domingo, 31 de janeiro de 2010

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Do tempo e da medicina. Em O livro dos abraços, de 1989, no texto que chama de “O diagnóstico e a terapêutica”, Eduardo Galeano diz que “o amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite após noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes”. Sintomas, de fato, terríveis. Da doença e da sua cura, noutro texto, já tratamos. Mas não custa notar por outra fonte – que não o livro de Ovídeo, somente - que o “estar doente de amor” e o “dizer estupidezes” têm cura. Mas, quem quer, realmente, ser curado de tal “mau”? Aliás, há uma procura constante por esse sofrimento. E é assim porque, senão, o que não ama, o “são”, dá-se por si como morto. E Galeano sabe tanto disso que, no texto imediatamente anterior, o “A noite/1”, dizia: “Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre as minhas pálpebras. Se eu pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.” Ora, o que vem a ser isso senão o diagnóstico da causa da doença amorosa, das fundas olheiras, et cetera? Uma mulher: uma mulher atravessada entre as pálpebras, e também na garganta. O olhar do apaixonado pertence ao seu objeto, só a ele/ela enxerga; sua fala somente quer dizer o seu nome, entre suspiros. Sim, Maria Helena; eu sei que é inevitável que, como quem apanha uma chuva e um resfriado, um dia o amor desabe sobre qualquer um, quando distraído, andando em direção ao carro no estacionamento, pensando na conta de luz que tem de pagar no dia seguinte. “O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó-de-me-ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode ser impedido. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada. O amor é surdo frente ao Verbo divino e ao esconjuro das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo.” Sabe aqueles anúncios da Mãe Diná e da Mãe Delamare, Helena? Aqueles que você recebe na lagoa ou vê colados nos postes da Epitácio, de Bancários, de Mangabeira e por todos os cantos de João Pessoa... Aquilo não serve pra nada! Nem contra e nem a favor. “Traz a pessoa amada rápido, afasta rivais, fracassos...” Tsc! Traz nada! Afasta nada! Do mesmo jeito que o amor é uma doença e as pessoas o procuram, assim também é a cura do amor; mas essa só vem após a frustração de notar que nunca há, nunca mesmo, a “mesma medida” de amar, ou de amar sem medidas. Tal cura, ao menos temporariamente, somente o tempo (que é veneno e antídoto) pode resolver, dissolvendo a memória no rio do ontem, ou alimentando aquele ódio que se acompanha (ou faz seguir-se) do desprezo e do olhar de soslaio, atravessado contra o objeto antes amado, aplaudido... Puro orgulho! Puro orgulho! É o amour de soi falando mais alto do que sempre. Uma amiga me disse, outro dia, repetindo o que uma amiga dela lhe havia dito: “Para curar um amor platônico, somente uma trepada homérica”. Vai saber! Seja como for, tal receita, caseira, não destoa tanto daquela que o Tom Jobim ensina na letra de “Caminhos cruzados”: “Quando um coração que está cansado de sofrer / Encontra um coração também cansado de sofrer / É tempo de se pensar / Que o amor pode de repente chegar.” Mas a melhor receita mesmo, a melhor de todas, é essa do tempo. Ele é, afinal, o melhor remédio. Le temps detruit tout; é o que vemos no final de Irreversible (2002), escrito e dirigido pelo franco-argentino Gaspar Noé. Sim!, ele tanto destrói a tristeza de um amor perdido quanto a alegria de um amor encontrado. “O tempo a tudo destrói.”

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

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Da re-invenção da vida. O amor, que nem na Quadrilha, de Drummond, é uma ciranda, uma reinvenção da vida a possibilitá-la; uma insatisfação que assim se faz pela satisfação feita e, logo, uma procura que jamais tem fim: “João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém. / João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, / Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernades / que não tinha entrado na história”. Lili, embora não amasse ninguém, no poema, casa-se com J. Pinto Fernandes, onde a história termina. Ah!, pobre Fernandes!, pobre Lili! Mas, não são assim todas as histórias de amor? De um jeito ou de outro, se você pensar bem, são. E é por isso que você nunca vai ver/ler: Fulano amava Cicrano, que também o amava, na mesma medida. Não há, nunca, a “mesma medida”.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

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Dos encantos e desencantos. Os apaixonados, coitados, vivendo no mundo da Lua, “acreditam firme e honestamente que o casamento será a realização da sua paixão em toda pureza e fantasia. Mas todo mundo sabe, menos os apaixonados, que na vida real não acontece assim”, diz Rubem Alves em Quarto de badulaques (2003). É, na vida real, isso não acontece mesmo! A fantasia boba do “e os dois viveram felizes para sempre” só existe no mundo do faz de contas, que nem na estória da Cinderela, da Branca de Neve e noutras mais, do mesmo naipe. Em tais estórias, o príncipe do cavalo branco é sempre príncipe, sem nunca tirar a sua roupa de príncipe, sem fazer cocô, sem soltar pum, sem ter coragem de beber cachaça e cuspir no chão, e sem deixar respingo de mijo na tampa da privada... Tudo é perfeitinho e azul e rosa. Um sonho de... sonho. Ah!, quanta ingenuidade a dos apaixonados! Quanta ingenuidade quando pensam que a fantasia louca, o transe da paixão, durará para sempre. Quem também fala sobre isso é Gabriel Lacerda, no hilariante, porém sério, As lições de Godofredo (2000) – sábio profeta da doutrina hedo-cristã. Através de Godofredo, a exemplo do que faz Nietzsche por meio do seu Zaratustra, Lacerda diz que essa história de príncipe e princesa, tal encontrada nas estórias de príncipes e princesas, nada mais é do que uma “técnica sutil [na qual] as pessoas começam, de forma subliminar, a construir um conceito de felicidade no inconsciente. A felicidade, segundo os contos de fadas: obtém-se pelo casamento; está associada à riqueza e ao poder (de um modo geral, somente o príncipe e a princesa são felizes); é um estado que permanece por muitos e muitos anos; e, sobretudo, depois dela, vem o ‘fim’. Essa idéia do que seja a felicidade é evidentemente distorcida. A felicidade dos contos de fadas seria o estado idiotizado da ausência de aspirações, compartilhado por um homem e uma mulher ricos e poderosos, que passam muitos e muitos anos vivendo (e provavelmente engordando) juntos, até que morram de velhice”. É; além dos príncipes e das princesas, existem os plebeus; aquelas pessoas comuns que, devido a uma ordem hierárquico-social e política, e devido à sorte, não podem/puderam ser príncipes, nem princesas. E eles têm que aprender a ser felizes assim mesmo, da forma que podem; pois, como diz o Rubem, “as rotinas do dia-a-dia não combinam com fantasias amorosas. Casados, os apaixonados na casinha pequenina terão agora de lidar com uma porção de coisas banais e irritantes. Por exemplo, o pingo de xixi na tampa da privada...” Um dia ainda hei de botar juízo na cabeça de Maria Helena, e ela ainda há de tocar fogo nas suas Barbies, e afogar na privada todos os seus clones malditos do maldito Ken. Um dia!

