domingo, 28 de fevereiro de 2010

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Das análises profundas. O amor é um dos temas centrais das filosofias de todos os tempos. Aliás, o próprio termo philosophia (philo: “amor”, “amizade”; sophia: “sabedoria”) é radicado no amor, no amor ao/pelo saber. Ou seja: é algo sempre em vista de... Não é um saber acabado, pronto, definido, mas a definir-se, sempre e cada vez mais. Os discursos mais antigos sobre o amor - e boa parte dos modernos -, via de regra, insistem em querer transcender as falas miúdas dos amores meramente humanos; como se existissem amores que não fossem meramente humanos. Isso tudo vem a reboque no lastro da cultura ocidental, predominantemente platônico-cristã, que impôs, desde cedo, um padrão de discurso que fazia tudo esbarrar no divino Misterium, no Divino Absoluto que, em tal discurso, era/é o real, sendo tudo o mais meras aparências, sombras, simulacros imperfeitos procedentes daquela perfeição. É o amor sublime (ágape) em oposição ao amor humano (Eros), como a Adélia faz notar no poema “Amor feinho”, no seu livro de estréia, Bagagem, de 1976: “Eu quero amor feinho. / Amor feinho não olha um para o outro. / Uma vez encontrado é igual fé, / não teologa mais.” O amor feinho, aí, é sublimado à categoria agapéia: “não olha um para o outro” com os olhos da estética, da simetria; “é igual fé, não teologa mais...”, entrega-se sem procurar razões. Tão diferente é o outro amor, que vê o outro, analisando-o com olhos de raio x. É essa turbulência que faz “O sempre amor” – outro poema da Adélia, no mesmo livro – ser isso: prazer e dor, querer e não-querer: “Amor é a coisa mais alegre / amor é a coisa mais triste / amor é a coisa que mais quero...” Quando, em 1860, Ivan Turguêniev publicou Primeiro amor (Pervaia Liubov), fez Vladimir Petróvitch, seu personagem principal e narrador, um garoto de apenas 16 anos, amargar pelo amor impossível de sua vizinha, Zinaíde Alexándrovna, de 21 anos, filha de princesa e dona de uma beleza arrebatadora. O amor de Petróvitch – a quem Zinaíde chamava de Volódia – era tão contrário ao amor feinho que, longe de ser aquela entrega da fé (“não teologa mais”), era uma entrega embriagada na/pela beleza que via, e que via bem. Mesmo havendo sido “traído” por Zinaíde – que se encontrava secretamente com o pai de Petróvitch -, e depois de obter a sua confissão de culpa, Petróvitch confessa: “O que eu poderia dizer-lhe? Ela estava à minha frente e me fitava – e eu lhe pertencia por inteiro, dos pés à cabeça, assim que ela olhava para mim. [...] Ela fazia comigo tudo o que queria.” Não é sem muita relutância e depois de sucessivas frustrações que Petróvitch, finalmente, cai em si – isto é, cai na razão: “O que eu ficara sabendo [o romance do seu pai com Zinaíde] estava além das minhas forças; essa descoberta repentina me esmagara... Estava tudo acabado. Todas as minhas flores haviam sido arrancadas de uma vez, e jaziam em volta de mim, espalhadas e pisoteadas”. O destino dos amores platônicos é sempre este, de um modo ou de outro. Cair em si é doloroso, sempre! Mas, afinal, não é sempre melhor a verdade amarga do que a doce mentira? Quem inventou o amor, eu penso, deveria pagar por isso.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

