, a mágica explicada, desencantada. Não indo a poesia, ficando o encanto mítico, é a Vontade cega a lançar indivíduos contra indivíduos, de muitos e variados modos – como também faz o fiel em direção ao objeto da sua fé, lançando-se, sem duvidar: porque senão se perde, e vira ou teólogo, ou filósofo, ou ateu, ou herege. Fé e pensamento não se unem, a não ser conceitualmente; o mesmo vale para o amor e a razão. Amor e fé, dois nomes para a ignorância feliz.

quarta-feira, 3 de março de 2010

33
.
Da suspensão romântica. A suspensão romântica é o memento mais exuberante da vida, da Vontade da vida: é o momento em que dois olhos se encontram, se reconhecem e, sem que, necessariamente, haja qualquer toque ou discurso, se amam. Foi assim, por exemplo, que Florentino Ariza, poeta e telegrafista, conheceu Fermina Daza, o amor da sua vida - a quem, embora viesse a ter um número altíssimo de amantes, esperaria por toda a sua vida: até o dia em que o marido dela, o aristocrata Dr. Juvenal Urbino, já velho, morresse. “Fermina”, diz Florentino, “esperei por esta oportunidade durante cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias. Este é o tempo que tenho amado você, desde o momento em que a vi, até agora”. Fermina e Florentino são personagens do best-seller de Gabriel García Márquez, O amor nos tempos do cólera, de 1985. A arte imita a vida em seu espetáculo mais vibrante, e também nos seus delírios: “Depois de ciquenta e quatro anos, sete meses e onze dias e noites, meu coração finalmente se realizou. E eu descobri, para a minha alegria, que é a vida que não tem limites, e não a morte”, diz Florentino, já velho, ao lado de seu velho amor. E assim termina a história. O tempo que propicia o encontro é o mesmo que reclama resultados: a vida que, dos dois, deve advir – pois a união de pessoas não tem outra finalidade senão esta: a continuidade da vida. Mas a gente não costuma pensar ou sentir o amor com a razão, de modo químico-biológico, mas de modo sublime, mágico, mítico. É assim que, mesmo ao sabor do acaso, a suspensão romântica se mostra como aquele momento em que um olhar diz ao outro: eu poderia ser seu, eu poderia ser sua, para sempre – como prometera Florentino à Fermina. Ser seu ou ser sua, curso natural, resulta no filho ou na filha que é nosso, que é nossa! E mesmo que isso não se dê assim, de modo efetivo/afetivo, físico – pois nem todos podem gerar filhos -, dá-se, porém, de modo ideal, platônico, no desejo gravado em nosso programa genético. Algo bem idêntico ao que se diz no Evangelho, de modo reprovatório: “Quem olhar para uma mulher e desejar possuí-la, já a possuiu em seu coração”. O desejo, aí, é o mesmo que a ação, na intenção. Mas a suspensão romântica pode assumir várias e, por isso, equivocadas facetas. Uma dessas foi a que me soprou Rubem Alves, falando de uma das suas viagens de metrô, em São Paulo. Ele conta que o vagão estava lotado, sem lugares para que ele pudesse sentar. Mas isso não o incomodava, pois ele era jovem, se sentia jovem. Em pé, segurando num balaústre, começa a observar o rosto das pessoas – coisa que ele gosta de fazer. É que “os rostos revelam mundos”, ele diz. “De repente”, conta, “meus olhos encontraram uma moça que também olhava para mim, com um discreto sorriso nos lábios. Foi um momento de suspensão romântica: eu olhando para ela, ela olhando para mim. Aquele poderia ser o início de uma história de amor... Muitas histórias de amor se iniciam em estações. Mas então, naquele momento de suspensão romântica, ela fez um gesto delicado: sorrindo, se levantou e me ofereceu o lugar... Entendi então o sentido do seu sorriso: olhando para mim ela se lembrava do seu avô, velhinho tão querido... Compreendi que estava velho”. Nos caminhos do amor, as suspensões românticas são como flores silvestres. Às vezes perfumadas, às vezes não. Mas, afinal, flores.