quinta-feira, 5 de novembro de 2009

46
.
Do trágico comum. “O nosso amor puro / pulou o muro / caiu na vida. / Jamais seremos o par / romântico / que outrora fomos”. Trecho de Nada será como antes, poema de Chacal. Às vezes pensamos em prender o amor, como um passarinho numa gaiola; ou pensamos em fazer um muro à sua volta, ou guardá-lo numa redoma de vidro - que nem fazia o Pequeno Príncipe com a sua Rosa. Mas ele sempre escapa por algum lugar, sempre consegue “pular o muro”, evadir-se. O amor, descomedida querença, além de erradio e fujão, se veste do trágico: desejando abraçar o todo - que não pode nunca ser contido -, desespera-se na ciência da sua impossibilidade; do contrário, e se tenta, fragmenta-se, como nuvem no vento, como a flor colhida. Mais do que ninguém, os gregos souberam entender os asteísmos do discurso amoroso. Você, certamente, conhece a história de Eurídice e Orfeu. Filho de Calíope, Orfeu era poeta e músico. Em suas mãos, a lira sossegava a mais feroz das bestas, tão belas eram as canções que ele, dela, arrancava. Como fazem às estrelas de rock hoje, as mulheres também o amavam; as ninfas ficavam embriagadas de desejo. Orfeu, porém, a todas e de todas, mantinha-se indiferente. E foi assim até o dia em que conheceu Eurídice, que lhe arrebatou o coração. Mas Aristeu, criador de abelhas, também amava a belíssima moça. Certo dia, num acesso de loucura e de paixão, lha perseguiu com o fito de tomá-la, possuí-la. Correndo pelo campo, fugindo de Aristeu, Eurídice pisa sobre uma serpente. Ferida na perna, morre aos poucos, sob os efeitos da peçonha da víbora. Desesperado, Orfeu chora a morte do seu único e verdadeiro amor. Nunca sua música foi tão linda, e nem tão triste. Como é preciso a tristeza pra se fazer um bom samba, conforme receita de Vinicius de Moraes e Baden Powell em Samba da bênção - “Mas pra fazer um samba com beleza / É preciso um bocado de tristeza / É preciso um bocado de tristeza / Senão, não se faz um samba não” -, assim também eram as canções do triste Orfeu. Com permissão dos deuses e empunhando a sua lira, ele desce ao reino de Hades em busca de Eurídice. Por efeito de suas hipnóticas canções, consegue comover Cerberus (o cão de duas cabeças que protege a entrada do reino da morte), que o deixa passar; e, ainda mais: consegue comover os deuses, que o recebem e lhe ouvem cantar e contar sua triste história de amor. Estes, como dádiva, prometem entregar Eurídice. Mas fazem uma exigência cruel: Orfeu, até que saia em definitivo do Inferno, não deve olhar para trás, para verificar se, de fato, Eurídice lhe segue. Voltando ao mundo dos vivos, os risos dos demônios o acompanham. Estaria Eurídice atrás de si? Ele se desespera na hipótese de haver sido ludibriado pelos deuses, não obstante ouça as pegadas de Eurídice lhe seguindo. Seriam mesmo as pegadas de Eurídice? Como saber? E é assim que ele, quase às portas do Inferno, vira-se e vê Eurídice olhando-o com amor, e, depois, com uma expressão de tristeza mortal, de desespero inenarrável. Eurídice, imediatamente, transforma-se em sombra... desaparece para sempre. Orfeu tenta retornar ao Hades entoando canções para o sinistro Caronte, o barqueiro que conduz as almas, mas ele não se comove mais. Desolado, vai cantar suas tristezas para as fúrias. Mas as mulheres da Trácia, desesperadas com a indiferença do angustiado cantor, despedaçam-no. Se não podem ter o amor de Orfeu, que outra/s não o tenha/m. “O nosso amor puro / pulou o muro / caiu na vida. / Jamais seremos o par / romântico / que outrora fomos”. Nas verdadeiras histórias de amor não existem finais felizes, acostume-se a isso.

3 comentários:

patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo