domingo, 30 de agosto de 2009

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Do inconsciente. Freud era casado com Martha Bernays, com quem vivia muito bem. A única coisa que Freud detestava era a religião – a judaico-cristã, em particular – e os Estados Unidos. Conhecido como “o pai da psicanálise” – que significa, literalmente, “falar sobre (ou estudar) a alma” –, Freud acreditava ser possível compreender e tratar certas doenças mediante a análise da alma, ou da mente. Ateu proclamado, também acreditava que as pessoas eram constituídas de mente e corpo, e só; sendo a mente uma parte do corpo. Isso quer dizer que um problema mental pode, de várias maneiras, atingir o corpo; e o tratamento mais adequado para o tal problema pode não ser aquele que é administrado diretamente ao corpo, mas à mente. Freud, por isso, comparou o seu trabalho à arqueologia: ele escavava a mente humana em busca de coisas ali enterradas, encobertas. E foi assim que ele desenvolveu as teorias do inconsciente e do complexo de Édipo, dentre outras.
Numa viagem que fez a Paris, entre 1885 e 86, com a finalidade de observar os trabalhos de Jean-Martin Charcot – que havia descoberto que, sob o efeito da hipnose, poderia fazer sumir os sintomas dos seus pacientes histéricos, como também, caso quisesse, fazer tais sintomas aparecerem em pessoas saudáveis –, o jovem Freud se convenceu de que o problema de muitos daqueles pacientes (como a paralisia, por exemplo) não eram físicos, mas mentais. Ele, todavia, não adotaria a hipnose como tratamento – embora tenha se utilizado dela por um curto período. Permitindo que as pessoas simplesmente falassem dos seus problemas, Freud desenvolveu o método da livre associação: por meio do que dizem, as pessoas, inconscientemente, revelam algo sobre a raiz (ou o fundamento) dos seus problemas psíquicos.
Caso famoso, da livre associação, é o do “homem dos ratos”. O tal homem, muito gordo, decidiu que tinha de perder peso. Deixou de comer doces, passou a correr ao sol e escalar montes até ficar exaurido. Acontece que a palavra “gordo”, em alemão, é “dick”; e Dick era o apelido de Richard, um primo seu, americano. O “homem dos ratos” tinha ciúmes de Dick, que demonstrava demasiado interesse por uma garota que era o amor da sua vida. Assim, livrar-se da gordura significava, para ele, livrar-se de Dick. Por meio de sofridas dietas, ele não castigava a si mesmo, mas a Dick, seu oponente.
Nós também, inconscientemente, fazemos isto o tempo todo: o outro, que nos oprime, nós o punimos em nós mesmos. É assim que, quando você ouve uma canção que lembra um amor perdido, ou chora por um amor que nem chegou a ser “seu”, você está se autocomiserando, punindo o outro que está em você – seja na saudade dolorida ou na raiva reprimida, recalcado. O mesmo acontece quando alguém bebe ou tem crises de sono: na embriaguez ou no sono, tenta-se esquecer um problema qualquer, uma dor qualquer. Essa “fuga”, ou punição do outro em nós mesmos, acontece de muitas e variadas maneiras. Por cima de tudo está em questão a nossa própria sobrevivência, física e mental.
Isso tudo pode explicar, talvez, o problema da “mulher dos gatos”. Ela amava João, que não a amava, porque só conseguia pensar em Tatiana. Quem ficou sabendo dessa sua paixão, e sofreu por isso, porque a amava, foi o Augusto. Um dia, numa conversa que a “mulher dos gatos” teve com João, ele retirou-lhe todas as esperanças de um futuro romance. E ela viu o seu horizonte turvar sob um céu encarvoado de uma opacidade inenarrável. O mundo todo, num instante, perdeu a cor, o brilho. E foi assim que, tempos depois, ainda tendo em mente as palavras de João, ela, sabedora dos sentimentos de Augusto, numa conversa que teve com ele, retirou-lhe todas as esperanças de um futuro romance. E Augusto viu o sol dizendo adeus por sobre o horizonte distante, tão distante como nunca antes visto – e o crepúsculo, desde então, para ele, tornou-se a hora mais triste do dia; uma metáfora do adeus. É que ela, a “mulher dos gatos”, inconscientemente, condenando Augusto ao desterro, condenava não a ele, exatamente – e nem fazia isso por maldade –, mas, de modo indireto, vingava-se de João, punindo-o pelo que fizera a ela. O mando de situação, ao contrário da cena do capítulo anterior, era dela agora, ao seu favor, sob o seu controle. Ela, assim, de algum modo, reassumia a sua posição de rainha no jogo. Pois, vocês não sabem? Amar ou ser amado faz parte de um jogo que, geralmente, perdemos: ganhamos o jogo e, aí, nos perdemos no outro; perdemos o jogo e, aí, o sofrimento da derrota. E ninguém gosta de perder, ninguém gosta de sofrer; mas não há opção no jogo do amor romântico. Conclusão: por trás de tudo, emergindo do id, prevalece o nosso ego: seja amando ou punindo o outro; mas, no final, é a nós mesmos que punimos.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