domingo, 24 de janeiro de 2010

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Da personificação dialógica. Maria Helena, ontem, me confidenciou, entre o riso e a frustração: “Ai, ai, Pato! Um dia o Amor bateu à minha porta! Mas eu disse que ele fosse embora, pois que me ocupava com os pratos da cozinha, e com o pó do móvel da sala. E ele foi. E eu fiquei a espanar a casa. Guardei os livros espalhados pela escrivaninha na estante: os da Adélia num canto, os do Quintana em outro, os do Alain de Botton, noutro; e assim foi até que tudo ficasse em seu lugar. Horas depois, o susto! Quando dei por mim, limpando os vidros da janela, vi o Amor dormindo na soleira da porta, aproveitando-se do tapete onde se lia: bem-vindo. Ele, sonolento, nem percebeu o meu cuidado em não despertá-lo. Enfiei-me casa adentro, pé ante pé. Hoje, mais disposta a ouvi-lo, sol entrando pela janela e passarinhos cantando, vou até a calçada e estico o olho até fim da rua, pra acima e pra abaixo. Mas o infeliz desistiu da minha casa. E quando passa por mim, nesses acasos do supermercado, da feira, nem me olha, ou finge que não me vê. ‘Danado!’, pensei um dia desses, com vontade de bater com a panela em sua cabeça.” E eu lhe disse, como se muito soubesse da tal matéria: “O amor tem dessas coisas, Helena. Dissimulado, também é inesperado como uma visita ruim, uma dor de barriga. Lição nº 1: se você não se deixar tocar pelo Amor, no inesperado momento, ele fugirá de você, no seu momento esperado. Lição nº 2: o Amor, coisa mais normal desse mundo, é cheio de contratempos, de contradições.” E Helena me disse, com seu olhar de desconfiança: “Eu não acredito em nada disso que tu escreve, Pato; e que diz que vai publicar num livro.”

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

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Dos contrastes e mal-entendidos. “Foi tudo um mal-entendido. Não me leve assim tão a sério!” Não adiantou; não naquela noite. “Carlos”, ela diria depois à sua melhor amiga, “fez de uma vela acesa um incêndio inteiro”; que é um equivalente à tempestade em copo d’água, outro ditado. Dá no mesmo. O amor romântico, como se tivesse personalidade, tem disso também: aproveitador das situações, basta uma palavra para que a casa toda pegue fogo... e nunca há quem o apague. Logo no início do filme Love & sex (2000), escrito e dirigido pela americana Valerie Breiman (em 2001, no Brasil, Love & sex estreou como “Amor aos pedaços”), há uma citação, de fundo, que alerta o espectador: “O amor é um campo minado, basta um passo em falso e nós despedaçamos...” O que vem depois, justifica a citação. Love & sex, convém que se diga, foi baseado numa página pessoal da vida amorosa de Breiman. Camões, no seu mais famoso soneto – que plagia versos do italiano Francesco Petrarca –, define o amor romântico com/como uma somatória de contrastes; como o fogo que, para se alimentar, destrói-se, consumindo a si mesmo e ao seu objeto:

Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?


Ora, que é que o fogo mais sabe fazer? Mas há quem diga que “só o amor constrói”. Sim; pode até ser. Frases feitas têm, às vezes, suas utilidades, suas verdades. Depois de um grande incêndio a terra se renova, ganha nutrientes. Um campo incendiado, outrora morto, húmus adormecido pelos anos da mesmíssima utilização, ganha novo vigor, novas forças. O resultado são os brotos verdinhos que surgem onde antes só haviam velhas árvores enrugadas e encurvadas pela ação do tempo. Mas “tão contrário a si é o mesmo amor”. Pois não é? Ao mesmo tempo em que ele destrói uma coisa, constrói outra – ou será que é o contrário? Certo mesmo é que há de haver, sempre onde houver o amor romântico, incêndios, mal-entendidos. Pois cada um, que acredita amar o Outro - amando-se a si mesmo, porém -, vai confrontá-lo, devorando-o e sendo devorado. Um amor romântico contrário a isso é o mesmo que incesto; o que depõe contra sua própria substância. Paixão: instinto domado, maquiado; amor: fogo em um campo aberto!

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

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Da idéia de “alma gêmea”. Pois não é que, puro acaso – a não ser que isso também não exista –, passeando pela biblioteca da UFPB, abri um velho livro do respeitado filósofo e educador cearense de São Benedito, morto em 1917, Raimundo de Farias Brito: Inéditos e dispersos: notas e variações sobre assuntos diversos (São Paulo: Editorial Grijaldo Ltda, 1966, p. 119). Saltou-me aos olhos o fragmento de uma carta sua, que diz assim:

A lei do casamento é o amor.
Mas que vem a ser o amor?
Não é a inclinação cega. Esta é quase sempre animal. Por isto têm razão os pais quando se opõem ao casamento de seus filhos, se estes se deixam atrair por falsas aparências de amor, e o que não é raro sucede, fascinados por seduções malévolas. E quantos não são realmente iludidos por paixões simuladas, caindo no laço armado pelas mais torpes especulações? O amor, o amor verdadeiro é o conhecimento profundo de uma alma irmã da nossa; de uma alma que nos seduz por sua beleza, que nos encanta por sua bondade. Deve vir não como relâmpago que nos confunde e atordoa; mas como serena manhã que nos acorda de longe, que cresce lentamente, que nos vai sucessivamente iluminando, penetrando-nos, saturando-nos, fibra a fibra, com seu fluído benéfico, e por fim nos inunda com sua claridade. É a contínua experimentação de um coração que nos serve de abrigo. E deve ter seu principal fundamento no conhecimento, como uma fé que a razão esclarece. Por isto precisa de tempo para avigorar-se. Eis o que é o amor. É o princípio da vida.