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Da inocência das crianças. As crianças, entre 4 e 5 anos, começam a fazer perguntas do tipo: de onde eu vim? E fazem assim porque começam a teorizar, não a pensar, pois que já pensam. Qual o lugar da fantasia nessa fase? Qual o valor do mito mais antigo? A afirmação da cegonha não resiste ao tempo, que encarrega-se de limitá-lo à uma fase cada vez mais infantil; aquela que só existe enquanto o acesso às informações externas e ao processo de humanização – como dizem os sociólogos – não se apresentam soberanos. A sexualidade, enfim, está associada desde cedo à curiosidade que faz girar o eixo de todo o nosso pequeno e dançante universo: a questão da finalidade. Crer no absurdo, desde cedo, é certamente o caminho mais curto para que escapemos da importunação da dúvida concernente à existência e sua possível finalidade, ou finalidades. Assim, e por esse viés, chegamos novamente ao problema do amor. Como a idéia de uma entrada imaculada no mundo, mediante a dádiva desconhecida do pássaro de bico longo, assim também é a idéia do amor imaculado (ideal), enquanto acontecimento humano. Alguns indivíduos, por associarem o sexo ao pecado, tentam fazer do amor sensual (erótico) um paradoxo necessário: enquanto a semente fecundante não é expelida sem o prazer, para poder germinar, o amor sensual (Eros) não pode ser sensual, somente um elemento de mérito preservacionista, dissociado do prazer (voluptas). Ainda hoje há grupos sectários que, pasmem, mediante uma hermenêutica para lá de amarelinha, defendem que sexo, segundo as Escrituras, é somente para procriação, para a preservação da espécie. Os que afirmam isso, mesmo sem justa compreensão, fazem coro com Schopenhauer no seu sentido mais puro... Mas erram e se distanciam do autor de O Mundo como Vontade e como Representação de modo absurdo, pois afirmam um amor para além desse, do prazer sexual, que, se pudessem, evitariam. É que tais indivíduos, confusos e confundidores, consignam tudo a uma instância superior, um amor último, finalíssimo, que é o limite de todos os amores possíveis e modelo do que, neles, há de belo, de bom. Amor e prazer, nessa contabilidade maluca, não se misturam. Noutro plano, o prazer (usufruto) esbarra sempre no uso de algo em finalidade de outro algo, e envolvendo alguém (o Outro) – e foi bem aí que se fundaram algumas das doutrinas morais mais antigas. O uso do corpo de um em função do prazer de outro – ou do mero pensamento em função de um prazer artificial –, por exemplo, gerou uma série de questões relativas à sua legitimidade, seu bom fundamento. Acontece que o Outro, nessa relação – mesmo que só evocado em pensamentos –, é sempre objetificado, coisificado; e parece que, embora se diga em grandes linhas que não, não pode ser diferente. E como não o seria? O outro, assim dito, é objeto de um prazer, mediante a sua utilização, seu uso. O problema todo é só conceitual, pelo tom pejorativo que as palavras “objeto” ou “coisa” (obiectum) têm, quando aplicadas a uma pessoa. Tudo o que me é externo, no entanto, é objeto, coisa – pois é só assim que posso me relacionar, mencioná-lo como não-eu; e mesmo as coisas que não vejo, mas que podem ser pensadas, como os números, os símbolos geométricos, Deus, os anjos, et cetera. E o que seríamos de nós se não fossem as coisas que não podem ser vistas? Quando uma criança disser que tem um monstro debaixo de sua cama, Helena, acredite nela.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

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Do doloroso prazer emotivo. Prazer (voluptas) e dor (dolon) são duas notas que formam um acorde chamado “emoção” (affectus, ou passio). Diferentemente do que rezam algumas interpretações moderninhas da tradição filosófica, principalmente quando têm o epicurismo por tema - às vezes reputado por leitores superficiais e hostis como uma doutrina do prazer sexual -, o prazer nem sempre pode ser associado à felicidade (gr. eudaimonía; lat. felicitas). O prazer é mais ligado à condição temporal da satisfação equilibrada na conformidade natural, ao passo em que a felicitas, pelo menos no seu sentido mais profundo, diz respeito a uma satisfação plena, duradoura, que pretende-se eterna – como aquela que Santo Agostinho disserta no De beata uita, ou como a que Nietzsche, em Assim falou Zaratustra, diz, de modo poético: “O prazer quer a eternidade de todas as coisas, quer profunda, profunda eternidade!” Claro que considero, aqui, os rompimentos de Nietzsche com a tradição metafísica e a moral cristã tradicional, tão marcada e presente em Agostinho. Seja como for, e num passado bem mais passado, também Aristóteles dizia que o “prazer é o ato de um hábito conforme a natureza”. Convém lembrar que, para Aristóteles, hábito tem o sentido de “disposição constante”. A importância dessa definição está no fato de o prazer dever ser diferenciado de sensibilidade – ou dos prazeres sensíveis –, uma vez que o hábito pode ou não ser sensível. Foi somente no Renascimento que as definições de prazer foram mais associadas às funções biológicas, e assim, também, mais próximas da emoção – que bem pode ser um nome àquilo que você sente na barriga, como se borboletas voassem dentro dela. Descartes, por exemplo, colocando a alegria como uma das seis emoções fundamentais, diz que ela é “a emoção prazerosa da alma, na qual consiste a fruição do bem que as impressões do cérebro lhe representam como seu”. Algo, sem dúvida, muito diferente da afirmação de Spinosa: “Entendo por alegria a paixão graças à qual a mente eleva-se a uma perfeição maior” – que é, sem dúvida, muito mais próxima daquela de Aristóteles, mencionada agorinha. As características tradicionais (aristotélicas) relativas ao prazer foram mantidas pela psicologia moderna, e renovadas as funções biológicas, confirmando, ao mesmo tempo, aquela especificidade ativa da conceituação clássica, como afirma J. C. Flugel, em Studies in feeling and desire, de 1955. Em relação ao prazer e à emoção, a dor surge como uma das tonalidades mais fundamentais, e, no entanto, e evidentemente, a mais negativa – sempre desfavorável à situação do indivíduo: “A dor diz: ‘Passa, momento’!” (Nietzsche). Mas acontece que essas coisas não podem ser separadas. Daí que a emoção, na definição aristotélica, é toda afeição da alma, acompanhada pelo prazer ou pela dor. Portanto, se Aristóteles estiver certo – como eu acredito que esteja –, o amor, que é o estábulo maior da emoção, é também o fundamento do prazer e da dor, ou vice-versa; a dor é o fundamento do mundo: porque o mundo é pólemos e transformação, e isso dói. Pólemos, dizia Heráclito, é a “mãe e rainha de todas as coisas”, e Empédocles, colocando-a ao lado de Eros, dizia que os dois são os elementos constitutivos que unem o mundo – Ódio (ou Discórdia) seria o elemento contrário, a desuni-lo. Empédocles erra ao separ pólemos de Eros e de Ódio. Tudo, no fim, é Eros e, logo, pólemos. O que isso nos diz? Diz que a dor, por quaisquer dos caminhos dos amores, é sempre presente, como presente é a guerra. Quer dizer: a dor existe tanto para quem ama como para quem não acredita no amor, no amar. Mas, ah!, quanta ironia! Todo mundo, de um modo ou de outro, ama. Amar não é opção, é condição de vida, de viver. O que se escolhe é só o meio, o modo como se ama; o que se faz a tais amores é tão somente nomeá-los, dançando-se conforme a música: nomes, palavras.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