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Da grande contradição. “[o Diabo] voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe: – Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? é a eterna contradição humana.” Trecho de “A igreja do diabo”, de Machado de Assis. Dentre outras, há, no conto, a idéia de que, para que os homens sobrevivam, é preciso que algo os desafie constantemente – para que desejem encontrar algum sentido nos tantos sem-sentidos do mundo. Se entre eles houvesse apenas o mal, então eles inventariam o bem, para que pudessem continuar existindo; mas isso de haver algum bem onde só há o mal é um grande contra-senso. É que o mal absoluto não tolera concorrência, mas – ao menos conceitualmente – depende dela. Havendo um bem, todavia, é diferente. Por quê? Porque o bem, justamente por ser o bem, pode suportar a existência – mesmo que temporária – de algum tipo de mal e, aí, nesse mal, ver algum bem. Se assim não fosse, como falar da fé em Deus, por exemplo? Explicá-la, pois, impossível. A postulação da idéia da existência de um mal absoluto é, nesses termos, auto-aniquilacionista, auto-contraditória. A do bem, pelo menos até onde isso pode ser pensado, não. O mal, sem os objetos aos quais possa administrar as suas maléficas maldades, é o mesmo que o bem. E se o mal castiga o mal, então ele faz o trabalho do bem; logo, age como se fosse o próprio – o que é uma clara contradição à sua condição. Já a idéia do bem, em seu sentido absoluto, escapa a qualquer juízo a posteriori; está para além de qualquer análise fundamentada na razão; e o mesmo vale para quem tem fé. É como dizia Kierkeggard: “A fé começa onde o pensamento termina”. Do mesmo modo são as coisas do amor romântico-ideal. Quem, em sua teimosa teimosia, crê na possibilidade de tal amor, perfeitinho, transpõe, em abissal salto ontológico, as barreiras das análises a posteriori (i.e. do real), e, como nas coisas da fé – em suas aporias e paradoxos mais profundos –, agarra-se a um apriorístico discurso. O sentimento, aqui, de nada vale. Mas, vejam só: é pelo sentimento que se morre; ou, antes, morre-se por essa idéia de amor, por esse engano que, crê-se, verdadeiro. Ninguém, no fundo, morre pela verdade. Os martírios, todos eles, não têm outro fundamento senão o sentimento e a dúvida; a grande dúvida. Essa é, queiram ou não, meus senhores e minhas senhoras, a eterna condição humana – ou sua eterna contradição.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

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Das fantasias. Daniela acreditava que João Aurélio era o “homem da sua vida”. Tanto acreditava que, mesmo sabendo das suas traições, tantas, lá no fundo ela pensava que, ao “fazer amor” com as outras, era com ela que ele fazia, porque pensava nela e era pra ela que ele sempre voltava. De algum modo, por alguma desconexa defesa da sua fé no amor, se agarrava com todas as forças na crença de que, um dia, João se redimiria, largaria aquela vida devassa e se dedicaria só a ela, e seriam, por fim, felizes. O amor romântico é sempre assim: dono de promessas de futuras felicidades – mesmo que, no presente, somente tristezas e decepções seja o seu quinhão. O amor romântico, conforme inventado, tem esse poder tenebroso de iludir pessoas, de conceber felicidades incompletas que precisam ou que pensam que precisam do/da outro/outra para serem completos/as. A maior dessas ilusões é a da estética, da simetria. Como Daniela, muitas mocinhas metidas a Barbie procuram seus Kens, seus príncipes encantados; o homem perfeito: bonito, rico, educado, sério e, lá no fundo, um pouco safado – que é para não cair na monotonia. Com o fracasso da moral ocidental – a cristã, em particular –, vê-se cada vez mais que esse modelo de “bom rapaz, direitinho”, que nem na música do Tom Zé, é coisa só para o cinema, somente para a literatura fantasiosa. “Bom rapaz, direitinho, desse jeito não tem mais”. E quando tem, é coisa chata; nem a mãe agüenta. A mulherada, embora não confesse abertamente, não gosta de rapazes engomadinhos, “filhinhos da mamãe”; e quanto mais a mocinha é bem criada, tanto mais tende a se ligar nesses rapazes à James Dean, Jim Morrison, auto-incendiários; e se não o fazem mais é porque as amarras culturais – nas quais foram criadas – ou a covardia própria lhes bota freios. Sim, é claro; existem as excessões. Grosso modo, porém, meus senhores e minhas senhoras, suas filhas “se amarram” mesmo nesses caras doidões e, no entanto, caretas; pois o amor – que nada mais é do que uma armadilha da Vontade da vida com o fito de fazer as pessoas procriarem e, assim, manter-se – também impera sobre esses, fazendo-os tão suas vítimas quanto as vítimas desses. A Vontade precisa de alguma estabilidade que lhe garanta o sucesso do empreendimento, e embora apareça como um instinto domado, amordaçado conforme o modelo da cultura, está aí, sobrevoando o mundo à cata de suas presas. E se todas as histórias de todas as lutas têm, no seu enredo mais profundo, um script ditado pelo amor, é porque o amor tem, em relação à Vontade da vida, uma funcionalidade mais do que conveniente. O disfarce é tão perfeito que, esquecendo suas próprias vidas, as pessoas fantasiam o amor para além dela. Daniela não sabia disso; mas sabia que a ignorância, às vezes, pode ser uma bênção.

domingo, 23 de agosto de 2009

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Da noção poética. Na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, Carlos Drummond de Andrade, em um papo com Mario Quintana:
- “E agora, José?”, diz o mineiro de Itabira do Mato Dentro, referindo-se a não eleição do gaúcho de Alegrete à Academia Brasileira de Letras.
- “Todos esses que aí estão atravancando o meu caminho, eles passarão... eu passarinho!”, responde Quintana, com ar jocoso. Nisso, ironia das ironias, vem uma pomba, dessas que ficam aí pelas praças comendo milho e cagando nos bustos e nas estátuas, e faz a sua obra bem no ombro do poeta.
– “Maltratar os poetas”, diz o autor d’A rua dos cataventos, espantando a bicha, “é indício de mal caráter.”
Mas Drummond, que ama as aves, fica de pé e oferece um lenço bordado de vagonite ao seu amigo, dizendo-lhe:
– “Amor é estado de graça e com amor não se paga.”
– “O meu amor é belo como um barco!”, responde Quintana, voltando a estatuar-se.