Excetuando a parte em que se fala das “falsas aparências de amor” e que ele “é o princípio da vida”, preciso discordar de todo o resto. A verdade não mora na autoridade, e nem na beleza da linguagem poética, e nem, muito menos, na boa vontade moral. Essa coisa de “alma gêmea”, já disse noutra parte aqui, é o mesmo que o ponto G na mulher: não passa de lenda. Ademais, é preciso sempre dizer que os pais, salvas as raras, raríssimas exceções, são tão vítimas das “falsas aparências de amor” quanto os seus filhos. E quando eles querem escolher as parceiras ou os parceiros de seus filhos, eles o fazem por/para si mesmos, por amor a si mesmos – pois que os filhos dos seus filhos serão continuidades deles mesmos e, neles, eles continuarão vivendo. Quem os leva a isso é aquele impulso mais primitivo, instintivo, natural. Não é por maldade que proíbem aquele garoto fazer o curso de Filosofia ou de Teatro que ele tanto deseja, obrigando-o a fazer o de Medicina, ou de Direito, ou de Engenharia Civil, ou disso ou daquilo outro que julgam de mais futuro, de mais valia. A proteção dos filhos, seja através do status (poder simbólico) adquirido ou do capital acumulado, é uma garantia visível de que, depois de mortos, eles, os pais, terão assegurado os recursos necessários para que eles, nos filhos, ainda estejam por aqui. Daí as histórias infames sobre as sogras megeras, sobre os sogros sacanas. “Alma gêmea”, mesmo na época de Farias Brito, verdade seja dita, era sinônimo de paridade econômica, equivalência racial. A verdade não mora na autoridade, e nem na beleza da linguagem poética, e nem, menos ainda, na boa vontade moral.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

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Do amor que “fica” e do outro, que não. O final do capítulo 13 da primeira carta de são Paulo Aos coríntios termina com o anúncio daquilo que, na ortodoxia da Igreja Católica, convencionou-se chamar de “três virtudes teologais”, a saber: a fé, a esperança e o amor. Algo muito similar ao que André Comte-Sponville, no A felicidade, desesperadamente (2001), diz em relação ao desejo: “O desejo é a própria essência do homem; mas há três maneiras principais de desejar, três ocorrências principais do desejo: o amor, a vontade, a esperança.” O amor, nos discursos, é sempre primeiro – na sua acepção material ou metafísico-conceitual. O amor teologal (ágape) – que não é, evidentemente, esse mesmo do desejo (que é carnal) que Comte-Sponville fala, é, assim, o maior de todos, segundo o Apóstolo. Ele, após um longo discurso sobre esse amor que “não busca os seus próprios interesses”, termina dizendo que ele, e somente ele, na eternidade, permanecerá. À eternidade de tudo se põe e impõe o discurso final, finalíssimo: “Quando vier o que é perfeito [o amor desesperado], o que é em parte [a esperança do/no amor] será aniquilado”. Daí, na desesperança, habitar o seu valor maior, teleológico, escatológico. Daí também santo Agostinho, nos Solilóquios (escrito em 386), perguntar: Isso implica dizer que não há (não é preciso) nem a fé e nem a esperança no Reino de Deus, na eternidade? A resposta, enfática, é: sim! Ora, no paraíso, com Deus, já não será mais preciso crer nele – pois como alguém pode crer na existência daquilo que já vê, que já tem /ali? O autor da carta Aos hebreus, que Agostinho acreditava tratar-se do apóstolo Paulo, diz que a fé é “a certeza das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem”. Realizada a fé como, no platonismo, realizado o amor, que é dele? É por isso George Bernard Shaw dizia haver “duas catástrofes na existência: a primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos; a segunda é quando são”. Também no capítulo 8 da carta Aos romanos, o Apóstolo pergunta: “Quem espera por algo que já tem?” A presença do objeto da fé retira de si a necessidade da fé. Isso é platonismo, e cristianismo também. Assim, e no mais perfeito que o amor romântico pode chegar, “todo casal feliz é uma recusa do platonismo”, diz Comte-Sponville. E isso é assim porque a esperança que se tinha, atrelada à fé, dizia respeito ao encontro com o seu objeto mesmo: Deus, o seu Reino. E é assim que, tanto a fé quanto a esperança, ao lado de Deus, são virtudes desprovidas de sentido. Não há mais nada a crer, nada a esperar; é a total desesperança. Só há o amor, que nada espera, mas é, somente é sendo, e sendo pela eterna eternidade. No Reino, por fim, não há nada mais que o amor desesperado, completa e absolutamente desesperado. Tomás de Aquino, oito séculos depois, na Suma teológica, retomando o caso das três virtudes teologais, dirá o mesmo que o Hiponense: que no Reino não haverá nem fé e nem esperança, só o amor. O Aquinate, no entanto, vai mais longe. Diz que Cristo, conforme o raciocínio aqui já exposto, “nunca teve fé nem esperança”, uma vez que Ele mesmo sabia-se Deus – e Deus não precisa ter fé em si mesmo, esperar por um encontro consigo mesmo e, assim, tudo o mais que daí decorre. O que ele tinha e que nós devemos imitar, diz Tomás de Aquino, era “uma caridade perfeita”. Mas a fé e a esperança que os cristãos têm não são, evidentemente, a mesma fé e a mesma esperança que acreditam ver e imitar no/do Cristo. Talvez não seja uma heresia dizer que a “fé de Cristo” no Cristo, por assim dizer, assemelhe-se mais àquela fé que têm os que não têm fé e, dela/dEle, não duvidam: os agnósticos; e a “sua esperança” (a “esperança do Cristo” no Cristo), por semelhante modo, seja a dos desesperados; aquela que o francês Nicolas de Chamfort (pseudônimo de Sébastien Roch Nicolas) disse, caso mal entendida/utilizada, “não passar de um charlatão que nos engana sem cessar; e, para mim, a felicidade só começou quando eu a perdi”. E Chamfort continua: “Eu colocaria de bom grado na porta do paraíso o verso que Dante colocou na porta do inferno: Abandonai toda a esperança, vós que entrais!” É o mesmo sentido que Mircea Eliade, numa citação que faz do Samkhya-Sutra, que por sua vez cita o Mahabharata, dá: “Só é feliz quem perdeu toda esperança; porque a esperança é a maior tortura que há, e o desespero, a maior felicidade”. Pierre-Jules Renard, escritor francês, por fim, afirma no seu Journal (1895): “Nada desejo do passado. Já não conto com o futuro. O presente me basta. Sou um homem feliz porque renunciei à felicidade.” Jules Renard, completo desesperado! Quem espera um grande amor, um perfeito amor, sofre na espera; encontro marcado, é feliz na/pela expectativa, mas, por ela, também sofre; tudo realizado, o que há? Desespero. Nesse caso, mais sofrimento, e tédio – porque o amor perfeito, platonismo a parte, não existe... É o pêndulo de Schopenhauer. Do mesmo modo: se o Senhor já conhece tudo na sua onipotência, então Ele não tem nenhuma esperança; nenhuma expectativa, não espera mais nada, e nada é ou pode ser novo para Ele. Sofrer por amor, é possível sem quer a morte; mas, ah!, somente Deus suporta ser Deus.

