quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

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Dos divórcios. Os divórcios, propriamente ditos, existem bem antes de os casais se separarem; são como o “não matarás” dos Dez Mandamentos, em que se condena a intenção, que mata antes. A palavra “divórcio” (divortiu), que é um substantivo masculino, tem a mesma raiz de diversus, que é o particípio passado de divertere, que significa “andar em direção diferente”. Acontece que o divórcio é justamente isto: o fim de uma caminhada de dois corpos juntos, porém, em espírito, separados. Há quem ensine que, mais do que a união dos corpos, os casamentos devem ser, para durar, a união dos espíritos. Falar em “união de espírito”, não é o mesmo que falar da similaridade anímica que “igualha” duas pessoas, de modo que ambas pensem o mesmo, sintam o mesmo; é, antes, o esforço em cumprimento de um ideal que se cultive em comum acordo, ideal de ir adiante – como num jogo de frescobol, e nunca de tênis. Casamento, pra durar, tem que ser como frescobol, não tênis. Quando o apóstolo Paulo escreveu o texto que encontramos na carta aos Filipenses, nas exortações finais, fez um pedido: “Rogo a Evódia, e rogo a Síntique, que sintam o mesmo...” “Sentir o mesmo” é um pedido por entendimento no esforço de ir adiante – parece que os dois, Evódia e Síntique, embora fossem cristãos, não se entendiam muito bem. O apóstolo sabe tanto que esse seu rogo é difícil de ser atendido que, noutra carta, agora aos Efésios, pede que os cristãos vivam “suportando uns aos outros, por amor...” A importância dessa união se dá pelo fato de a própria Igreja ser sempre exemplificada na união matrimonial. Ainda na carta aos Efésios, o apóstolo diz: “Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e se unirá a sua mulher, e serão os dois uma só carne. Grande é esse mistério, mas eu me refiro a Cristo e à Igreja”. Desde o livro de Gênesis, a união matrimonial traz, de modo alegórico, a essência dinâmica da Igreja. Exemplo disso é a parábola das 10 virgens, na qual o Cristo aparece como noivo. Elas, as cinco prevenidas, são a Igreja, com quem ele vai às núpcias; as cinco imprudentes, são o mundo (no sentido de “sistema/viver mundano”, “pecaminoso”), que fica fora dos muros da casa. É uma metáfora escatológica de casamento e divórcio, de salvação e danação eternas. Sendo a Igreja indissolúvel – (“... as portas do inferno não prevalecerão contra ela”), é de se supor que os casamentos também o sejam, se levamos as analogias mais a fundo. Na prática, porém, a realidade das coisas não é bem assim – nem de uma e nem de outra perspectiva. Acontece que, enquanto a Igreja é pensada como um estamento espiritual (ideal), os casamentos são coisas materiais. Muitos casais, embora unidos materialmente, estão separados em espírito, são/estão divorciados. Estão, literalmente, “suportando um ao outro, em amor”... Mas, amor a quê? Às aparências sociais? Ao dinheiro que uma separação litigiosa move? Às famílias envolvidas? Ao preceito teológico que faz o Outro ser “próximo” e, por isso, digno de um amor recíproco, altruísta, sacrificial? A quê? A quê?... Mais do que aos próprios irmãos (a irmandade fraternal da Igreja reunida), os cristãos amam “a idéia” de irmandade. Por isso que a união carnal de um homem com uma mulher tem muito mais a ver com a alma do que com a substância. Quando os casais se separam não é por causa do corpo, mas por causa da animosidade contraditória de ambos, “em espírito”. Quando os espíritos aprendem a “com/viver”, apesar das diferenças, as separações não acontecem – mas eles vivem, no peso do real, em obediência à leveza do ideal. Mesmo assim, para o cumprimento dessa obrigação cristã, é muito, mas muito difícil mesmo obedecer ao imperativo paulino: “... que tenhais o mesmo ânimo” (ou “... que sintam o mesmo”). Pois bem, essa concepção cristã da vida conjugal – associada à essência da própria Igreja, instituição sagrada – é normativa (pelo menos em tese) aos que se submetem à sua doutrina, ou pelo menos a ela não se opõem. Mas, a quem pensa diferente, como Walt Whitman (que diz: “Quem anda duzentas jardas sem vontade, anda seguindo o próprio funeral, vestindo a própria mortalha”), tal convívio é um inferno certo em função de um paraíso duvidoso. Mais do que unir os corpos, o apóstolo ensina que os casais devem aprender a unir as almas; apesar das diferenças. Era em obediência a um preceito estranho a esse que, antigamente, quando o marido era transferido para um fim de mundo, como conta Rubem Alves, “a mulher era obrigada a ir. Ia contra a vontade, ficava triste, chorava, ficava deprimida, perdia a vontade de fazer amor, e o amor virava ressentimento, e ela pensava em silêncio: ‘Quando ele morrer, eu volto para o lugar de onde vim...’ Quem anda por um caminho obrigado, contra a vontade, fica desejando que aquele ou aquela que obriga morra. A liberdade é assassina”. Essa interpretação do Rubem, mais do que paulina (ideal), é whitmaniana (real) – e, como você pode ver, mais próxima do que vemos, não do que sentimos, ou acreditamos. Mais adiante, e ainda no mesmo sentido, Rubem acrescenta: “Por vezes o divórcio é o jeito de parar de andar contra a própria vontade, o jeito de não seguir o próprio funeral – e nem desejar o funeral do outro...” Há casos em que os espíritos são irreconciliáveis, apesar das doutrinas, apesar dos esforços comuns...