sábado, 22 de agosto de 2009

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Do sentir. Na letra de “Gostosa”, música do Jorge Ben Jor, há o trecho: “Gostosa, ela é gostosa. O que está pegando é que ela mora muito longe...” Pois não é, para o amor, a distância, um enorme de um problema? Quem bem sabia disso era o Laércio, que morava longe, muito longe de Ana. Ele, em Aracajú; ela, em João Pessoa. De fato, geograficamente falando, não era tão longe; mas, para o corpo, para os desejos do corpo, era. Uma noite, quando conversavam ao telefone, ele disse, com um sorriso tão grande quanto o do gato na história da Alice, e como quem a confessar os sentimentos que tinha por Ana, e o que seria capaz de fazer por eles, por ela: “Ana, hoje comprei a passagem! Não vejo a hora de chegar aí pra poder te abraçar, te beijar... Como eu espero por isso!” Sim, ele estava bem entusiasmado. “Cara”, ela disse, com sua voz sem cor, “eu acho que não faria isso por ti”. Ela não mede mesmo as palavras, ele pensou. Em revelia, e rejeitando a frieza da namorada, atalhou: “Eu, sim, Ana; por você eu iria até o fim do mundo, se preciso fosse!” Laércio sabia do medo que ela tinha de alguém que a amasse tanto; sabia também que, numa relação, qualquer uma, um sempre se perde mais que o outro; sabia enfim que, quando ele próprio afirmava que iria até o fim do mundo por ela, na verdade, era por ele mesmo que faria tal coisa. O amor é sempre amor por algo, e esse algo sempre mora em nós mesmos. Como Édipo, é a nós mesmos que, no outro, como que em um espelho, contemplamos, ou procuramos para que possamos contemplar. Que tem haver o objeto amado com o amor? Nada. Tudo está em nós. Amar é “estar distraído”, como dizia Caeiro: “Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados / Como para os que não o são / Sentir é estar distraído”. Estar distraído é dizer que ama o outro, e não a si mesmo, somente. O amor é a loucura da razão, e, às vezes, a razão da loucura.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

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Dos fantasmas. Lorayne fazia “poeminhas”; como ela mesma dizia: “Eu tenho flores nas pontas dos dedos, / e um espinho no coração... / leio um diário de tantos segredos, / desse fantasma preso no porão...” Como um Drummond que fizesse poemas para um outro Carlos, embora falasse de si mesmo para si mesmo, mas como se não o fosse – “Ah, Carlos, não se mate!...” –, assim também Lorayne. Pois quem não tem segredos e não convive (vive com) com fantasmas de amores findos? Quem, em algum momento da vida, não tem o coração ferido por um espinho, mesmo que, nas mãos, traga somente flores? E quem, nas dores do amor, não é meio louco, meio poeta, meio Van Gogh, meio Miró? Para o amor, meus caros, há que se aprender sobre a resignação, sobre os riscos e, acima de tudo, não ter medo dos fantasmas. Ferida e meio louca, qual moderna Emily Dickinson, Lorayne viveu só, esperando por um amor que nunca veio, e fazendo poemas que nunca serão lidos.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

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Das canções de amor. Alex, sempre que comprava um CD novo, nos convidava para ir à sua casa, escutá-lo; e aí nós conversávamos sobre a tal banda, e bebíamos uns refrigerantes, e jogávamos ludo ou war e, acima de tudo, jogávamos conversa fora. Enfim, tais encontros eram sempre muito bons. Dessa vez, iríamos ouvir o álbum novinho, recentemente lançado, da Legião Urbana, O descobrimento do Brasil; era uma tarde quente de 1993. Ah! ainda respirávamos os anos 80. Alex dizia que a música que mais gostava n’O descobrimento do Brasil era “essa mesma que dá nome ao disco”, e cantava junto com o Renato: “Ela me disse que trabalha no Correio / E que namora um menino eletricista / – Estou pensando em casamento, / Mas não quero me casar...” E cada um tinha a sua preferida. De todas, eu não me decidia entre “Vamos fazer um filme” e “Giz”. Depois vinha o vôlei, com a turma da rua, no terreno da Igreja de Santa Teresinha. Eu vivia os meus 18 anos, e era apaixonado pela filha de um pastor da Igreja Batista Regular, de Crato; e ela sabia, e ela não se decidia, me pedia pra esperar, e eu não sabia bem o que tinha de “esperar”. Mas ela estava ali, no vôlei, me vendo jogar; e eu me esforçava pra ser o melhor, pra que ela gostasse de mim. Quatro anos depois, quando eu já morava em João Pessoa, fiquei sabendo que o Alex, certa noite, no Tiro de Guerra (TG 10-004), numa brincadeira de roleta russa, disparou um revólver contra a própria cabeça; tiro fatal. No enterro, me disseram, duas garotas choravam dizendo que eram suas namoradas. Ah! Os anos 80; ou quase isso. Quando eu penso nos meus bons amigos, lembro do Alex, das duas meninas que choravam por aquele “amor” perdido, e lembro como o tempo passa e nós vamos indo, com ele... E essas lembranças, minhas, têm n’“O descobrimento do Brasil” a sua trilha: “É tão estranho / Os bons morrem jovens / Assim parece ser / Quando me lembro de você / Que acabou indo embora / Cedo demais...” De amores findos e gente morta dizendo adeus, disso são feitos os filmes, e as canções de amor. Doze anos distam do ocorrido, e hoje, depois que eu desligar o computador, vou ouvir mais uma vez O descobrimento do Brasil... Será a minha homenagem solitária pro Alex. “Vai com os anjos! / vai em paz.”