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Das relações entre a paixão e o amor, e do conluio de ambos em função da vida. O amor romântico, embora seja bem comum vê-lo definido como algo bem distinto da paixão, com ela, em/por suas finalidades, se confunde (co-funde). Amor e paixão não são coisas distintas, mas termos que se aplicam a situações distintas - uma levando à outra, invariavelmente. Tem gente que tem medo de dizer que ama, por pensar que se trata de um sentimento nobre, tão nobre que, isso, não se deve dizer a qualquer um. Esse/essa não nota que, tanto o ódio que sente contra o adolescente fela da puta que matou com doze facadas a avó velhinha para pegar seu dinheiro e comprar crack, como a vontade que sente de abraçar e proteger a menininha linda de sete anos que chora por haver perdido os pais no acidente, são as ações da Vontade que lhe movem hora a isso, hora àquilo. “Pro adolescente assassina, né amor não, Patativa, é ódio”, alguém me diz. Ora, o que vem a ser tal ódio senão, de outro ângulo, amor à velhinha morta? Amor à ordem moral que foi rompida? E, à menininha de sete anos: que é isso que se sente senão a piedade que vê ali o frágil, pedindo proteção e abrigo? A inocente beleza em risco. De um jeito ou do outro, mesmo que por ângulos diferentes: amor. Mais um exemplo, e bem comum: tem gente que, quando faz sexo, diz que faz amor, como se a palavra sexo fosse, assim, aliviada, e a cópula não fosse isso assim tão... carnal, feio. Acontece que, tanto em um como em outro caso, é a Vontade que, por cima de tudo, nos conduz a tais sentimentos, tais ações – e em tais ações é que se empregam os diferentes nomes para o amor. Você percebe? No final de tudo, tudo se resume nesta única palavra: Vontade. A palavra “amor” é criação cultural, máscara da civilidade. “Paixão”, como já vimos, vem do latim passione, e diz respeito ao “que sofre a ação”, seja ela qual for, venha de onde vier. Da paixão, a definição do Aurélio, menos etimológica e claramente co-fundida ao amor e à cultura, diz: “sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão”. Alguém pode dizer, por exemplo, que é apaixonado pelos filmes do Almodóvar, do mesmo modo que pode dizer que ama os filmes do diretor espanhol; dá no mesmo. Alguém pode dizer que ama as músicas da banda franco-canadense Stereolab. Outro pode dizer que ama um determinado time futebol, et cetera. A palavra “apaixonado”, aí, teria a mesma validade sinonímica. E a co-fusão é fácil porque é legítima e evidente: uma e outra coisa são só meios de, às vezes, acentuar essa ou aquela intensidade. A paixão também, como vimos no Aurélio – e para usar o nosso dicionário mais conhecido –, é sinônimo de insensatez, pois “sobrepõe-se à lucidez e à razão”. “Ele foi vencido pela paixão”, é dado como exemplo. Quer dizer: o indivíduo possuído pela paixão fez o que, de modo lúcido, não ousaria fazer. O amor enlouquece o amante, torna-o doente, anestesiando-o contra a sensatez da razão pura. Certo é que, tanto a paixão quanto o amor, em se tratando do “sentimento oceânico”, são macomunados em função da Vontade, sendo-lhes como servos e partes. O amor e a paixão também são escravos do devir; é que o amor, sozinho, é tão estranho que não cabe direito em qualquer definição, e não existe sem a paixão; nunca. “Amor é sofrimento, é descontentamento...”, diz Adélia, com toda a razão deste mundo, e dos outros mundos também. Prova disso são os inúmeros filmes, livros, músicas, et cetera, que tentam “decifrá-lo”, amoldá-lo a uma imagem, a um símbolo, a um tipo de conduta, de comportamento. Amor e paixão: dois braços da Vontade que, hora nos conduz com um, hora com outro.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