domingo, 27 de dezembro de 2009

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Das famílias. É de se supor que amores perfeitos levem a perfeitos casamentos. Perfeitos casamentos, isso deve vir a reboque da conclusão anterior, devem resultar em perfeitas famílias. Mas, até onde se pode notar, tomando-se como testemunha toda a História, tais argumentos não são válidos, não se sustentam. Que desilusão! Não existem amores perfeitos, nem casamentos, nem famílias. Não existe, por assim dizer, uma lógica sentimental tão perfeita e tão conclusiva que encerre e resista às miríades de imperfeições do amor e, agora sim, a reboque, aos seus imperfeitos resultados. Poderia existir família mais perfeita do que aquela que foi criada pelo próprio Deus? Quem faz a pergunta é o Rubem Alves. Ele conta que lhe pediram que falasse sobre a família verdadeira, de acordo com a doutrina cristã. “Ah! A família verdadeira! Que coisa mais linda! Família, projeto divino: está colado em adesivos de carros. Mas qual será a família verdadeira? Há tantos estilos: patriarcais, matriarcais, poligâmicas. Pensei: a mais verdadeira de todas só pode ser aquela que saiu diretamente das mãos do Criador. E Deus criou o homem e a mulher. Adão e Eva, e disse: ‘Frutificai e multiplicai...’ E foi o que fizeram. Tiveram dois filhos. Um deles era carnívoro e se deleitava com o churrasco de ovelhas e se chamava Caim. O outro era agricultor, trabalhava a terra, era vegetariano e se chamava Abel. Aí, nesse ponto, achei mais prudente não continuar a minha fala sobre a família verdadeira...” E o texto termina assim: três pontos, reticências... Maísa, uma amiga gozadora, diz que “família só presta pra bater retrato”. Não acredito que chegue a tanto, e nem ousaria ir tão longe. Todavia, de perfeições, fato: somos órfãos – não da verdade que um dia foi, mas da ilusão que se desfez, da fé na fé. Agora, mais do que nunca, cumpre-se a profecia de Marx e Engels: “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Agora, mais do que sempre, a única certeza que temos é a certeza da nossa incerteza, e da vontade que temos de crer que amanhã é terça-feira, dia 30 de Dezembro, e que, em algum lugar, esperando pelo ano que vem, alguém sonha, alguém tem esperanças, alguém acredita que é feliz.

sábado, 26 de dezembro de 2009

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Do fazer e do sofrer. Em um texto de 1919, dedicado à juventude alemã, intitulado “A volta de Zaratustra”, Hermann Hesse fala sobre a inevitabilidade do sofrimento e sobre os seus benefícios: “Fazer e sofrer, que constituem juntos a nossa existência”, diz ele, “são um todo, são uma só coisa. A criança sofre quando é concebida, sofre seu nascimento [contrariamente, conforme a lenda, Zoroastro, ao nascer, ria], sofre seu desmame, sofre aqui e ali, até que, por fim, sofre sua morte. Mas todo o bem que há nela, e pelo qual ela é elogiada ou amada, é apenas um sofrimento bom, o verdadeiro sofrimento, pleno e vivo. Saber sofrer bem, é mais do que metade da vida. Saber sofrer bem é a vida toda! Nascer é sofrer, crescer é sofrer, a semente sofre a terra, a raiz sofre a chuva, o botão da flor sofre a rega. Assim, amigos, o homem sofre o seu destino. O destino é terra, é chuva, é crescimento. Destino dói.” Hesse usa a figura de Zaratustra – como também faço aqui, alguma vezes, no Livro 1 – para dizer o que ele mesmo pensa, como também fizera Nietzsche ao ressuscitar Zoroastro, profeta persa do século VII a.C. E ele completa: “Do sofrimento vem a força e a saúde. São sempre as pessoas ‘saudáveis’ que tombam de repente e morrem por causa de uma simples corrente de ar. São as que não aprenderam a sofrer. Sofrer endurece, torna-nos de aço. Há crianças que fogem do menor sofrimento. Eu realmente amo as crianças, mas como poderia amar aos que pretendem permanecer crianças pela vida toda?” Budismo, Schopenhauer, Nietzsche, Hesse, eu, (você?)... O tempo passa, e o que se mantém é o eterno retorno do mesmo, e o mesmo se veste de sofrimento, e isso não é uma fantasia carnavalesca, festa de foliões. Vida real: desiludido carnaval.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