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

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Das alegrias. Márcio, finalmente, completara seus tão sonhados 18 anos. Seu pai, em cumprimento à promessa que fizera, comprou a moto Honda, 250 cilindradas, vermelhinha, uma que o bom menino esperava de muito. Depois de mil recomendações da mãe, ele poderia levar Juliana, sua “quase” namorada, para passear no farol, na Ponta do Seixas. Não ficava nada mal impressionar a garota que, na garupa, deveria abraçá-lo pela cintura, apertando-o contra si. O mundo era lindo! e todas as vias eram veias que davam no coração do paraíso. Marcaram para o domingo, quando o sol da tarde já não estivesse em um para casa habitante de João Pessoa. O ar que acariciava o seu rosto, entrando pela viseira, dava uma agradável sensação de aventura, de liberdade. Nas mudanças de marcha, que provocavam levíssimos balanços, Juliana o abraçava... tudo como ele havia sonhado. Seus sonhos, finalmente, se realizavam. Só faltava agora, para que tudo fosse perfeito, que Juliana dissesse “sim”; “sim, eu quero ser a tua namorada”. Márcio estava cansado dessa coisa de ficar com essa ou aquela menina. Tivera tantas por uns tempos e, agora, no fim, não tinha ninguém, realmente. Mas, no pé em que as coisas andavam, isso era apenas uma questão de dias, talvez de horas. Márcio pensava nisso quando, numa curva no final da praia de Cabo Branco, viu um vira-lata atravessar a pista, não deu para frear. Ele e Juliana estatelaram-se contra um poste com a moto desgovernada. Juliana foi lançada contra o meio-fio e teve o crânio esmagado, fraturas expostas, morte instantânea. Márcio tinha o braço esquerdo e o pescoço quebrados; morreria minutos depois, olhando de lado, vendo o cão fazer círculos na pista, rodando, deitado de lado, ganindo, sangue escorrendo pelo canto da boca. Nos dias seguintes, o povo da cidade não falava de outra coisa. Os pais do Márcio, numa das visitas que lhes fiz, deram-me de presente o disco que ele ouvia antes de sair para a casa de Juliana, o álbum Ouça o que eu digo: não ouça ninguém, dos Engenheiros do Hawaii. Disseram ainda que, quando a sua irmã mais nova foi desligar o aparelho, a canção que tocava, dizia: “É muito engraçado que todos tenham os mesmos sonhos e que o sonho nunca vire realidade”. Lembram bem disso porque a frase ficou martelando em suas cabeças, como se alguma relação houvesse com o ocorrido; enfim. Das alegrias, nunca se sabe. Dias depois, no cemitério do Cristo Redentor, eu levaria flores pros dois; mas sabia que isso já não fazia a menor diferença.

domingo, 16 de agosto de 2009

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Dos desencontros. A sabedoria popular é dotada de verdades obtidas a posteriori. E, em se tratando de sabedoria popular, nada mais rico do que os cordéis que podem ser encontrados nas feiras-livres, bancas de revistas e livrarias de todo o Nordeste. Num desses cordéis, de autoria de Manoel Monteiro, chamado de No vai e vem do amor, os encontros e desencontros amorosos são tratados e retratados com esplendorosa maestria. Como aperitivo, os dois primeiros parágrafos:


Quando eu falava com ela
Ela não me respondia,
Quando ela percebia
Que eu vinha na rua dela
Sequer na porta ou janela
Ela nem aparecia,
Quando eu chorando pedia
Ela sorrindo não dava
QUANDO EU IA, ELA VOLTAVA
QUANDO EU VOLTAVA, ELA IA.

Muito difícil dar certo
Um namoro desse jeito
Quando um quer coxa e peito
E o outro nem chega perto;
Vender areia em deserto
Eu vi logo que não dava,
Quanto mais a procurava
Mas a peste escapulia
QUANDO EU VOLTAVA, ELA IA
QUANDO EU IA, ELA VOLTAVA.

O amor romântico, para sobreviver enquanto vive - isso equivale ao “ser eterno enquanto durar”, do Vinicius -, precisa mesmo dessa dialética permanente; não, e sempre, contrária a si mesma. Pois que, senão, aniquila-se ainda/já no nascedouro. Parece que, como sempre, a sua saúde repousa no caminho do meio – mas, quem tem assim tanto equilíbrio? Quem sabe a resposta não esteja num outro cordel...

sábado, 15 de agosto de 2009

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Do nascimento de Eros. A fogosa Afrodite, numa das suas “noitadas”, engravidou. Foi assim que nasceu Eros – ou Cupido –, deus do amor. Irado com as diabruras do pirralho, Zeus disse, agourando: “Este teu filho vai ser causa de muitos males aos homens”. Afrodite, diante do vaticínio tão sério, espantou-se. “É melhor sumir com ele” – disse Zeus, conclusivo. Mas nem passou pela cabeça de Afrodite, coração de mãe, obedecer às loucas recomendações do deus maior dos gregos; antes, encheu o menino de mil cuidados e, ansiosa e temendo que Zeus fizesse algum mal ao seu filho, escondeu-o num bosque. Aí, vieram tigres e leoas a amamentarem o menino que, mais encapetado do que sempre, rapidamente cresceu, armando-se de mil estripulias e peraltices. Eros também se tornou belíssimo: forte, olhos esverdeados e dotado com um par de asas que pendiam-lhe das costas – e que o tornavam ainda mais hábil e apto às travessuras. Logo ele armou-se de um arco e, para o mesmo, fabricou flechas envenenadas. A partir de então, ninguém mais, em parte alguma, estaria seguro – inclusive a sua mãe que, trespassada com uma das suas flechas de ouro, enamorou-se perdidamente pelo formoso Adonis. Perdeu-se. E é justamente isso o que ainda hoje ocorre àqueles que são flechados por ele: sangram até que se perdem. E é também por isso que Camilo Castelo Branco escreveu uma novela passional - que lhe rendeu fama e alguma fortuna -, livro ao qual chamou de Amor de perdição, reafirmando o que já havia sido dito por tantos outros: “Para aumentar a dor: amor; para bem mais sangrar: amar”.
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Das gerações futuras. O velho, amolador de facas, viu quando o casal se aproximou dele, mas não lhes deu muita atenção. Seus olhos, fixos na roda que fazia girar com o contínuo movimento do pé direito, só se ergueram quando o rapaz, de braços dados com a moça muito bonita, perguntou:
– O senhor não é o seu João?
– Sim! E o senhor me conhece de onde? – Perguntou o velho, com um sorriso amistoso, retribuindo o trato cortês.
– Pois então, seu João; eu sou filho do Sueldo Gomes. O senhor não lembra dele?
– Sim, sim, meu jovem. E como é que eu haveria de me esquecer do Gomes? Eu e o seu pai fomos colegas na mesma turma de escola. Só depois que ficamos adultos, filhos nascidos, foi que nossos caminhos tomaram rumos diferentes. Então você é aquele garotinho que eu vi assim, pixotezinho... – disse o velho, fazendo medidas no ar, com a palma da mão; e perguntou: - Mas, me diga: como vai o Gomes?
– Vai bem. Abriu mais uma loja que distribui os objetos que a fábrica... fabrica. Tá até pensando em abrir umas filiais fora da cidade.
– Gomes sempre teve um espírito empreendedor. Dono de fábrica; veja só! Mas, fábrica de quê?
- De sapatos de couro e outras coisas. E o senhor, seu João; como vai? Porque eu tenho certeza que ele vai me perguntar isso, quando eu disser que o vi.
– É, vai mesmo. Bom, como você pode ver, não tive a mesma sorte que o seu pai. Trabalhei aqui e ali, sempre pros outros; fiquei sem emprego. E agora que sou velho, não para trabalhar, mas para arrumar trabalho, ganho a vida, enquanto posso, fazendo uns bicos aqui, outros ali, amolando facas, tesouras, essas coisas. É um jeito de completar a aposentadoria, que é bem pouco.
– Vou falar do senhor pro pai. Tenho certeza que ele vai querer lhe quebrar um bom galho... até mesmo pelos velhos tempos.
– Ah! E eu lhe fico muito agradecido. Mas, independente de qualquer coisa dessa natureza, diga-lhe que eu mando lembranças, que sempre lembro dele nas minhas boas recordações. Diga que eu pedi pra você perguntar sobre o franguinho do Fernando... ele vai dar umas boas risadas quando você disser isso.
E o velho riu, gostosamente. O rapaz não sabia do que se tratava; mas o seu pai, certamente, lhe contaria a história toda para explicar os motivos dos risos do seu João.
– Mas, vejo que você vai se casar – disse o velho, notando a maneira carinhosa com a qual o rapaz cuidava da moça, e olhando para as grossas alianças que ambos usavam no dedo anular da mão direita.
– Pois é. Já plantei uma árvore; já escrevi um livro, ou quase isso, e, agora, só me resta ter um filho, como dizem por aí.
– É; dizem. Plantar a árvore tem haver com a permanência da vida na terra, o ambiente propício às gerações seguintes; escrever o livro tem haver com a transferência do saber adquirido; ter um filho diz respeito à nossa própria continuidade: por eles, ou através deles, nos mantemos vivos. Filhos são retratos dos pais, espermas crescidos.
– Eu não havia pensado o ditado por essa perspectiva.
– Pois é.
Seu João era cheio de filosofices, e sabia muito sobre as coisas do amor; mas achou melhor não dizer tanto ao rapaz; ele precisava saber por ele mesmo. E foi assim que, depois de amolar muitas facas e tesouras, seu João foi trabalhar no almoxarifado da Sueldo’s, no Bairro das Indústrias; está lá até hoje.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