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Das grandes e pequenas tragédias. “Melancólica paz nos traz esta manhã. O sol, de luto, não se mostrará. Embora daqui, vão, e conversem sobre esses tristes fatos. Alguns serão perdoados, e outros, punidos, pois jamais houve história mais dolorosa que esta de Julieta e Romeu”. Assim termina Romeu e Julieta, a tragédia romântica mais famosa do mundo, escrita entre 1591 e 1595, ainda no começo da carreira do dramaturgo inglês William Shakespeare – que utilizou-se, em seu enredo, de um conto italiano mais antigo, traduzido em versos por Arthur Brooke, em 1562 (e que se chamava A trágica história de Romeu e Julieta) e retomado em prosa por William Painter, em 1582 (com o título de Palácio do prazer). As duas fontes serviram muito bem a Shakespeare (e você pensando que ele era tão original, hem?). As tragédias têm o poder de mitificar as suas pobres personagens. Já imaginou Romeu e Julieta terminando assim: “E os dois viveram felizes para sempre”. Difícil ter, como tem, tanto deste encanto trágico: o meigo e puro amor dos dois, de modo tão medonho, abruptamente interrompido. A leitura de Os sofrimentos do jovem Werther (com a sua primeira edição em 1774) não provocaria tantos suicídios se Werther, afinal, de alguma maneira que não faço a mais longínqua das idéias (talvez se Charlotte ficasse viúva de Albert?), conquistasse o amor de Charlotte. Mas Goethe, com certeza, também não faria todo o sucesso que fez com a referida obra. Há, em toda tristeza, um enigma de beleza crepuscular. É com muita propriedade que Peter Kreeft, em Making sense out of suffering (de 1986), diz que “a tragédia é nossa forma literária mais nobre. A música triste é a mais bonita para nós”. Para os gregos, de quem herdamos muito (ou quase tudo) da nossa maneira de ver e sentir o mundo, o “deus de todas as coisas” era Pã, e seu trabalho, pandemonium. E, acima de todos os deuses, reinava Moira, o destino cego. Daí que a forma mais comum de expressão da cultura grega seja a tragédia, o trágico. E, como eu já disse noutra parte aqui, de amor e de guerras por amor é que é feita a história humana, e os livros, e os discos... sendo tudo o mais apenas adição. As tragédias, sejam elas quais forem, têm no amor o seu principal tema. Talvez não seja exagero afirmar que as histórias de amor sejam as histórias das tragédias, ou vice-versa. A maior história de todas as histórias de amor que se conhece no Ocidente, por exemplo, tem o seu ápice na morte do principal personagem, crucificado. A ressurreição do Cristo não provoca tanto os nossos sentidos como a imagem da sua agonia: o inocente sangrando em dores na cruz, humilhado, dizendo entre soluços: “Perdoa-os, Pai; eles não sabem o que fazem” e, o final, dramático-trágico: “Está consumado!”. As trevas desabam sobre a terra; as mulheres choram... Das maiores às menores histórias, o amor é presente como presentes são as palavras com as quais as mesmas são escritas; e não há como ser diferente. É como o dono da sombra à mesma, e vice-versa. Algo muito parecido é dito por Milan Kundera em Os testamentos traídos (1993): “Será que o amor absoluto não significa que devemos amar o outro com tudo o que há nele e sobre ele, inclusive as suas sombras?” Já em A insustentável leveza do ser (1984), ele dissera: “Os amores são como impérios: desaparecendo a idéia sobre a qual foram construídos, morrem junto com ela.” No pequenino comentário que faz sobre o escandaloso Madame Bovary (escrito por Gustav Flaubert em 1857), Kundera, por fim, diz haver descoberto, com assombro, que o momento presente é feito da coexistência perpétua do banal e do dramático, e que é sobre tal estrutura que todos nós, de uma forma ou de outra, montamos as nossas vidas, os nossos projetos, grandes e pequenos. Vai ver o escritor do Eclesiastes meditava sobre isso quando afirmou: “Vazio de vazios, tudo é vazio”. Mas, que seríamos de nós se não fossem as nossas pequeninas tragédias diárias?, me pergunto. No mundo, pelo menos no “nosso mundo”, são essas pequeninas tragédias que interrompem o curso corrosivo da tranquilidade que é – ou que pode ser – tão letal e destrutiva quanto as grandes tragédias. Exemplo disso é o que se dá no enredo de Childhood’s end, novela de ficção científica de Arthur C. Clark, escrita em 1953, e que deu nome a uma canção da banda inglesa Pink Floyd, no álbum Obscured by clouds, de 1972. Uma bondosa raça de alienígenas quer trazer, à força, paz para a terra. E conseguem. Anos depois o mundo está, por assim dizer, perfeito. Mas este tão admirável mundo novo e tão admiravelmente maravilhoso é também tão admiravelmente... chato, tão tedioso e tão sem significado que o suicídio se torna a “consumação a ser devotamente desejada”. Paz, demais, não há quem a suporte. Freud, não sem pensar, dizia que “não há quem suporte um dia perfeito após o outro”. Eis o dilema das guerras, das amorosas tragédias diárias, da dialética que carecemos. Em resumo: amor romântico é Vontade, e Vontade é carença, falta, sofrimento, desejo trágico - trágico porque, realizado, é o tédio, e mais sofrimento. É uma guerra de/nos sentidos, e a paz desejada que, conhecida, torna-se pior que a própria guerra: sim, porque quem não ama, ou está morto ou virou vegetal. Well, here comes Shakespeare: “All is well that ends well”. Ou será que é ao contrário?