domingo, 17 de janeiro de 2010

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Das razões de cada um. De todos os modos e por tudo o que as pessoas fazem – e aqui estão suspensos todos os juízos morais que separam o bem do mau, a boa ação da má, et cetera –, elas só desejam serem aceitas, amadas, e só querem, por fim, a felicidade. Por isso, todos são inocentes; por isso, todos são culpados. Quando Renato Russo, na letra de “Eu era um lobisomem juvenil” - do álbum As quatro estações (1989), da Legião Urbana -, diz que “todos têm suas próprias razões...”, não faz mais que repetir a sabedoria universal que, atravessando os milênios, vincula a felicidade não ao prazer, mas à sua busca (os estóicos, o budismo e a ética aristotélica, por exemplos). É a constatação do velho/jovem Dorian Gray, personagem de Wilde. Já quase cansado de uma vida de excessos, Dorian ouve em silêncio o lorde Henry, que diz: “A paixão romântica vive através da repetição, e esta transforma o desejo em arte. Além disso, quando se ama, é como se fosse a primeira e única vez. A diferença de objeto não altera a unidade da paixão. Pode apenas intensificá-la. Ao longo de nossa vida, não costumamos ter senão uma grande experiência. O segredo da vida consiste em repeti-la o maior número de vezes possível.” “Mesmo que essa experiência nos tenha ferido, Harry?” Pergunta a duquesa. “Principalmente quando ela nos feriu”, é a resposta dele. Daí a duquesa se volta para Dorian, como se procurasse um parceiro que discordasse de Harry, aliando-se a ela. Mas ela não o encontra em Dorian, que lhe diz: “Estou sempre de acordo com Harry, duquesa.” “Mesmo quando ele está errado?” “Harry nunca está errado, duquesa.” “E consegue ser feliz com a sua filosofia?” E é aqui que chegamos onde queremos: a resposta desencantada de Dorian, que é o retrato da alma do mundo, mas em seu modo negativo: “Nunca busquei a felicidade. Quem no mundo deseja a felicidade? Busquei apenas o prazer”. Deveras. As razões comuns do amor/paixão romântico/romântica são como a criança que se queima no fogo, mas não consegue evitar de continuar gostando dele: “That a burnt child loves the fire”, diz lorde Harry, alertando sua prima contra os terríveis encantos do sr. Gray. Mas já era muito tarde. Fogo! A sensação é tudo! O equilíbrio, um ideal. O amor romântico, duas palavras de éter e gim. A paixão romântica, uma fatalidade... e fogo!

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

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Das riquezas efêmeras. Umas citações. “Onde estiver o teu tesouro, ali estará também o teu coração” (Jesus, o Cristo). Nessa, primeira e fundamental, o Cristo tem o coração no céu, na cidade celeste, o Reino de Deus. E daí, a seguinte: “Pois aquilo que alguém ama, isso ele, com certeza, perseguirá, disso ele gostará de falar, ali estão todos os seus pensamentos e o seu coração. Por isso, também, Sto. Agostinho diz: Deus meus amor meus, aquilo que amo, é o meu Deus” (Matinho Lutero). Aqui, agora, o monge alemão e cabeça da Reforma protestante do século XVI, na sua hermenêutica sobre a fala do Cristo e o texto do santo africano, pensa em dois amores: no do céu que desce à terra e, nela, faz promessas de outros: amores bons, amores possíveis que espelham-se naquele lá, Perfeito. Mas aí vem o Mario Quintana e, não sendo um Cristo ou um monge, mas poeta – e acima de tudo, ao menos aí, realista –, avacalha com as transcendências que mentem dizendo ser possível ir além do fenômeno, haver mais que o fenômeno. O amor, diz ele, não é mais que um folhetim, um romance barato impresso em papel jornal, vendido em bancas de revistas; ou um poema de adeus, depois do encontro, depois do sexo, depois do êxtase: “Eu te amo tanto que / sou capaz de nos atirarmos os dois na cratera do Fuji-Yama! / Mas, aqui, / o amor é um barato romance pornô esquecido em cima da cama / depois que cada um partiu – sem saionara nem nada - / por uma porta diferente.” E não me sai da cabeça uma coisa que li, do danado do Antonio Nóbrega, pernambucano brincalhão: “Menina, vou te ensinar / como é que se namora: / põe a alma num sorriso / e o sorriso põe pra fora.” O namorar, aí, leve, leve, muito leve, não diz nada além da alegria do já-agora-tudo-junto, sem promessas de amor – amor nenhum; muito menos um que seja eterno, que pense em eternidades. O amor romântico, como seus avôs conheciam, virou artigo comercial, depois virou a cabeça de seus pais, e agora está virando brincadeira: “O anel que tu me deste era vidro...” Antes, anel dado, parecia bom; é, parecia... mas era vidro, só: bijuteria. Amor barato; alegria fácil, igual bolo em festa de criança. E depois do bolo, hum? Felicidade é uma palavra muito comprida; felicidade amorosa, mais comprida ainda: “O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou”. “Tristeza” rima com “certeza”, certeza! E acabou-se o que era doce.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