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Da indecisão. Zaratustra observou uma mulher que levava um enorme vaso d’água nos ombros. Os homens que o ouviam notaram que ele, com os olhos, acompanhava-a em seu minúsculo trajeto, do poço à taberna que distava pouco mais de vinte metros da praça; a mulher, talvez pelo excesso de peso, esvaziou parte do conteúdo do vaso e, aí, pareceu haver esvaziado demais, pois fez uma grave cara de decepção. Todos pensavam que Zaratustra ia fazer algum comentário à cena, mas ele não disse nada. A sua atenção agora se voltava para um menino que brincava com um velho e esquelético cão.
– Não nos dirá nada sobre a mulher? – alguém perguntou, incitando-o. Os outros riram, esperando que o eremita se pronunciasse.
– Acaso é Zaratustra um tagarela? Porque falaria de tudo, como se as palavras fossem catarro? Não tenho o que vos dizer – declarou, indolente.
Todos ficaram contrariados. Zaratustra parecia não corresponder, de uma ou de outra forma, ao tipo de sábio que eles imaginavam. E foi aí que o eremita disse, repentinamente:
– Por que necessitais de um doutrinador? Zaratustra é, acaso, um doutrinador? Precisa de discípulos nos quais derrame a sua doutrina? Não é Zaratustra uma planta antes da semente? Não são suas palavras podadeiras antes dos galhos? Quem necessita da sabedoria senão os sábios? Mas, vós, sois sábios? Se não, do que necessitais? Se sim, do que necessitais?
Alguns homens, os mais altivos, irritaram-se com Zaratustra, vociferando palavras depreciativas, boca miúda; mas o velho eremita permaneceu como se surdo fosse. Depois os homens foram embora, ainda praguejando. Achando-se só, Zaratustra se dirigiu a um asno que pastava por ali, depressivo.
– Esses homens – disse ao asno, que lhe ignorava por completo - são como aquela mulher que conduzia o vaso, e como todas as mulheres: não têm o que querem e, quando têm, não têm certeza se é isso mesmo o que desejam; e quando têm tal certeza, já não sabem o que fazer com isto.
O asno não disse nada, naturalmente.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

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Da arte e do artista. Como todo mundo sabe, Vinicius de Moraes foi um grande conquistador; um tipo de Don Juan brasileiro. Mas, conforme conta Ronaldo Bôscoli no livro-memória Eles e Eu, escrito por Luiz C. Maciel e Ângela Chaves: “Vinicius estava preocupado com sua vida amorosa. Não sabia se as namoradas o amavam como homem ou à sua fama como poeta”. E foi por isso que, ainda segundo Bôscoli, o Poetinha resolveu perguntar a Otto Lara Resende: “Otto, você é meu amigo, me diga sinceramente. Você daria pra mim, mesmo que não soubesse que sou o Vinicius de Moraes?” “Claro que daria!”, foi a resposta. A dúvida do Vinícius tem fundamentos, e muitos. O melhor deles é o que nos mostra que, dentre outras coisas, as pessoas costumam amar não o artista, mas o que ele representa: amam a representação, a imagem. O artista, armado da arte, é aquele que, nas dores do mundo, mostra um escape. A arte, sim, foi a saída que os gregos encontraram para fazerem frente à grande tragédia que perpassa o mundo; e essa é a tese central do livro O nascimento da tragédia, ou Helenismo e pessimismo, de Nietzsche. O artista é amado porque as pessoas vêem nele, como vêem num santo messiânico ou num profeta, uma saída para algo mais que a tragédia: transcendência. O artista, porém, como os santos messiânicos ou os profetas, é apenas um portador da “palavra do Divino”. As pessoas amam, assim, não o artista, exatamente, mas o Divino – que pode ser qualquer coisa que transcenda a materialidade fria da razão, do fenômeno, do sensível, ou do “mundo da vida”, como Jürgen Habermas diria. Jocosidade à parte – a propósito da resposta de Otto –, e sem pretensões de definição, o amor é uma fatalidade da Vontade que atua igualmente entre dois que são diferentes, com a promessa vã de torná-los iguais. E isso tudo, assim dito, depõe contra a idéia de uma “alma-gêmea”.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