sábado, 20 de fevereiro de 2010

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Do que se perdeu. Quando escreveu este poema:

Gostava de gostar de gostar.
Um momento... Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa de cabeceira.
Continua... Dizias
Que no desenvolvimento da metafísica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de idéias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel...

Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, tinha toda a história da filosofia em sua cabeça. O início do poema Gostava, para quem conhece, é claramente soprado por Agostinho. Dedicado a Alberto Caeiro, outro heterônomo, Gostava é riquíssimo em imagens e referências. Li o tal, pela primeira vez, se me lembro bem, num canto solitário do segundo andar da antiga biblioteca da PUC-RS, quando fazia meu doutoramento em Filosofia Medieval na tal instituição. Se você observar bem, notará que há três tempos bastante distintos no poema: a frase inicial, deslocada; a intervenção do que pede o cigarro, como se doente estivesse; e o vazio que fica na solicitação de que a conversa, interrompida – que nada tem a ver com a frase inicial –, continue. Trata-se de um texto que, por todos os cantos, evoca a ausência, gritando o seu nome: na incoerência lacunar da frase inicial com o resto do texto, no “algo que se perde” de Kant a Hegel e, finalmente, no que virá depois, mas que não vem... Lacunas. O que se perde, afinal? Longe de propor uma resposta final, penso que a leitura de outros textos conhecidos de Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, que são os heterônimos mais filósofos de Pessoa, podem muito nos acudir nisso: o que se perde é o espanto diante das coisas do mundo, da nossa simples visão das coisas in natura. Trata-se daquele thauma inicial que, conforme Sócrates/Platão no Teeteto (“É absolutamente de um filósofo esse sentimento: espantar-se. A filosofia não teve outra origem...”) e Aristóteles na Metafísica (“Com efeito, foi pela admiração que os homens começaram a filosofar no princípio como agora...”) - mas, aqui em Pessoa, sem os chiliques metafísicos -, foi responsável pelos começos do pensamento ordenado, dialético, filosófico, técnico... Técnica que, em suas engrenagens conceituais, também esmagou o arco-íris, explicando-o. O thauma pessoano, em Alberto Caeiro, aparece assim: “Outras vezes oiço passar vento e acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido”, ou: “O meu olhar é nítido como um girassol. / Tenho o costume de andar pelas estradas / Olhando para a direita e para a esquerda, / E de vez em quando olhando para trás... / E o que vejo a cada momento / É aquilo que nunca antes eu tinha visto, / E eu sei dar por isso muito bem... / Sei ter o pasmo essencial / Que tem uma criança se, ao nascer, / Reparasse que nascera deveras... / Sinto-me nascido a cada momento / Para a eterna novidade do Mundo...” O que se perde é o olhar as coisas é ver que elas não têm que ter um sentido que não o intrínseco, próprio delas, delas mesmas. As coisas não existem para serem pensadas (“Creio no mundo como num malmequer, / Porque o vejo. Mas não penso nele / Porque pensar é não compreender... / O Mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos) / Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...”); para ser pensado é o haver quem pense o mistério das coisas (“O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! / O único mistério é haver quem pense no mistério.”), mas de modo resignado, contido – como a dor de um amor que se não teve, não se pôde ter: “Uma vez amei, julguei que me amariam, / Mas não fui amado. / Não fui amado pela única grande razão - / Porque não tinha de ser.” O que há no mundo é o que pode ser visto e tocado e sentido e mastigado, e isso é a realidade, a única verdade possível: “Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.” E a conclusão, a única conclusão, é a morte: “Não: não quero nada. / Já disse que não quero nada. / Não me venham com conclusões! / A única conclusão é morrer.” Pensar o/no amor romântico é também, na filosofia que tenho, por tal mecanismo, pensei, me aproximar da Ciência e, aí, me distanciar do “sentimento puro”, desse thauma que só vê, e sente, e... ama o sentido, ou o sentimento sem procurar sentido, um sentido. Daí Caeiro me diz, mas sem querer aquela conclusão que recusava: [É por isso que] “Eu não tenho filosofia; tenho sentidos... / Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, / Mas porque a amo, e amo-a por isso / Porque quem ama nunca sabe o que ama / Nem sabe por que ama, nem o que é amar... / Amar é a eterna inocência, / E a única inocência não pensar...” Ai, ai! Caio em mim. Se amar é a eterna inocência, então deixar de ser inocente é o mesmo que pensar (ou filosofar sobre...) o/no amor, como tenho feito. Que escolha tão cruel! Um desvio possível (uma saída, uma opção) é também uma pergunta, e sua resposta: é preciso mesmo fazer tal escolha? Responda a você mesmo e seja feliz no amor... mas eu duvido, e duvido muito.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