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Do amor ao conhecimento. Há duas seções de Aurora (escrito entre 1880 e 81) em que Nietzsche, já dando claros sinais de seu desapego por Schopenhauer e Wagner - que tanto o influenciaram no passado –, enfatiza uma força motriz que, no humano e em comparação à Vontade, impulsiona-o para o progresso, mesmo quando este ou esta “força” o torna mais infeliz, sacrificando-o. Trata-se da “paixão do conhecimento”, como pode ser visto nas seções 45 e 429 da referida obra. Tal força, conforme ele, é também uma vontade, uma “vontade de verdade”, conforme já havia sido tratado em Além do bem e do mal (§1). “Essa nova paixão”, diz Paulo César de Souza, tradutor da edição portuguesa que estou usando, “é entendida, num plano universal, como o impulso em que a humanidade mesma se sacrifica em prol do conhecimento”. De fato, o célebre início da Metafísica de Aristóteles já é indício claro desse impulso para o saber, que o Estagirita também chama de amor: “Todos os homens, por natureza”, diz ele, “tendem ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. De fato, eles amam as sensações por si mesmas, independente da sua utilidade e amam, acima de tudo, a sensação da visão”. Através dos olhos, que no Evangelho são chamados de “janelas da alma”, nos chega, principalmente, o mundo, e com ele as imagens que ficam gravadas em nossa memória sentimental, nosso entendimento razoável. “Por que tememos e odiamos um possível retorno à barbárie? Porque ela tornaria os homens mais infelizes do que são?”, Nietzsche pergunta de modo retórico, pois responde logo em seguida: “Ah, não! Em todos os tempos os bárbaros tiveram mais felicidade, não nos enganemos! – Mas nosso impulso ao conhecimento é demasiado forte para que ainda possamos estimar a felicidade sem conhecimento ou a felicidade de uma forte e firme ilusão; apenas imaginar esses estados é doloroso pra nós! A inquietude de descobrir e solucionar tornou-se tão atraente e imprescindível para nós como o amor infeliz para aquele que ama: o qual ele não trocaria jamais pelo estado de indiferença; - sim, talvez nós também sejamos amantes infelizes!” Quando nos acreditamos no amor romântico, é que nos achamos embriagados por uma emoção que nos toma de assalto, prendendo a razão nalgum calabouço medonho... e sofremos antes pelo que sofreremos depois. Mesmo assim, qual viciado que sabe que morre, recorrendo àquela substância que lhe prende e mata, voltamos a sonhar quando, numa manhã como esta, nos chega uma correspondência de longe, e com ela um livro de poemas que fala de “um desejo que havia, desde o início, de encontrar uma coisa que faltava...” Do mesmo modo, analogamente, acreditamos no conhecimento, amando-o com igual teor etílico; mesmo quando este só traz a dor, mas ainda assim alguma verdade com ela.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Livro 3

Em que o autor, com o fito de não parecer escapista, assume a fala, na primeira pessoa, tratando de modo crítico a vasta literatura romântica, ou narrando situações vivenciadas e outras imaginadas – porque ele, embora seja honesto com seus leitores, é, antes, honesto consigo mesmo. Os textos aí, diferentemente do que ocorre nos Livros 1 e 2, não seguem qualquer ordem, e não têm outro objetivo senão dizer o que já foi dito, seja ampliando ou revendo pontos obscuros.

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Da esperança desesperada. Com algum esforço foi que reuni as várias definições para o amor romântico, aqui apresentadas, em textos fragmentados ao longo de vários anos. As referências aos livros lidos e as observações tiradas do grande “livro da natureza” - expressão que tem raízes em Galileu Galilei, e que tem a ver com experiência, que é de onde eu e você retiramos a tinta e o papel no qual escrevemos a nossa história – devem marcar esse nosso novo e final encontro, como quando o casal se fala pela última vez: começando uma nova história ou findando uma já antiga. Alguns textos são bem pessoais e não servem (de modo exemplar) para mais ninguém – e nem mesmo, necessariamente, para mim –; outros não são mais que as narrativas das visões que tenho da minha janela sempre aberta, do meu amor que, na melhor das intenções, se resume numa só palavra: esperança. Esperança de que seja bom e duradouro o encontro com a pessoa/eu, espelho; esperança de que ela, também, veja em mim o seu reflexo e, assim, as nossas imagens se preservem da opacidade por mais tempo. Mas, do futuro dessa esperança, que sei eu? Talvez não mais do que uma criança que, ao acordar de um sonho ruim, sofra com a perspectiva de que ele, sempre plausível, efetive-se; ou daquela que, acordando de um sonho bom, quer voltar logo a dormir, para continuar sonhando de onde o sonho parou. A esperança (ou o amor, se você preferir), fenomênico estado da alma, tem armadilhas terríveis para todo e qualquer pássaro.