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Do haver e da falta. O amor, às vezes, aparece nas horas mais inesperadas. Ele pode surgir para você até mesmo enquanto você estiver dormindo. Aquela garota ou aquele cara a quem você não dava a menor atenção aparece nos seus sonhos, fantasiado/a de estrelas, de mar, de paraíso; aureolado/a de idílicas delícias secretas, pedindo por descobrimentos. E, no outro dia, quando você menos percebe, aquelas oníricas imagens vêm todas de uma vez num flash-back atordoante e “bom”; e você, que não estava nem aí para “essas coisas”, sente falta do moço ou da moça que agora mora em seus sonhos, em sua fantasia; Cupido lhe flechou. E inesperadamente, numa espontaneidade magnética, você sente uma louca louca vontade de vê-lo, de vê-la. O amor age de modos vários, misteriosos, e quase sempre de modo irônico, inesperado. É que o amor não manda recados. E ele pode querer, mais que a tranqüilidade da planície e o cício suave do vento acariciando o cálamo, a calamidade, a fúria das ondas, os espasmos do trovão, a violência dos raios e a presença físico-material do alvo – pois, não tendo um corpo, precisa de um em que possa habitar, como um espírito desencarnado. Mas aí, realizando-se, abandona a casa à sua própria sorte, e parte em busca de outras habitações. É assim que a garota dos seus sonhos poderá ser, se você não aprender a parábola do Pequeno Príncipe e sua Rosa, a garota dos seus pesadelos. Marjorie, a outrora tão querida e amada mulher de Walter, personagens de Point counter point, de Aldous Huxley, agora era o objeto das suas mais tristes tristezas.

– Não vais voltar tarde? – Havia ansiedade na voz de Marjorie Carling, qualquer coisa que parecia uma súplica.
– Não, eu não voltarei tarde – respondeu Walter, com a certeza infeliz e criminosa de que não estava dizendo a verdade. A voz dela o aborrecia. Era um pouco arrastada, tinha um refinamento excessivo, mesmo na dor.
– Não passes da meia-noite.
Marjorie podia ter-lhe lembrado o tempo em que nunca saía à noite sem ela. Podia ter feito isso; mas não queria; era contra os seus princípios; não pretendia forçar de nenhum modo o amor de Walter.


Amor realizado é amor amordaçado; e a mordaça mata o sentido daquilo que, em sua antropomorfia própria, é dotado de grandes asas. Por que é que isso é ruim? Simples: porque quando o sonho vira realidade deixa de ser sonho, vira coisa concreta, sensível, longe da fantasia que é o seu alimento natural. O amor romântico alimenta-se de sonhos, e ai daquele que acorda. Encontrar um amor é achar-se desperto. O amor precisa tanto da fantasia quanto o ser humano precisa de água, de alimento e de oxigênio. Vai-se a fantasia e a esperança, fica o real e o desespero, desespero de nada mais esperar. Pode haver coisa mais sem graça? Pode haver coisa mais triste? O amor, meus caros, minhas caras, só existe enquanto falta.

sábado, 8 de agosto de 2009

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Dos vazios. A cada nova conquista, Rafael se sentia mais vazio, mais sozinho. Não lhe adiantava mais “pegar tantas meninas”, nenhuma lhe satisfazia por muito tempo. Cada rosto diferente que chegava era carregado de promessas, de novidades; mas, nos dias que se seguiam, o tal rosto, antes enigmático, cheio de brilhos e mistérios, transmudava-se, mergulhava no comum que era, que é cada um, cada uma. “Eu me acostumo rápido demais com a beleza”, dizia, dando a entender que a menina, por mais linda que fosse, perdia a graça, o brilho, perdia a cor, morria para os seus sentimentos. “Vai ver que tu é gay, não? Já pensou nisso?” “Sou não, Patativa; que sou hétero, tenho certeza.” “Então você é só mais um sem vergonha”, eu lhe dizia, rindo – porque não sabia mais o que dizer. Certo é que, a cada “Adeus, a gente se vê por aí”, Rafael sentia como se algo dentro de si fugisse, como um balão de gás, como se uma parte sua partisse com cada menina que ia embora, que entrara na sua vida e que, agora, saía. Era preciso encontrar alguém que, mesmo não sendo perfeita, permanecesse, porque senão, em breve, ele mesmo sumiria, fragmentado em mil pedaços. Um dia eu li o poema “Propiciação”, de Oswald de Andrade, do livro Serafim Ponte Grande: “Eu fui o maior onanista de meu tempo / Todas as mulheres / Dormiram em minha cama / Principalmente cozinheira / E cançonetista inglesa / Hoje cresci / As mulheres fugiram / Mas tu vieste / Trazendo-me todas no teu corpo”, e completei: “um dia vai aparecer uma dessas, que trará consigo todas as outras; enquanto isso não acontece, não vá se perder por aí, e tente gostar mais de você mesmo”. Pra isso, precisa de Freud não. Todo mundo sabe: a criança que mora em nós nunca cresce; o que cresce mesmo são os brinquedos dos nossos desejos.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