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Das circunstâncias. Na minha adolescência, disse uma vez àquela que, na minha loucura amorosa, me fazia penar – pois a paixão é isso sempre: insanidade e sofrimento: “O meu mundo gira em torno de ti”. Ah!, mesmo sendo clichê, que linda não era a expressão! Eu precisava dizê-la; precisava. Mas não era verdadeira, não para mim - isso eu só saberia depois, muito depois; quando já era tarde para continuar mentindo. Eu amo as coisas que amo porque tudo no universo, para mim, gira em torno de mim mesmo – o mesmo vale para todo mundo, mesmo para os que não reconhecem isso, os que fingem-se de ignorantes, os ignorantes honestos ou os que, compreendendo todo o engenho, negam-no por medo das implicações que isso tudo pode acarretar. O meu Eu circunda o Tu, seja ele físico ou metafísico, amando-o ou odiando-o; é tudo igual, tanto fez, tanto faz. E assim, no querer o Tu, sou Eu que quero ou me faço querer, mas sempre em/a/para mim mesmo. “Eu sou eu e minhas circunstâncias”, como disse Ortega y Gasset. O Tu é uma extensão do meu Eu desejante, e só. Tudo o mais, meras circunstâncias. Mesmo que os sábios antigos e os profetas do passado digam o contrário, eu digo: não existe altruísmo algum no amor, no amar. O amor, ou o amar, seja no sentido que for, é a “coisa” mais egoísta que alguém poder ter, que alguém pode ser; dar, jamais.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

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Da finitude e da transcendência. My life is like the flame of a candle… Juliet dizia, tentando se animar e parafraseando um trecho de “You make my dreams come true”, música dos americanos da dupla famosa nos anos 50 e 60, Hall & Oates, que ouvia na penumbra, afundada na poltrona, esperando tocar o telefone, mas ele não tocava... [...] Assim começaria o capítulo dois de uma novela de enorme sucesso que nunca escrevi, que jamais escreverei. Como a vida, como as novelas e como a chama de uma vela, o amor romântico tem vida curta - e bem assim todo o sucesso que se possa obter, nele e em tudo o mais. O amor romântico, porém, enquanto vivo, porta uma luz que, mesmo assim, bruxuleante e profética da escuridão que lha cerca e sempre vem, traz promessas de eternidade. Por isso, pelo engodo e pelo gozo inebriante, é uma “ferida que dói e não se sente”, que nem no poema que Camões plagia de Petrarca. Quem ama ou quer amar, precisa, sim, de tal anestésico. Não se ama “o outro” com a razão, nunca. É por isso que, também, não há razão para o conhecido poema do Vinícius: “E quando a solidão, talvez me procurar; eu possa dizer do amor que tive; que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. Mas, enfim: quem disse que um poema é para ser entendido? E quem disse que, para o poema, lhe baste mais do que o poeta? Do mesmo modo, para o amor, basta o que ame, o que é amado... Tudo natural, naturalmente.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

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Dos conselhos do novo Zaratustra. Se a liberdade é o que tu queres, e se queres obtê-la, não queiras. Sim; não queiras nada! Francisco de Assis entendeu tal preceito pela metade; pois, dejetando as riquezas terrenas, consignou-as à esperança de uma riqueza que acreditava muito maior, supra-terreal. Se quiseres não sofrer, ter fé verdadeira, não deves amar, nem odiar, e nem nascer. Vede quão impossível é o teu desejo, a tua fé vacilante! Nascer é uma passagem violenta, e o destino do vivente é sempre o esquecimento, o Nada que não pode ser dito e nem pensado, e que a todos, ao rico e ao pobre, espera com paciência, com eterna paciência. Feliz é aquele que tem uma morte tranquila, porque o viver é sempre muito custoso: carruagem que se destina ao abismo, e ao Nada que vem depois. Como o Nada que nos espera, assim também é o amor, o amar àqueles que nascem. O desejo único do sábio, por sua sabedoria, deve consistir em saber-se portar dignamente diante da boca aberta do grande abismo, e do Nada. Amar ou odiar é encontrar-se distraído!