domingo, 20 de dezembro de 2009

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Do desejo de status. O suíço Alain de Botton é autor de uma série de livros que, inseridos numa linha que talvez possamos classificar livremente como “filosofia pop”, tratam sobre o tema do amor romântico. Os mais conhecidos são: Essays in love (1993), The romantic moviment (1994), Kiss and tell (1995), The consolations of philosophy (2000) e Status anxiety (2004). É dele também o livro The architecture of happines (de 2006), que Joseph Gordon-Levitz (Tom) presenteia Zooey Deschanel (Summer) em (500) days of Summer (de 2009), filme dirigido por Marc Webb e sensação nas platéias indie de todo o mundo. O desejo de status, mais do que o status propriamente dito, a pose, demonstra o quanto somos carentes de meios reais (materiais) que nos dêem alguma segurança para o futuro – o futuro dos filhos que geraremos – e aceitação; sem tal aceitação, somos menos competitivos na luta pelo melhor par para o melhor sexo e os melhores filhos (melhor no sentido de mais perfeitamente adequado ao mundo que está aí). Ninguém, realmente, está disposto a gerar filhos com um “Zé Ninguém”. “Amor não enche barriga”, diz o ditado popular. E não basta apenas ter com o que encher a barriga, é preciso mais. “Pode-se dizer”, diz Alain de Botton, “que toda a vida adulta é definida por duas grandes histórias de amor. A primeira – a história de nossa busca por amor sexual – é bem mais conhecida e bem representada, suas peculiaridades formam a matéria-prima da música e da literatura, ela é socialmente aceita e celebrada. A segunda – a história de nossa busca pelo amor do mundo – é a mais secreta e mais infame. [É o desejo de status]. Se mencionada, tende a ser em termos cáusticos, zombeteiros, como algo que interessa principalmente a almas invejosas ou deficientes, ou então o impulso por status é interpretado somente no sentido econômico”. O que, neste último caso, é um equívoco. O que as pessoas querem mesmo, no desejo de status, uma vez que o desejo sexual é mais comum e menos complicado de ser demonstrado socialmente – e principalmente entre os jovens –, é se acercarem que não lhes faltará o amor, tanto aquele como este. No final das contas, se a mulher da sua vida lhe rejeita, embora todos lhe reconheçam como mais bonito e mais “sangue bom” que aquele outro, feio, insensível e mal educado, é que ele, para ela, dá uma segurança que talvez lhe falte – a segurança que o status (que geralmente se acompanha do poder aquisitivo) insinua, propõe, oferece. Acredite: é biológico, é instintivo; não é nada pessoal.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

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Dos empreendimentos. O amor possível - disso o próprio Cristo tratou há dois mil anos -, que é o mesmo que o amor romântico, é um empreendimento comercial, um jogo de troca: “Tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a lei e os profetas”. Quer dizer: toda a Lei, na sua essência, se resume nisso, como máxima, como fórmula. Mas tal fórmula é bem mais antiga, podendo ser encontrada nos ensinos de Isócrates e Confúcio, dita de modo negativo - cerca de quinhentos séculos antes de Cristo. Também chamada de medida quantitativa do Eu/Outro, pode ser vista no capítulo IV do Livro das explicações e das respostas em vinte capítulos, de Confúcio: “O Mestre disse: ‘Minha Via é costurada com um só fio’. Tseng tzeu [discípulo de Confúcio] respondeu: ‘Com certeza’. Quando o Mestre se retirou, seus discípulos perguntaram o que ele quisera dizer. Tseng tzeu respondeu: ‘A Via do nosso Mestre consiste na lealdade e no amor pelo outro como por si mesmo’”. Em Isócrates, está assim: “Não faças aos outros aquilo que te enfurece quando feito por putos”. Dá no mesmo, de modo positivo ou negativo; na boca do Filho de Deus ou de sábios e filósofos mofados. É também nesse sentido que Marcel Proust trata sobre o amor: “Desejamos ser compreendidos, porque desejamos ser amados, e desejamos ser amados, porque amamos”. Mais desse amor é dito por São Francisco, na famosa litania a ele atribuída: “Pois é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado...” O dar sem nunca esperar receber não existe nem mesmo nas Escrituras, onde a graça (a doutrina) teria a função de anular qualquer “expectativa” da parte da divindade, ativa, em relação à humanidade, passiva (no caso do amor dispensado), a quem dá o Filho como sinal de amor sem limites. Afinal, está escrito, e como o mandamento mais firme e constante de todo o Velho e Novo Testamento: “E agora, ó Israel, que é o que o Senhor teu Deus pede de ti, senão que temas o Senhor teu Deus, e que andes em todos os seus caminhos, e o ames...” Daí, seguindo a tradição milenar e perfeitamente dentro da ortodoxia teológica, o franciscano Frei Anselmo Fracasso, em A arte de viver feliz (que em 2004 estava na sua vigésima quinta edição), aconselhar aos seus muitos leitores: “Queres ser amado? Procura amar; queres ser compreendido? Esforça-te para compreender; desejas ser respeitado? Respeita os outros; queres misericórdia? Perdoa sempre”. Que se conclui de tudo isso? Que o amor perfeito ou o “romance ideal” servem bem ao Mercado: pra vender filmes, novelas, canções, livros...