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Dos vícios. Você, certamente, já ouviu falar do Grupo MADA (Mulheres que Amam Demais). O MADA, conforme consta no site do Grupo, “é um programa de recuperação para mulheres que têm como objetivo primordial se recuperar da dependência de relacionamentos destrutivos, aprendendo a se relacionar de forma saudável consigo mesma e com os outros”. Aí também se descobre que “o Grupo foi criado com base no livro Mulheres que Amam Demais, de Robin Norwood, publicado em 1985 (Editora ARX). A psicóloga e terapeuta familiar Robin Norwood escreveu o livro baseado em sua própria experiência e na experiência de centenas de mulheres envolvidas com dependentes químicos. Ela percebeu um padrão de comportamento comum em todas elas e as chamou de ‘mulheres que amam demais’. No final do livro, a autora sugere que se abram grupos que tratem da doença de amar e sofrer demais. No Brasil, o primeiro Grupo foi aberto em São Paulo, por uma mulher casada com um dependente químico que se identificou com a proposta do livro”. A primeira reunião desse Grupo foi realizada em 16 de abril de 1994. No Rio de Janeiro, o primeiro Grupo surgiu em 06 de julho de 1999. Depois que o Grupo foi divulgado na novela Mulheres apaixonadas (17 de fevereiro a 10 de outubro de 2003), da Rede Globo, através da alucinada Heloísa, personagem interpretada por Giulia Gam, os Grupos proliferaram país afora. As mulheres que vão às reuniões do Grupo são, por assim dizer, viciadas em amar – à semelhança dos alcoólatras que vão ao AA. O tratamento que buscam, além do apoio de outros que sofrem do “mesmo mal”, em tese, tem por finalidade o aprender a “lidar com isso”... mesmo que seja “só por hoje”. E assim se vai vivendo e, também, combatendo o vício. Mas, aí, quando observamos “Os 12 passos do MADA”, que são facilmente encontráveis em livros e sites da internet, vemos que a ONG não oferece, como Ovídio com o seu Remedia amores (Os remédios para o amor), uma cura para o amor, no infinitivo, ou para o amar, em seus excessos de transitividade, apenas transferem o sentimento que, doentio, estava lançado na horizontal, para um outro nível, o vertical: “1. Admitimos que éramos impotentes perante os relacionamentos e que tínhamos perdido o controle de nossas vidas; 2. Passamos acreditar que um poder superior a nós mesmas poderia nos devolver a sanidade; 3. Decidimos entregar nossas vidas aos cuidados de Deus, na maneira como O concebíamos; 4. Fizemos um minucioso e destemido inventário moral de nós mesmas; 5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmas e outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas; 6. Nos dispusemos inteiramente a deixar que Deus removesse os defeitos do nosso caráter; 7. Humildemente, pedimos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições; 8. Fizemos uma lista de todas as pessoas que prejudicamos e nos dispusemos a reparar os erros que cometemos com elas; 9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-lo significasse prejudicá-las ou a outrem; 10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos erradas, nós o admitíamos prontamente; 11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade e forças para realizar essa vontade; 12. Graças a esses passos, experimentamos um despertar espiritual e procuramos transmitir essa mensagem a outras mulheres, dependentes de pessoas. Procuramos praticar esses princípios em todas as nossas atividades. Nada, absolutamente nada, acontece por equívoco no mundo de Deus... A não ser que eu aceite a vida totalmente do jeito que ela é, não poderei ser feliz. Preciso me concentrar menos no que é preciso mudar no mundo e mais no que eu preciso mudar em mim e nas minhas atitudes.” Em resumo: aquelas que eram loucas por um amor terreno que não podiam ter, mas que podiam vê-lo, agora podem ser loucas por um amor que acreditam poderem ter, mesmo que nunca o vejam. Resumo do resumo: pessoas não largam vícios, elas os substituem.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

11
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Das máscaras. O americano Stanley Kubrick foi reconhecido como um diretor excelente quando, em 1968, adaptou o livro de Arthur C. Clarke (2001: a space odissey), com quem também escreveu o roteiro do filme, homônimo, levando-o às telas do mundo inteiro. 2001 é “ainda é o maior de todos os filmes de ficção-científica”, diz Owen Gleiberman, no Entertainment Weekly. 2001 também é, de acordo com o respeitado American Film Institute, o melhor filme sobre ficção científica já feito. Steven Spielberg, por fim, chegou a dizer que 2001 foi o “Big Bang” das produções do gênero. Três anos depois, em 1971, Kubrick levou às telas o perturbador A laranja mecânica, que é a adaptação de um outro livro, do inglês Anthony Burgess (A clockwork orange), lançado em 1962. De Kubrick, você também já deve ter visto – e caso não tenha, veja logo -, por sinal o seu último filme feito em vida (Kubrick morreu de ataque cardíaco no dia 07 de março de 1999, aos 70 anos), De olhos bem fechados, que é mais fácil de digerir do que o livro do austríaco Arthur Schnitzler, Traumnovelle, de 1926, que foi de onde o filme foi baseado. Adaptação genial, Kubrick, seguindo os passos de Schnitzler, explora e desvela os mecanismos da cultura que é, pelo desejo de eterna felicidade e do sexo limpo, estruturada sobre a farsa da civilização, da civilidade. E não digo aqui que essa civilização, ou essa civilidade, sejam ruins. Falo tão somente das estruturas fundantes que, até onde a fina observação pode nos levar, apresentam-se maquiadas, debaixo de máscaras, como se a imposição: “assim é melhor”, realmente fosse. Quem garante que sim? Quem garante que não? O meu trabalho é o da averiguação desapaixonada, sem fins práticos que não o saber e, saber sabido, a compreensão estrutural/funcional da cultura - da do Ocidente, em particular. Não há, aqui, qualquer santo, nem qualquer demônio. E não há dúvida de que, tal ciência, mais do que resultados práticos valorativos, oferece liberdade – como o dito evangélico: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Pois não é isso que Schnitzler/Kubrick quer dizer, afinal, com o seu De olhos bem fechados? Desde os atores sociais até os indivíduos isolados, todos estão, de certo modo, num grande baile de máscaras. Nesssa estrutura montada através dos anos e dos poderes, quebrar certas regras constitui-se, para que a civilidade se mantenha em statu quo, crime. Códigos ditam condutas que, caso a coerção não baste, a punição seja aceita como legal, legítima. Para ser aceito no grupo é preciso confessar a fé no Estado, nas instituições seculares ou religiosas, no poder estabelecido. Do mesmo modo, as sociedades (políticas), como as “sociedades secretas” ou as “religiões de mistério”, defendem certas leis e certas regras que devem ser aceitas/recebidas como herança ético/moral comum (mesmo que a orígem de algumas ações práticas sejam obscuras em seus fundamentos), como bilhete de ingresso no baile: se é um baile de máscaras, mister é que todos estejam com os rostos cobertos. O amor e suas conseqüências (casamentos, filhos, estrutura social) foi, e ainda é para muitos grupos, uma dessas leis – “lei divina”, “instituição sagrada”, apregoam os ministros religiosos com voz impostada, que é para dar mais status à norma. O grande “segredo” de tudo isso é que não há segredo algum, como dizia Fernando Pessoa, enquanto Alberto Caeiro, falando sobre o mistério das coisas (“O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! / O único mistério é haver quem pense no mistério. / Quem está ao sol e fecha os olhos, / Começa a não saber o que é o sol / E a pensar muitas cousas cheias de calor.”) – não digo isso como se eu, indivíduo isolado, também não usasse máscaras; como se, aqui, já não me repetisse. Certo é que, na primitividade, o homem amava mais puramente, caçando o objeto do seu desejo (seu instinto natural o levava a isso), desconhecendo as “leis da conquista” amorosa, desenvolvidas ao longo dos séculos pela civilidade, ou por sua noção: o dar flores, chocolates, essas coisas... Prevalecia, acima de tudo, o instinto de sobrevivência e, com ele, a cortesia mínima, natural, mas eficiente. Tal cortesia, mínima, como a que é encontrada nos animais sem cérebro, também estava nele – mas era menos maquiada, menos documentada em romances, filmes, novelas, poemas, canções, et cetera. E por causa dela, ele também se exibia – como faz o pavão com a sua cauda –, também matava, também morria. A razoabilidade fez toda a diferença. Com o avanço progressivo das civilizações, aperfeiçoaram-se as máscaras e os mecanismos de conquista; inventou-se, por fim, o amor romântico, e os casamentos por amor. E o lado natural do amor puro, primal, foi domado e mitificado sob o signo do mistério, do romantismo, da civilidade (sexo, só na alcova), da perfeição metafísica (sexo, só depois do enlace matrimonial, na presença de um religioso e de testemunhas)... O tempo mudou, e com ele certas sanções morais; mas a mitificação do amor romântico, mesmo aí, não teve alterações tão substanciosas. Acontece que o amor ideal é um produto conceitual e, assim sendo, serve bem ao Mercado: para o comércio de livros, de roupas, de filmes, de canções, et cetera - disso já falei noutra parte. Todavia, uma questão central: o que seria da arte em geral sem essa mitificação? Ora, a arte, toda ela, está fundamentada sob o mito do amor romântico como sublimidade, sublimação do fenômeno ao ideal/metafísico ou como escape desse, como enfrentamento ao trágico puramente mundano. Na primeira acepção, a com-fusão e a co-fusão toda se faz pela adequação do amor natural ao amor sublime, como se fossem uma e a mesma coisa, ou como se aquele fosse dependente deste, devendo-lhe reciprocidades, portanto. O amor erótico, menor (imperfeito, acidental), assim, derivaria do ágape (perfeito, puro), maior. Acontece que, tanto esse quanto aquele, diferentemente do modo como a cultura, mais comumente, os coloca, estão a serviço do amour de soi: o único que é realmente experienciado em toda a sua plenitude, o único que é sobre tudo e sobre todos, embora jogado debaixo do tapete da cultura, da civilidade. É por isso que todos os que não atentam para esses mecanismos do desejo estão, como diriam Schnitzler e Kubrick, de olhos bem fechados.