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

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Da violência que é amar. Na novela de Prosper Mérimée, Carmem, de 1845, Don José é um homem doente de ciúmes pela cigana infiel que dá nome à obra. O romântico compositor francês, Georges Bizet, trinta anos depois, transformou-a em uma ópera, imortalizando-a de vez. A tragédia do tal ciúme de Don José é anunciada nos versos fortes da ária principal: “Si je t’aime, prends gard de moi”, ou: “Se eu te amo, tome cuidado comigo”. É que o amor – que em sua face mais honesta é apenas amour de soi –, sempre deseja possuir seu objeto, tê-lo para si, para si somente. Don José, vendo-se frustrado, somente se satisfaz quando provê um meio de, não podendo haver o seu amor, impedir que outros o/a possuam, gozem, usufruam desse amor que é seu, seu somente seu. Se ele não pode tê-la, que outros também não a tenham. Mas as histórias de amor nem sempre terminam assim, de modo tão drástico, com sangue e morte e tudo. O que ocorre, muito frequentemente, é o recuo perante o enorme dilema moral, ético: a vida - pelo menos a humana, algo nos diz - é sagrada. E se alguns, mais por uma imposição desse instinto (que arma-se da moral) do que por uma consciência filosófica, não eliminam o objeto do seu amor, do seu sofrimento, deixando que o mesmo, como pássaro perdido, voe por outros céus, para outros galhos, é porque o seu amor-próprio vai muito além daquele que se aninhava no Outro, sendo, porém, o seu. No máximo e no mínimo da ação está, aí (ai de nós!), o amour de soi. Em tais ações, sejam elas quais forem, quando não é a covardia, o laxismo, é a punição, a autopunição. Reconhecer-se como indigno ou resignar-se ante a recusa do objeto amado, é também um modo inconsciente de “partir para outra” e, assim, sofrer menos “por ela”, “por ele”. Mas isso é um enorme de um equívoco! Acontece que, no fim de tudo, todo mundo está só; quando ama ou quando é amado; quando quer o mundo inteiro ou quando não quer nada, nem ninguém. No caso da recusa, arma menor e de menor dano é a depreciação da imagem do amor perdido, ou o convencimento psicológico de que o Outro não valia tanto, como na fábula de Ésopo, A raposa e as uvas: “Uma raposa faminta, ao ver alguns cachos de uvas pendentes de uma certa parreira, tentou apoderar-se deles, porém não o conseguiu. Afastando-se, então, dizia para si mesma: ‘Estão verdes’. Assim também”, conclui o fabulista grego, “certos indivíduos, não sendo capazes, por sua própria fraqueza, de resolver os seus problemas, acusam as circunstâncias.” Daí não ser estranho um amigo dizer ao outro, aconselhando-o a livrar-se de tal sofrimento, próprio, pelo que julga e lhe parece ser tão alheio: “Viva a sua própria vida!", dizem; ou: “Você tem que ter um pouco de amor próprio”, que é o mais comum de se ouvir. Quer dizer: o amor que você deve ter por você mesmo, em tal conselho, deve ser maior do que o amor que você sente pelo Outro. Ora, aí, em tal conselho, não se diz mais do que o óbvio. Sim: em tais casos, o Outro é apenas reflexo de nós mesmos e, na dor ou no riso, é a Vontade de vida que nos impulsiona para esta ou para aquela ação, para a resignação letárgica ou para a violência intrínseca. Que desgraça! Que fatalidade! Don José que o diga. Em suma: cuidado, meus amigos!, cuidado! Muito cuidado com quem ama.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