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

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Do sempre amor. “If equal affection cannot be, let the more loving one be me”. Dito por W. H. Auden, no poema “The more loving one”, do livro Homage to clio, que teve a sua primeira edição em 1960. Não é preciso, realmente, “ir adiante”; sempre se vai - não há opção. Como ensinava Dionísio, na sarjeta: a carroça à qual estamos presos, como um cão em sua corda, sempre nos arrasta, é mais forte que nós. De nada adianta a nossa retração; pois que isso só piora a nossa sorte. Saber o tamanho da corda é importante porque, assim, medimos o tanto de liberdade que temos entre o ir e o ser arrastado. Saber dói mais, mas dói menos. De igual modo, saber-se amado, ainda que por um pouco, atenua a dor de amar demais. O sofrimento, dividido, é menos sofrido. Por isso que o cantar dos passarinhos parece tão bonito, e o desabrochar das flores, e a lagarta que vira borboleta. Por toda a parte por todo o mundo, dor.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

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Da solidão universal. Estrelas são corpos celestes luminosos formados de plasma. Dada a enorme pressão interna que têm, produzem energia por fusão nuclear, transformando átomos de hidrogênio em hélio. A energia que geram é emitida através do espaço em forma de radiação eletromagnética (luz), neutrinos e vento estelar. Apesar de parecerem bem próximas umas das outras, como vemos – Heráclito de Éfeso dizia que o sol tinha o mesmo tamanho de um pé humano –, a verdade é que estão, às vezes, há milhares e milhares de quilômetros umas das outras, ardendo em incandescente solidão. E nós às vemos brilhando no breu que cobre o mundo, bem próximas, como quem conversando. O brilho de algumas dessas estrelas pode levar centenas, milhares de anos para que nós, aqui da terra, possamos percebê-lo, quando podemos (no vácuo, a luz viaja a aproximadamente 300.000 quilômetros por segundo). Algumas estrelas que vemos, na verdade, já morreram; o que vemos é o brilho que elas emitiram há muito, muito tempo. Assim são as estrelas: brilham, mesmo depois de mortas. Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno são os planetas que podem ser vistos a olho nu, aqui de onde estamos. Eles também brilham no breu do céu, e nós os vemos, pelas estrelas, iluminados. Assim são as estrelas: de tanta luz que têm, emprestam-na àqueles que não têm luz alguma – como alguns artistas que aparecem na TV. Esses, que não são estrelas, realmente, tão logo morrem – e, às vezes, nem chegam a tanto –, são esquecidos; eram apenas “astros”. As estrelas são amadas porque têm luz própria e, com sua luz, seu carisma, nos falam da beleza que há, do encanto que se esconde para além dos horizontes, das manhãs que existem no porvir. E nós sempre esperamos que, para o final da noite de nossa alma crepuscular, brilhe um sol qualquer, venha uma aurora. E acreditamos que “há tantas auroras que não brilharam ainda...”, como escrito no Rigveda (ou Rig Veda, “Livro dos Hinos”, é o Primeiro Veda, um dos textos sagrados mais importantes do hinduísmo). Mesmo distantes, as estrelas nos tocam e se tocam em seus abraços de luz – e é assim que nascem as cores, e é assim que também nos dizem que a solidão, como aquela que ocupa o lugar de um amor que se foi para sempre, é universal, cósmica... e que, por isso mesmo, pode e deve ser compartilhada, pode e deve ser... menos solidão; estamos todos juntos nela, afinal. No capítulo 38 do Livro de Jó, Deus aparece como a Sabedoria Criadora que, num discurso, afirma que “cantavam [juntas] as estrelas da manhã”. E Olavo Bilac, “príncipe dos poetas brasileiros”, diz que, para ouvir a canção das estrelas, há que se estar amando: “‘Ora (direis) ouvir estrelas! Certo / Perdeste o senso!’ [...] / E eu vos direi: ‘Amai para entendê-las! / Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e entender as estrelas’”. Poema que o cearense Belchior, não por acaso, insere parte na letra da canção Divina comédia humana, tentando dizer, aí, que “o amor é uma coisa mais profunda que uma transa sensual”. Se tudo cabe na poesia, é que a poesia não exige provas, não exige razões discursivas - dizer, basta. Tudo cabe numa poesia... até mesmo um céu inteiro de estrelas vivas. Bem assim são, também, os discursos do amor romântico. Tais discursos só podem ser e fazer parte, essencialmente, de uma divina comédia, e no sentido mais poético e jocoso da palavra... divina.