domingo, 10 de janeiro de 2010

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Das irrelevâncias e dos best-sellers. Quase morro de rir lendo Amor, primeiro livro do ítalo-americano e cultuado Leo Buscaglia, publicado em 1972. Buscaglia foi professor na University of Southern California, nos EUA. Aí, ministrou por algum tempo uma disciplina que chamou de “Amor, 1 A”: “Ao que eu saiba,” ele dizia, “somos a única escola do país, e talvez no mundo, que tem uma disciplina chamada ‘Amor, 1 A’, e eu o único professor bastante louco a ponto de ensiná-la.” De fato, e quanto à loucura auto-proclamada, há quem diga que Buscaglia foi inovador em alguns aspectos – como, por exemplo, sua maneira de exaltar o momento que se vive, de modo intenso, expressando o amor que se sente por alguém, mas sem criar expectativas. Algo muito semelhante àquilo que, no final de Bilhete, poema do Mario Quintana - no livro Esconderijos do tempo, de 1980 -, lemos: “Se me queres, / enfim, / tem de ser bem devagarinho, Amada, / que a vida é breve, e o amor mais breve ainda.” Depois da publicação e do sucesso comercial de Amor, de Buscaglia, seguiu-se uma onda de obras de “auto-ajuda”. Diversos autores em diversos países, todos copiavam e imitavam o estilo do precursor. Esse, por alguma estranha e irônica coincidência, aos 74 anos, no dia 12 de junho de 1998 - Dia dos Namorados, no Brasil -, em sua casa no lago Tahoe, California, foi vitimado por ataque cardíaco enquanto dormia. A tradição de “auto-ajuda” que a obra de Buscaglia representou como pontapé, não foi – e nem é – mais que “mais do mesmo”; e mesmo a tal “inovação” não é mais do que o que já se disse, mas dito de um outro modo. A falácia continua aí, lá, disfarçada nas palavras bem postas, uma após outra, num texto costurado para encantar os olhos, inibir o sentido crítico e manter o leitor, bêbado, ainda mais bêbado. Sim, do Amor de Buscaglia e dos tantos outros derivados de seus imitadores, ávidos por um sucesso editorial, é para rir mesmo, e olhar de soslaio, atravessado.
Das muitas e hilariantes piadas encontradas na obra, menciono uma: “Assim como um homem aprende a ser humano, também aprende a sentir como um ser humano, a amar como um ser humano”. Puerilidade das mais falaciosas! Não se pode relacionar a questão do amor aparte da humanização (sociabilização) dos humanos. Tais sentimentos são, naturalmente, apanágios dessa/nessa formação do fenômeno humano no ser humano. Uma coisa é parte da outra - e não exatamente nesta ordem -, não como o todo ou a parte, separados, mas tudo ao mesmo tempo. Amar não é algo que se aprenda; do mesmo modo é o viver, o ser humano. Para amar, basta existir e (re)conhecer a existência do Outro. Tal conhecimento é o atestando natural/racional de si como coisa que é, pensante (res cogitans), num espaço material (res extensa) onde me torno possível. Eu existo – Agostinho de Hipona e René Descartes concordariam comigo -, eu amo. Acontece que, não havendo outro amor – deixando de fora, aqui, o [ou a idéia de] “Amor perfeito” (acepção platônica que Buscaglia defende e acredita como possível), do qual só podemos falar de uma perspectiva ontológica, sempre a priori –, o amor que há é tão natural no ser humano quanto a sua noção de andar para a frente, comer com a boca, respirar com o nariz, ver com os olhos. A analogia dos sentidos é legítima. Não se aprende a fazer nada disso, pois que, isso, na estrutura psico-biológica dos indivíduos, faz parte do pacote chamado “existência”, entregue a cada um, a cada um que é, neste mundo, lançado, jogado aí com o Outro - espelho seu. No limite da inautenticidade, cada um é esse Outro e, assim, si mesmo. É nesse sentido que Heidegger, por exemplo, escreve a palavra ek-sistência, acentuando sua força fenomenológico-transcendental. Ser, estar no mundo, é, por assim dizer, encontrar-se investido de tudo o que caracteriza o que se é. Aprender regras gerais de convívio, ou regras morais, éticas, faz parte de uma estrutura já montada, mais pela cultura do que por qualquer outra coisa. Aprender a andar para frente, como o aprender a amar, convenhamos, são lições desnecessárias. Mais que aprender a amar, há que se aprender sobre o amor. Best-sellers, desconfie deles!