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Da moda, da coqueteria e do buraco da fechadura. Claude Lévi-Strauss, o antropólogo e filósofo francês que morreu em Paris no dia 30 de outubro de 2009, dedicou parte da sua vida (1935 a 1939) a estudar certos aspectos da cultura indígena brasileira, país que dizia amar; país da Rita Lee, que vestia tanto as calças Lee (criadas pelo americano Henry David Lee, em 1889), quanto o “Blue Jeans” criado em 1872, pelo teuto-americano Levi Strauss, que nada tem a ver com o primeiro Strauss, e menos ainda com o compositor alemão, Richard Strauss - criador do poema sinfônico Also sprach Zarathustra, Op. 30, baseado na obra, homônima, de Nietzsche, e que ficou conhecidíssimo depois de aparecer como tema de abertura no filme 2001: a space odyssey, de Kubrick. Do segundo Strauss, que nunca fez um poema que se respeite, e nem pensou sobre os primeiros habitantes deste país de papagaios, bananas e macacos, era a marca LEVI’s. Na década de 1950, a LEVI’s usava uma publicidade que propunha, com suas calças, “Dá ao homem algo da mulher, e à mulher, algo do homem”. Uma proposta que, andrógena, parece propôr uma equiparidade genérica, unindo os sexos numa peça só, unissex. Essa feminilidade do masculino e masculinidade do feminino foi o primeiro tema/capítulo da sessão “Sexo explícito”, no livro Contra natura: ensaio de psicanálise e antropologia surreal, de 1999, de Oscar Cesarotto. Aí, e à pergunta: “Qual é o papel da feminilidade dentro da sexualidade feminina?”, Cesarotto responde: “Que uma mulher seja feminina não é redundância, porque poderia assim não ser. Como se sabe, algumas mulheres são femininas em maior ou menor grau que outras. As outras são os reflexos nos quais cada uma delas pode medir seu narcisismo. Alienadas naquelas distintas delas, todas as mulheres rivalizam com sua semelhantes, invejando a performance alheia, sempre melhor. Ao mesmo tempo, todas e cada uma são capazes de se acreditar inteiras e sem mácula nenhuma. Estes transitivismos têm a sua origem numa identificação primitiva, maternal e arcaica (Alma Meter), cuja alteridade deve ser, necessariamente, outra coisa que elas procuram para além do espelho, porque uma comparação exclusiva entre mulheres não dá lugar a certeza alguma.” É, não dá não! É por isso que, aos homens, mas não com exclusividade, cabe a tarefa do cortejo, que fazem-no com olhares, com flores, com chocolates, et cetera. Se, por um lado, o travestismo feminino consignado pelas calças LEVI’s promoveu aquela tal equiparidade, por outro, o cortejo masculino ainda confirma a fêmea cortejada – o contrário daria no mesmo –, elegendo-a dentre tantas, aceitando-a como uma diferente que, igual ao cortejador sobre outros aspectos (o da moda ou dos gostos, por exemplo), complementa-o. A teoria parece boa, e nítida; mas a prática não é tão nítida assim. Há, hoje mais que antes, uma crise de gêneros; fala-se, inclusive, numa “crise do macho”; mas há, também, embora pareça um discurso machista, uma “crise da fêmea” - com o fito de ganhar espaços, algumas mulheres têm se masculinizado, perdido o norte do que seria uma “relação familiar”... que também está em crise por causa dessas crises anteriores. Cada dia é mais fácil perceber que a propaganda que prometia “dar ao homem algo da mulher, e à mulher, algo do homem”, como não é costume às propagandas, não era enganosa. Isso é fácil de notar, por exemplo, na mudança geográfica que houve na colocação do zíper nas peças da LEVI’s e, por seu sucesso, em tudo o que era jeans. Se, antes, nas peças femininas, o zíper vinha fixado na lateral, com o progresso do feminismo (ou o declínio do machismo) ele seria deslocado para a entreperna, anulando aquela diferença do sexo mirado, feito alvo. Tais mudanças da/na moda, no vestuário feminino, denunciam, além das mudanças sexistas, a adequação do corpo à cultura, como mecanismo de encobrimento e propaganda. Não é à toa que o Marquês de Sade, um dos pioneiros da revolução sexual e um dos primeiros a ter uma visão moderna da homossexualidade, na sua La philosophie dans le boudoir, de 1795, faz a seguinte notação: “Sem dúvida, o costume de vestir-se teve dois únicos motivos: a inclemência do ar e a coqueteria das mulheres; estas acharam que perderiam rapidamente todos os efeitos do desejo se não os previniam antes de deixá-los nascer. Perceberam que a natureza não as tinha criado sem defeitos, e se asseguram de ter todos os meios de agradar, ocultando estes defeitos com adornos; o pudor não foi, portanto, uma virtude, senão uma das primeiras consequências da corrupção, um dos primeiros recursos da esperteza das mulheres.” De fato: o erotismo reclama a beleza como condição, pré-condição; a beleza, para o erótico – para o desejo, portanto -, precisa de certo encobrimento; que senão vem o “acostumar-se com ela” e, aí, seu suplício, seu cadafalso. O órgão reprodutor, em si, não é coisa bonita. E embora ele seja buscado com afinco, antes, o que se vê, não é ele mesmo, mas o rosto do seu dono ou da sua dona, seus adereços e, às vezes, seu dote: propaganda. Leonardo da Vinci, no seu Diário - que poderíamos chamar de uma biografia psicanaliticamente orientada -, faz a mesma constatação: “O ato da cópula e os membros de que se serve são de uma fealdade tão grande que se não houver a delicadeza dos rostos, os enfeites dos participantes e o ímpeto desenfreado, Natura perderia a espécie humana.” Assim, e para não irmos tão longe, concluímos: o desejo sexual e os seus mecanismos (a moda, o engodo, o disfarce, et cetera) são como os enfeites do véu de Maya; o pudor é a demonização da Natura (Tabu), para que se pense no “antinatural” como coisa sublimada, real, e, assim, ele seja inconscientemente mantido como aquele buraco da fechadura, e a frase acima, provocativa: Não olhe!