domingo, 13 de dezembro de 2009

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Das similaridades. Você, certamente, já deve ter lido o poema do Vinicius que diz: “Todos os amores são iguais...” Pois as histórias de amor, saiba, mesmo as mais antigas, também o são. A história triste de Parvati, mulher de Shiva, é exemplo disso. Shiva, o grande Shiva, um dos grandes da Trimurti (vocábulo sânscrito que significa: “o que tem três formas”; na mitologia hindu, é a trindade constituída por Brahma [princípio criador], Vishnu [princípio conservador] e Shiva [princípio destruidor]), vivia em constante contemplação. Sua esposa, Parvati, linda e ardente, sofria ante a infinita indiferença do deus. Assim, e para mudar a situação, recorre aos deuses amigos, lhes pede conselhos, implorando-lhes que tenham piedade. Vinha chegando a primavera. Flores e cantos das aves pelos galhos... Os deuses, condoídos das mágoas de Parvati, enviaram até Shiva, o frio e indiferente, Kama, ardente deus do Amor que se fazia acompanhar da Voluptuosidade (no Ocidente, equivale àquilo que Freud chamaria de “pulsão”, Sexualtrieb), sua esposa. Tudo foi combinado e disposto para vencer a frieza do solitário Shiva, imerso em cismas. Parvati, bela e ardente, se aproxima dele. Kama distende o seu arco infalível, pronto para acertá-lo. Porém Shiva, o de três olhos, com seu terceiro olho, descobre a trama e, impiedoso, fulmina Kama. Vencer a Vontade, a Volúpia e os seus impulsos, afinal, é competência de um deus. Parvati, desolada, se desespera, quase enlouquece. Impreca e soluça... tudo é em vão. Vencida e cansada, retira-se do mundo, entregando-se à meditação. Mas Shiva apiedou-se de tão grande amor e de tão invencível fidelidade. Consolou-a prometendo-lhe ressuscitar Kama, o deus do Amor. Kama, porém, sempre morre. De fato, as “páginas felizes são páginas em branco na história do amor romântico”, dizia Hegel.
Assim, e com pequenas variações ao tema, as histórias do amor romântico são pontuadas de esperanças e desastres, e mais esperanças. Nos desastres da vida e da morte, vêm aqueles estados psicológicos que, baseada em entrevistas com pacientes terminais, a pesquisadora em Tanatologia (Eros, como já vimos, sempre se acompanha de Thanatos), Elisabeth Kübler-Ross, propôs. Conforme ela, a maioria das pessoas atravessa estágios seqüenciais quando se deparam com o sofrimento e com a morte. São eles: negação (que se acompanha da vontade de isolamento), raiva, barganha, depressão e, por fim, aceitação. Tal estágio, convém notar, é aquele que mais se aproxima da sabedoria estóica e, exatamente por isso, parece ser o mais prudente e, evidentemente, o mais difícil de ser atingido. Viver, aceitar a vida, suportar a dor... é preciso enganar os sentidos, é preciso inventar a arte. E é aí que se instala, novamente, a esperança; e o jogo recomeça sem jamais ter fim. O amor romântico é canteiro de sofrimentos, de descontentamentos. Amar é violento.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

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Do fiel e da sua fidelidade. Longe de ser uma marca da cultura cristã ocidental, o sentimento de fidelidade foi o meio que a Vontade encontrou para, por meios indiretos – de uma suposta pena eterna, pela falha moral –, preservando o indivíduo, preservar-se a si mesma. Não fosse assim, os exemplos de infidelidade seriam comuns entre os animais puramente instintivos; mas isso não ocorre com tanta freqüência na natureza. Dadivosa, ela dota cada espécie com as armas que a mesma necessita para viver, continuar vivendo; embora, para isso, algumas sejam mais aptas que outras, as que já se extinguiram. Na guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes) - como diz Hobbes, caracterizando o homem em seu estado natural, aquele em que homo homini lupus -, criam-se as mentiras, os engodos históricos, as farsas do poder (ou para o poder), justificando-os com a máscara da moral, da piedade cristã, da civilité, civility, civilization. Mentiras político-morais, como a que é brilhantemente ilustrada na sátira alegórica Animal Farm: a fairy story (1945), de George Orwell: “Todos os bichos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.” As leis, os códigos de ética e de moral estão aí, ditando o certo segundo “X”, segundo “Y”, segundo “Z”. “Todos os homens são iguais perante a lei”, dizem; e para que essa lei se sustente, se cumpra, exige-se, dela, o reconhecimento, e a fidelidade. As igrejas, os Estados, as autoridades constituídas (por títulos histórico-consensuais) e as autoridades auto-constituídas (por carismas, et cetera) unem-se na cruzada que tem, lugar comum em seus discursos, o substantivo feminino “fidelidade” por mote: fidelidade a Deus, primeiramente, depois à pátria, ao cônjuge, a isso e àquilo outro. Do mesmo modo que um sistema político não é perfeito, como o socialismo stalinista criticado por Orwell, assim também a fidelidade do homem a todos esses poderes. No final de tudo, e para todos os fins, só se é fiel a si mesmo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