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

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Das perguntas essenciais sobre o amor e sobre o sofrimento por amor. Na filosofia, ter uma boa questão é melhor do que ter uma resposta insatisfatória. “Por que nós, seres racionais, padecemos, vez por outra, dessas inquietações da alma? Por que sofremos por aquilo que era a promessa de felicidade infinita? Por que continuamos a ter tais sentimentos quando já sabemos que promessa de prazer trará apenas a certeza da dor? Por que entre a dor e o nada, preferimos a dor?” Essas são algumas perguntas que Maria de Lourdes Alves Borges, em seu livrinho Amor, de 2004, propõe como eixo temático para o que vem depois, a saber: suas considerações sobre o amor, sobre os amores e o sofrer o/por amor. São perguntas superficiais, embora pareçam requerer, nas respostas, alguma profundidade. São perguntas, por fim, e ainda – e infelizmente (porque isso faz o livro ser só mais do mesmo, mais um dentre tantos, repetição de superfície) –, fincadas no Romantismo, no Idealismo que vê o mundo e o amor romântico como uma “coisa misteriosa”, mágica, encantada, metafísica. Talvez não seja pedantismo dizer que tais respostas, que me parecem bem óbvias e evidentes, já foram dadas aqui, de muitas e variadas maneiras. E talvez possamos resumir tudo o que Maria de Lourdes coloca como “questão”, numa outra citação, óbvia, porém não tão superficial. É do filósofo francês Claude Adrien Helvétius: “O amor é a base, a essência e a finalidade da existência”. De fato! Imagine se houvesse uma greve do Amor, como aquela da Morte no livro de Saramago, As intermitências da morte, de 2005. Imagine se, ao invés do trecho: “No dia seguinte ninguém morreu”, constasse: “No dia seguinte ninguém amou”. O que viria depois caberia perfeitamente, num ou noutro sentido: “O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme”. Sem “amor”, seria a extinção das espécies, o suicídio coletivo – o fim de todos os problemas dos homens, incluindo os próprios. Seria também, assim, o paraíso conquistado mediante um inferno temporário, evidentemente. O que, sendo bom, não tem seu preço? Deveríamos, penso, dar mais atenção à máxima do francês de Aix-en-Provence, Vauvenargues: “A mais falsa das filosofias é aquela que, a pretexto de libertar os homens das dificuldades das paixões, lhes aconselha o ócio, o descuido e o auto-esquecimento.” Não é o que fazem os estóicos? Não é o que o Idealismo romântico tão cultuado por Maria de Lourdes também ensina? O amour de soi é aviltado pela moral cristã como se fosse uma “doença do espírito”, uma “deficiência moral”. Mas, a isso também Vauvenargues afirma, contrariamente: “Não existe contradição na natureza.” E diz mais, questionando: “Será contrário à razão ou à justiça amar a si mesmo? E por que desejamos que o amor-próprio tenha de ser sempre um vício? Se existe um amor por nós mesmos naturalmente solícito e compassivo, e outro amor-próprio sem humildade, sem equidade, sem limites, sem razão, será preciso confundi-los?” Nós queremos viver e, como atores no grande teatro do mundo, queremos cumprir o papel que nos deram, sem mostrar, porém, as razões das “nossas” falas. Não pensamos comumente que esta vida, este querer viver de acordo seja uma imposição, mais que da cultura, da Vontade. Sim! Mesmo o suicida não faz mais do que cumprir a função do suicida, demonstrando aí a sua grande vontade de vida, de vida total. Vivendo-se, ama-se; matando-se, ama-se muito mais. Para amar, basta viver; estamos condenados a isso. O amour de soi, contra o qual lutamos – ou, melhor, pensamos lutar – para cumprir nosso papel de bons cristãos, por fim, está mais vivo e presente no que ama do que naquele que, distraído do mundo, dá-se indiferente, como quem dorme. O bom cristão, por esse viés, é o mais egoísta dos indivíduos: por tanto amar ao outro, mostra o tanto que a si mesmo se ama. “Ninguém a outro ama, senão que ama / O que de si há nele, ou que é suposto”, diz Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa. A mais perfeita religião, hoje, é, certamente, aquela que cultua, sobre todos os deuses, o Respeito. Da teologia desse (ou sobre esse) novíssimo deus, livros e teses já foram e estão sendo escritas. A título de resumo, vale outro poema de Pessoa, agora como Alberto Caeiro. Trata-se de um trecho de O guardador de rebanhos (escrito entre 1911 e 1912): “Que me importam a mim os homens / E o que sofrem ou supõem que sofrem? / Sejam como eu – não sofrerão. / Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros, / Quer para fazer o bem, quer para fazer o mal. / A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos. / Querer mais é perder isto, e ser infeliz.” O meu “cuidado” com o outro, é, enfim, o meu cuidado comigo mesmo. No final, tudo volta para mim, porque, daí (ou daqui), nunca saiu. Por que, então, falamos tão mal desse egoísmo inevitável? Por que, por fim, não assumimos o amour de soi como verbo de todas as nossas ações? Maria de Lourdes fala de modo romântico; Helvétius também. Os dois não ousam romper o fio que separa o ideal do concreto, e pensam no Outro como objeto a ser amado e, mediante esse/o amor/amar, a possibilidade transcendente da felicidade, e da libertação dessa deficiência ético-moral chamada amour de soi. Mantêm-se assim na tradição disciplinar que transubstancia a Vontade, elevando-a (ou querendo elevá-la) ao nível de reflexo de alguma “coisa” divina, supralunar, fonte de tal beatitude. Nos amores mundanos, o engano (para Maria de Lourdes, Helvétius e outros) é dor; já o saber (que conduz à verdade que é, por sua vez, reflexo do verdadeiro amor, extramundano), a entrega e a confiança, são vias de uma “alegria” e uma “libertação”. Não são! A verdade é que a Verdade também é dor, prisão, sofrimento – mesmo que nunca saibamos o que seja isso mesmo: a Verdade. Que se conclui? (como se fosse preciso concluir...): que o sofrimento, como o amor (ou com o amor) e a ignorância, é uma dádiva universal.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