33
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Das nuvens. Havia algo de misterioso naquele olhar. Sim, havia. Ela não era sempre assim tão dispersa, tão outra.
- Tá tudo bem, Bia? - Perguntou, quase rindo ao vê-la disfarçar uma certa ansiedade que parecia vazar pelos seus poros, pelos seus olhos.
- Sim, sim! - ela disse. - Tá tudo mais do que bom.
Mas ela mentia; e ele sabia: não era só aquilo, havia algo mais. Já a conhecia o suficiente para saber quaundo ela queria lhe dizer algo, e quando estava escondendo alguma coisa.
- Fala de uma vez, Bia! Que é que tá pegando, hum? O que tu quer me dizer, hem?
- Ai... - ela quase não se continha, num misto de ansiedade e tensão, e fazendo cara de choro. - Eu tenho medo da tua reação, Pedro. Quer dizer: não sei se agora é o melhor momento pra isso...
- Ih, meu Deus! - ele disse, fitando-a com aquele olhar de "pode dizer o que quiser que eu agüento". - Isso o quê? Fala de uma vez, criatura! Fala! Não gosto desse suspense todo.
E ela falou, vomitando as palavras, com toda a urgência do mundo:
- Tô grávida, Pedro! É isso: tô grávida!
- Ah! Meu Deus! Sério? Meu Deus!
Ela começou a fungar, limpando o nariz choroso com a palma da mão, não querendo acreditar no que ouvira.
- Bem que eu não queria ter dito isso agora. Melhor ter te preparado antes e...
- Não, não, meu amor! Não é nada disso! É que eu esperava tudo; menos isso, mas...
E ambos ficaram em silêncio por um instante, até que Pedro disse, rindo, notando que ela o compreendera errado, e quase saltando de felicidade:
- Que coisa boa, Bia! Que coisa boa! Abraçou-a com força, espremendo-a contra si. Sim, estava feliz. Nunca pensara seriamente em ter um filho com Beatriz. Mas, agora, parecia que isso era a coisa que ele mais queria nesta vida, a coisa que mais desejava.
- De quantos meses?
- Acho que de um, um e meio... Não sei bem; vou ver isso direito - ela disse, já com um sorriso enorme no rosto, de um a outro canto das orelhas.
E eles se beijaram, fizeram mil planos para o bebê que seria o mais amado, o mais querido, o mais mais. Mas, como Shakespeare dizia, "há mais mistério entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia". E foi em um desses mistérios, dessas coisas que não se explicam, que Beatriz, meses depois, quando voltava da clínica olhando o resultado do pré-natal, não viu o Fusca prata que, em alta velocidade, não teve como frear. Não morreria no acidente, mas o bebê, sim. E desde então, Beatriz não consegue mais levar a vida que levava antes; não consegue se recuperar do impacto da dramática perda, prematura, abrupta. Na sua contabilidade sentimental, o tempo passa lento, arrastando-se. E dia após dia ela vai se distanciando da razão, perguntando a Pedro, a todo o tempo:
- Será que o bebê sofreu? Será que ele, se tivesse nascido, iria olhar pro céu, procurando bichos nas nuvens? Será que iria querer explicar todas as coisas do mundo, ou se contentaria em viver cada dia como um prêmio da natureza? Hem, Pedro? Me diz; me diz...
- Eu não sei, meu amor; eu não sei. Acho que as crianças de hoje não têm mais costume de fazer isso.
- Sabe – ela disse, filosofando, porque é a coisa que mais os loucos sabem fazer –, às vezes eu queria ser outra pessoa. Mas aí, penso assim: se eu fosse outra pessoa, ainda ia querer ser outra pessoa que desejaria ser ainda outra, sem conseguir nunca me livrar desse círculo de eterno retorno do mesmo; que nem um oroboro.
Pedro ficou em silencio, avaliando o que ela dizia, e com a imagem de uma serpente engolindo-se a si mesma, e de um cão que perseguia a sua própria cauda...
- Pedro.
- Oi.
- Se o nosso bebê tivesse nascido a gente ia ter que botar umas redes nas janelas, não era? Olha só: sétimo andar... Vai que a gente deixava a janela aberta e o bebê, vendo os bichinhos nas nuvens...
- É... - Pedro concordava com tudo o que Betariz dizia, seguindo à risca as recomendações do psiquiatra -; a gente ia ter que botar umas redes nas janelas.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

32
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Das estrelas cadentes - Olha! Olha! Faz um pedido!
Ele olhou pro céu, displicente. Estava mais admirado com o brilho nos olhos dela e a sua empolgação radiante do que com a estrela que caía. É, estava apaixonado.
- É lindo, não é?
- Sim - ele disse, de olhos fixos nos olhos dela, que miravam o encarvoado e frio céu de Agosto.
- E então?
- Então, o quê?
- Ora, o quê? O que você pediu.
- Ah! Eu pedi... – fez mistério, como se não fosse falar.
– Falaaaaaa... – ela disse assim, estendendo o “a” e simulando um ataque ao seu peito, com os punhos fechados. Ele adorava isso e, entre o riso e o pesar, disse, fitando os olhos da menina:
– Eu pedi uma coisa que, para ser alcançada, depende mais de nós dois do que da sorte ou de qualquer outra coisa.
Ele realmente não queria revelar o que pedira. E ela, olhando-o, não entendia o que ele queria dizer com tudo aquilo, com tanta gravidade, com toda aquela subjetividade. Será que ele levava mesmo essa história a sério? Não! Ele era sempre tão racional, tão racionalista. Estrelas cadentes? Tolice! Mas, em todo caso, ela pensou, e insistiu:
- Vai, me conta, amorrrr.... O que você pediu?
- Pedi que você tenha sempre essa alegria, esse brilho no olhar, e pense em mim quando a minha estrela se apagar.
Ela não sabia o que dizer. E ela não disse nada.
Dois meses depois, no cemitério, sentada no banco de mármore que ficava em frente ao túmulo dele, ela lembrava de tudo isso, e entendia cada palavra. “E quando chegar a noite, cada estrela parecerá uma lágrima...”, sussurrou baixinho, cantarolando para si numa tristeza desafinada, e caminhado em direção ao carro. Voltaria para casa, para a sua solidão de mil vidas. O apartamento, que era tão pequeno, agora tem o tamanho de uma galáxia. Moral da história: se você tem um sorriso guardado para alguém, use logo.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