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Da perfeição e do seu preço. “Aquele que não ama, permanece na morte”, está escrito na primeira Epístola de são João. Qualquer hermenêutica, mesmo a menos exigente, entende que o santo fala daquele amor que, vindo da parte de Deus e tendo sua representação maior na pessoa e morte do Cristo crucificado, trata da reconciliação do pecador com Deus, por meio da graça. Daí, logo depois, ele também dizer que “nós o amamos porque ele nos amou primeiro”. Esse amor que é, evidentemente, o amor ágape, perfeito, exige perfeições: “Nisto é aperfeiçoado em nós o amor, para que no dia do juízo tenhamos confiança; porque, qual ele é, somos também nós neste mundo. No amor não há medo. Antes o perfeito amor lança fora o medo, porque o medo produz tormento. Aquele que teme não é aperfeiçoado em amor”. Ora, esse amor de “perfeição”, de nossa parte, é tão verdadeiro quanto a afirmação anterior do escritor sagrado: “Aquele que é nascido de Deus não peca...” Tudo bem que o “não peca”, aí, diferentemente da heresia que foi a Doutrina do Perfeccionismo (Doctrine of Perfectionism, ou Doctrine of Christian Perfection) - ensinada pelo anglicano (depois metodista) John Wesley que, depois, caindo em si, abandonou-a -, tem haver com os atos pecaminosos, aqueles que viram hábitos e descaracterizam a natureza do cristão, do ser cristão. Ora, o ato pecaminoso - a falha moral, de caráter - é o que mais caracteriza a natureza humana. O cristão, portanto, deve abandonar a sua humanidade se quiser ser um autêntico cristão. É uma exigência tão desumana (literalmente) que nem Hércules se habilitaria, ou os santos pretensos. Como alguém poderia beber toda a água do oceano? Como poderia comer os horizontes? O próprio nome, pejorativo, denuncia a sua natureza imitativa, simulacra de uma realidade que só existiu em seu mentor, e que depois, com ele, foi crucificada. Na verdade, levado ao pé da letra, e para efeito de analogia, é tão possível que o homem não ame quanto não peque, e ambos de modo perfeito – porque essa perfeição é própria de sua natureza. Amor (Vontade) e pecado (desvio moral) são faces de uma mesma moeda: a natureza humana. Não são, porém, essentes do/no homem, mas a tudo o que é vivo e que pensa – e por isso que, no homem, aparecem de modo mais evidente, inerente, dramático. João fala do amor ideal (ágape, agapan) como “modelo” para o amor real (stergein – que nós confundimos hora com eros, eran, hora com philia, philein), tentando aperfeiçoar esses em relação àquele, aproximando-os, mensurando-os, corrigindo-os. É uma empresa vã – enquanto verdade objetiva –, fadada a toda sorte de confusões conceituais, como quando se toma a sombra como objeto (causa), e seu objeto como conseqüência (efeito). João está de cabeça para baixo. O amor, aos homens – não esse “ideal”, porque também desconhecido, subjetivo, dado às ponderações metafísicas -, não é uma opção; é, antes, uma condição (ou imposição) físio-químico-biológica. Não é o amor da Adélia que, teologando, diz: “Habito nele [no éter], quando os desejos do corpo , / a metafísica, exclamam: / como és bonito!” É, antes, o amor que os gatos de Burroughs tinham por ele, que reconhecia, vencido: “O amor não é de graça. Como todas as criaturas puras, os gatos são pragmáticos”. Palavras bonitas enchem os nossos olhos, os nossos livros e os nossos corações, mas o essencial cabe e se resume em uma só palavra, que pode ser escrita em paredes de banheiros ou guardanapos de papel, nada sagrados: viver. O resto são enfeites, floreios.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

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Das razões da loucura. “A verdade é que amamos a vida, não porque estamos acostumados à vida, mas porque estamos acostumados ao amor. Há sempre um pouco de loucura no amor. Mas também há sempre um pouco de razão na loucura”. Dito por Nietzsche, por boca de Zaratustra. Viver e amar são conseqüências circunstanciais do existir, da existência, ou ek-sistência – como faz Heidegger, interpretando o termo etimologicamente, com o fito de acentuar sua força transcendente. “Existencialidade”, enquanto termo, não é empregado no mesmo sentido com que se diz que esta mesa ou este sol que entra por esta janela “existem”, designa, porém, a existência interior e pessoal do humano, apontando para uma relação experiencial e subjetiva com o mundo e com o Outro, no mundo. O ser (no sentido de condição) humano, nessa acepção, é/existe como antecipação de suas próprias possibilidades, suas conseqüências – como na conhecida frase do filósofo espanhol Jose Ortega Y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância. Se não salvo a ela, não salvo a mim”. Assim, o ser humano, como antecipação e possibilidade, sendo na frente de si mesmo, agarra-se à sua situação temporal como desafio ao seu próprio poder de vir-a-ser o que se quer-ser, ou que poder-vir-a-ser o que se deseja. Heidegger entende que o ser humano sempre anda a procura de algo para além de si mesmo, e seu ser consiste em objetivar aquilo que ainda não é; projeta-se, assim, para fora de si mesmo, mas não pode sair das fronteiras do mundo em que está submerso: é uma projeção no mundo, do mundo e com o mundo, de modo tal que o seu eu e o mundo são inseparáveis, totalmente. Neste mundo, o homem é dasein, ser-lançado-aí, fermentação para a morte, ser-para-a-morte. Ele, todavia, não está sozinho; é um ser-com, um ser-em-comum com o Outro: na angústia, na capacidade de atribuir sentido ao seu ser, ao ser do Outro – coisa que se manifesta, essencialmente, no trabalho, na arte, na solicitude, fato que o conduz e re-conduz ao amor (ou ao “amar”) e à comunicação direta, relacional. É essa inquietação relacional que estrutura temporalmente o ser homem, ser mulher, lançando-os para trás e para adiante, projetando-os para a/uma vida que seja mais que a morte, que seja mais que a espera da morte. Deveras, “a verdade é que amamos a vida, não porque estamos acostumados à vida, mas porque estamos acostumados ao amor”. Amor é dialética, movimento, inquietude. Na verdade, e em se tratando de sentimentos, o que não seria isso?