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Das armadilhas. Adoro uma citação da primeira HQ (História em Quadrinhos) do Batman, escrita e desenhada pelo seu criador, Bob Kane, em 1940. Perseguindo o gênio maligno, professor Hugo Strange, que criara monstros horrendos e enormes que atormentavam a cidade, Batman, prestes a entrar em um estranho galpão, afirma: “Que diabo! Parece uma armadilha, mas eu tenho que entrar”. Entra, e imensas mãos o prendem. Será este o fim do homem-morcego? Leia a história você mesmo e veja. Adoro ainda mais, e no mesmo sentido, uma citação do poeta pantaneiro, Manoel de Barros. A citação está no “Caderno do andarilho”, em Concerto a céu aberto para solos de ave, livro de 1991: “Lagartixas piscam para as moscas antes de havê-las”. Das citações, o sentido é que o mesmo pode ser dito em relação ao amor, às coisas do amor, aos amantes, suas presas. Antes de conquistar a sua vítima, o conquistador, mesmo que não saiba, houve-se conquistado. Ai de ti, Don Juan! Para o amor romântico, mesmo com tudo o que soubermos sobre ele – desmistificando-o –, e mesmo com todas as precauções que tomarmos, sempre teremos aquela fala do Batman, inevitável: “Que diabo! Parece uma armadilha, mas eu tenho que entrar”.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

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Dos exílios. “Exílio” é uma palavra feia. Exílio também pode ser um sinônimo para “banimento”. Banimento é uma “pena imposta a alguém para deixar o país e não retornar a ele enquanto durar a pena”, diz o Houaiss. Durante o regime militar, no Brasil, muitos foram os artistas que, temendo as prisões e as torturas, fugiram para outros países, auto exilando-se, expatriando-se. Nós, mundos que somos, podemos também, sob certas circunstâncias, viver em um retiro psicológico equivalente a um banimento, um exílio auto-imposto. Também nas coisas do amor é possível, pela presença da ausência do objeto amado, haver uma sensação de estranhamento perante o mundo, como se, embora vivendo nele, nele não estivéssemos – porque, no Outro, nos encontrássemos perdidos. É quando o nosso Eu psicológico, de modo retroativo, epistêmico, faz com que o pensamento se volte sobre si mesmo, que pensemos sobre o amor que, nosso e por nós mesmos, está lançado sobre o Outro, como seta e alvo. Daí que o amor, para ser vivido, mesmo o amour de soi, precisa ser vivido a dois, pois que, senão, não há. Geraldo Carneiro, poeta mineiro, no poema Sobre o amor, que dedica à Tônia Carrero, diz algo idêntico: “Amor é coisa que se faz a dois, / segredo consagrado por um Deus / à sua escolha, a árvore ou a folha / que se despede do país dos ventos / e que acomete esses seus pensamentos / só seus, só meus, só vossos, sempre nossos. / [...] / pois eu, se não existisse o tal amor, / viveria exilado de mim mesmo”. Que é esse exílio senão, mais que no Outro, viver em si somente? O amor de exílio, de Geraldo Carneiro, é o mesmo amor de perdição que encontramos no romance homônimo de Camilo Castelo Branco, ou nas Confissões de Santo Agostinho - com as devidas particularidades, evidentemente. Onde há amor, há o Outro; onde há o Outro, há a perdição, e o inferno. Tal inferno - que se aproxima muito daquilo que é dito por Sartre no texto de Entre quatro paredes, de 1944, feito para o teatro; ou da consciência perturbada de Ivan Ilitch, conforme Tolstói o retrata em A morte de Ivan Ilitch, de 1886 -, é a consciência pessoal (o pleonasmo é necessário) de si mesmo, de si mesmo em relação a si como possibilidade e transcendência, e em relação ao Outro como limite de si, e negação impositiva: memória. Eu sei, eu sei: parece uma conclusão absurda; mas, se vamos até o fundo de qualquer conclusão (no sentido teleológico, finalíssimo), o que não parece? Enganam-se aqueles que, no amor (ou através dele), desejam encontrar um caminho para fugirem de si mesmos, pelo Outro, pelo serviço ao Outro. Todo mundo é uma ilha.

sábado, 2 de janeiro de 2010

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Do egoísmo altruísta. ALFREDO: Meu Deus! Meus Deus! Como faço pra terminar o meu namoro com a Alice? Tenho tanto medo de fazê-la sofrer e...
RAZÃO: Ah, Alfredo; cala essa tua boca! Tu tem medo é de tu mesmo sofrer com o sofrimento dela. Tsc, tsc, tsc... (A razão, quando berra em nosso interior, não considera regras gramaticais, nem modelos estilísticos, nem nada).
ALFREDO: Eita! Bem pensado! Parece que tenho que confessar que é isso mesmo.
RAZÃO: Claro que é, sujeito! Tu acha que ela gostaria de saber que tu tá com ela hoje só porque não sabe como pôr fim a isso por... “por pena”? Gostaria? E, sendo pena, pena de quem, hum?
ALFREDO: Caralho! Gostaria nada! Como eu também não gostaria. Isso é até... isso é até...
RAZÃO: Sacanagem, Alfredo! A palavra certa é sacanagem, sacanagem sua!
ALFREDO: Mas, e se no lugar de “sacanagem” a gente pensasse num altruísmo sentimen...

Nessa hora Alice ligou para Alfredo, e eles foram ver um filme do Almodovar que ela havia comprado nas Lojas Americanas, por R$ 12,90; e ficou tudo por isso mesmo.
Quem me contou a história foi o próprio Alfredo, mergulhado em mil interrogações, me pedindo conselhos. E eu só soube dizer: “O que tu quer que eu diga, meu? Ouça a voz da sua razão”. E me lembrei das passagens finais do Diário de um sedutor, quando Kierkegaard, como Johannes, faz suas últimas considerações sobre o fim do seu noivado com Cordélia: “Amei-a, mas de agora em diante não pode já interessar-me. Se eu fosse um deus faria aquilo que Netuno fez por uma ninfa, transformá-la-ia em homem”; e da pergunta que, inspirado em Santo Agostinho, fizera antes: “Que ama o amor? o infinito. - Que teme o amor? limites.” Se o amor é primavera, o seu limite é o inverno. Mas só pensamos, depois das flores, no verão em suas múltiplas cores: “A primavera”, diz Kierkegaard, “é sem dúvida a mais bela época do ano para se ficar apaixonado - e o fim do verão a mais bela para se alcançar a finalidade dos desejos”. Alcançar a finalidade dos desejos... É o sexo; o sexo e sua repetição. Depois disso - disso Alfredo era modelo e exemplo - é o tédio. Inverno da alma.