31
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Da cegueira. Em Une vie – livro de Guy de Maupassant, escrito em 1883, e que é exemplo de realismo fantástico –, a meiguíssima Jeanne, sem suspeitar de que o seu marido, Julien – que era o sentido e a razão da sua vida –, andava lhe traindo com a mulher do conde de Fourville, de quem Jeanne pensava tratar-se apenas de “uma boa amizade a ser preservada”, decide seguir os cavalos que, mata adentro, levavam Julien e a mulher do conde a um certo local secreto em que os dois se encontravam. “Ao chegar junto ao pacientes animais, que ruminavam tristemente como habituados às longas paradas”, diz Maupassant, “Jeanne chamou pelos dois. Ninguém respondeu. Na relva, marcada pelos rastros, jaziam uma luva de mulher e dois rebenques. Tinham estado ali, portanto; e certamente se haviam afastado, deixando os cavalos no local. Esperou-os durante um quarto de hora, surpresa, sem poder atinar com o que eles estariam fazendo. Como saltara do cavalo e se deixara ficar imóvel, apoiada a um tronco, dois passarinhos, sem notarem a sua presença, vieram pousar-lhe bem junto aos pés. Saltitando um em torno do outro, de asas abertas e esvoaçantes, trocavam mútuas saudações, pipilando; de repente, o macho saltou sobre a fêmea num longo amplexo. Jeanne surpreendeu-se diante do que via, como se tudo isso fosse estranho para ela. Por fim, disse para si mesma: – Ah! Estamos na primavera!” O amor, em seu governo cruel sobre os cândidos e tolos, permite que eles vejam somente o que eles querem que seja visto. Ou, como todos dizem por aí - evidentemente sem as complexas “ornamentações” que parecem necessárias ao tema, e também sem a real compreensão do que realmente dizem –: “O amor é cego”. É que, a bem da verdade, e a título de precisão discursiva, o amor é que cega.

domingo, 2 de agosto de 2009

30
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Das planícies e abismos. Maria, no auge da sua juventude, despertava a violenta paixão de Gilberto. Todas as tardes, num exagerado metodismo, ele a esperava, olhando pela janela. Vê-la passar, voltando da escola, e notar que ela o percebia, valia a longa espera; ele “ganhava o dia”, como nos dizia, embasbacado. Quando ela aparecia na esquina da rua, a câmera fechava nela, todos os holofotes se acendiam sobre a sua cabeça de cabelos amarelos ondulados, e ela brilhava, e tudo o mais não passava de coadjuvante àquela cena de graça e rara beleza. Os finais de semana de Gilberto eram tristes, uma vez que não havia aula para Maria, e ela ou ficava enfurnada dentro de casa ou saía com as amigas – coisa que o deixava ainda mais deprimido: “Com quem será que ela se encontra? Será que ela vai ficar com alguém numa dessas festinhas? Ai meu Deus!” A idéia de que outro cara, que não fosse ele, pudesse abraçá-la, pudesse beijá-la, era muito angustiante. Um turbilhão de imagens doloridas lhe inundavam a mente. Às vezes, à noite, ele nem conseguia dormir pensando em tudo isso.
– Por que você não conta o que sente pra ela, rapaz? – sugeria Marcelo, um seu amigo de longas datas.
– Tá louco, man! Melhor não. – Respondia Gilberto, olhando pro teto. – Você está me empurrando ou para a planície ou o abismo; e é disso que eu tenho medo.
– Planície ou abismo? Quer dizer que...
– Que se ela gostar de mim – atalhou –, será como um passeio pela planície: mágico, gostoso, calmo e... chato. Não é assim que acaba a fita? Amor realizado é verbo no passado; planície que acaba sempre em algum abismo. Mas, se ela não corresponder aos meus sentimentos, isso me será o abismo antecipado, sem os atrasos da planície. Que grande merda, né não?!
Reclamava, num misto de covardia, medo da dor e dor advinda do medo da dor. Dias mais tarde, numa manhã de domingo, Gilberto, por puro acaso do destino, ao passar pela calçada de Maria, esbarrou nela, que saía estabanada de vassoura na mão, enxotando uma barata medonha que aparecera em sua varanda.
– Opa, Maria! Me desculpe! – ele disse, com as bochechas avermelhadas.
– Não! – ela disse. – Eu é que peço desculpas; saindo assim... – E ela o olhou, examinando-o. - Ah, não é você que sempre vejo na janela, quando volto do colégio? – perguntou, fitando os grandes olhos castanhos de Gilberto.
– Não! Quer dizer, sim... acho que sim.
– Gilberto – ela disse, já se sentindo bem à vontade –, eu sempre tive a impressão de que você, quando me vê chegando do colégio, tem algo a me dizer. Não estou certa?
– Sim! Quer dizer, não. Bem, eu, é... Olha, eu preciso ir; até depois.
– Então, está bem; até.
E Gilberto saiu com as pernas trôpegas, suando frio e com a esquisita sensação de mil olhos lhe acompanhando, enquanto ele se distanciava de Maria. “Nem ao menos lhe beijei a face ao me despedir”, pensou, recriminando-se pela oportunidade perdida, e por tudo o que poderia ter dito.
– E então? – perguntou Marcelo, dias depois, depois de Gilberto lhe haver contado o ocorrido e o atribulado diálogo que tivera com a “sua musa”. – O que você disse pra ela, hem? Fale, homem! Disse que gostava dela?
– Não, man; eu não disse – respondeu, desenganado do mundo. – Na hora, Marcelo, meu raciocínio deixou de existir; eu não era eu, ou era isso demais. Ah, que merda, cara! Que merda! Eu também não diria nada; não ali, naquela hora tão inoportuna... E se ela me dissesse um “não”, se risse de mim? Ai, dilema dos infernos!
Semanas depois, por boca da Flavinha, irmã do Marcelo, Gilberto ficou sabendo que Maria estava se encontrando com um rapazinho da “rua de trás”, e que o cara era “a banda voou”, “barra pesada”, e que todo mundo da rua já andava “falando mal dela”.
– Sabia que ela gostava de você, Gilberto? – continuou Flavinha. – Mas ela me disse que, ou foi ontem ou anteontem, achava que você não queria nada com ela, e que, pelo que parecia, a ignorava por completo.
E foi assim que Gilberto, por ter medo do abismo, entregou-se a ele. “Mas”, ele pensava, dramático: “como poderia ser diferente?” De fato, o amor, por um ou outro caminho, é esconderijo de infinitos abismos; e, como diziam os antigos: abyssus abyssum invocat. Mas os antigos também diziam que a covardia é o pior dos defeitos morais. E Gandhi garante que “o medo [pode ter] alguma utilidade, mas a covardia, não”. Moral da história: decida-se.