sábado, 5 de dezembro de 2009

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Dos mistérios misteriosos. Uma pesquisa simples sobre o sexo entre os animais – reino do qual fazemos parte, mas com a razoabilidade –, mostrará ao pesquisador os mecanismos naturais de galanteios e conquistas, com vistas ao coito e à preservação da espécie. A luta entre os mais fortes de um bando, por exemplo, mais do que garantir a liderança, garante às gerações seguintes exemplares mais fortes, aptos à sobrevivência. Não somos diferentes dos bichos, e nem tão “melhores” que eles. O que temos de diferente é a razoabilidade, e a capacidade de adaptar a natureza às nossas necessidades - a exemplo do nosso progresso na ciência que produz remédios cada vez melhores, que fazem a vida durar cada vez mais. É nosso também o engenho que cria armas e tecnologias capazes de matar cada vez mais e de modo mais eficiente. Também nos diferimos dos animais puramente instintivos pelo poder que temos de criar mentiras, e algumas dessas tão bem criadas que, transmitidas às próximas gerações, são assimiladas de modo acrítico, como se fossem “coisa boa e normal”, que é assim mesmo porque é “assim mesmo”, e porque “assim assado”: moral. O amor, afinal, não é uma “coisa” incognoscível, pertencente ao âmbito da moral, e nem é um mistério assim tão profundo, mistério misterioso. Mistério mesmo é o amar, e o haver quem ame.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

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Das sem-razões do amor. Ângelus Silésius, monge medieval, dizia que o amor, como uma rosa, “não tem porquês. Ela floresce porque floresce”. Algo parecido com o que é dito por Drummond, no poema As sem-razões do amor: “Eu te amo porque te amo. [...] Amor é estado de graça e com amor não se paga”. Mas, se isso fosse mesmo verdade, então o ditado popular, “amor com amor se paga”, e a litania atribuída a São Francisco de Assis, “é dando que se recebe”, estariam equivocados. Todavia, tudo sugere, quem se equivoca é o Drummond; Silésius, não – porque as rosas, “as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam...” (Cartola). As rosas são “coisas” naturais, símbolos, às vezes, e nada mais. No entanto, tudo aí, por boca dos três autores referenciados, é poesia; e a poesia, como o amor romântico, não tem compromisso com verdade - nenhuma verdade além da verdade de si-mesma. Na poesia, valem as não-verdades que são, eo ipso, verdades de si-mesmas. A respeito do ofício poético, Fernando Pessoa dizia: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. Sendo um fingidor, o poeta sofre a dor real, maquiando-o como dor fingida, elevando-a ao nível representacional, poético – disfarçando a verdade, maquiando o natural, como também é feito à Vontade, sob a máscara do amor romântico. Da mesma forma fazem os apaixonados: ao sofrerem por amor, fingem – mesmo de modo inconsciente – que sofrem pelo Outro quando, na verdade, é por si-mesmos que sofrem. E assim, como na poesia, o amor é elevado a uma categoria sublime, não comercial. “Eu te amo porque te amo”?, não; eu te amo porque me amo. Pois o Outro, objeto do “nosso amor”, tem aquilo que, em nós, existe como falta. Quando Marcel Conche diz que o “amor completo” é aquele que, olhando o Outro, “não faz objeção a seu ser, isto é, que nos parece bom ele ser como é, sem acréscimos e nem retoques”, é que esse outro é conforme o nosso desejo. No fim, é o nosso (???) que, no outro, como o reflexo no espelho, corresponde a nós mesmos, nos representando volitivamente. Nos olhos do outro vemos o nosso reflexo. Quando quereremos “mergulhar” no outro queremos mesmo é mergulhar em nós. Como acorre à rosa, ocorre ao amor, “ele floresce porque floresce”. Silésius, mesmo sem entender ou defender esse mecanismo engenhoso da vida sedenta por continuidade, falava do amor como nascido de um estado natural, uma condição essencial da vida em benefício de si mesma. O amor existe porque, ao que está vivo, nada lhe é mais natural que desejar continuar existindo – mesmo quando este, vivente, voluntariamente caminha para a forca. A vida, afinal, sempre joga a favor de si mesma; e como poderia ser diferente? O amor é apenas a efetivação desse mecanismo natural da vida em favor de si. Daí que, ao contrário do que diz a não-verdade da verdade do amor, em Drummond, o “amor com amor se paga”. Isto é, a vida transita entre as paixões e as ações, entre as potências e os atos. Mas, e se todos os homens morressem, a vida também pereceria? Não. Mas, quem saberia dela? Quem falaria sobre... amor? Onde não há Vontade não há vida; onde há vida, há Vontade. E só há amor onde há algo a ser amado. É um ciclo perfeito de auto-alimentação e existência conseqüentes, ou vice-versa. Daí que, como acontece ao calor, assim também ao amor: que é apenas a adequação (ou troca) de estados desiguais à procura de igualdades, de simetrias. Somente na vida é que se encontra a estabilidade – que precisa, para alimentar-se, da instabilidade dos “nossos” jogos amorosos. Como se vê, as sem-razões do amor não são lá assim sem razões.