terça-feira, 22 de junho de 2010

Termina aqui O grande livro do amor

Você que gosta do que escrevo, se desejar, pode me acompanhar agora em um novo blog, o Arte, amor, liberdade... quem precisa disso? Aqui, ó: http://www.arteamorliberdade.blogspot.com/

Abraço a todos e todas, e nos vemos por lá.


sexta-feira, 4 de junho de 2010

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Da substância personalíssima. De amor e de guerras por amor: disso é feita a história humana, e os livros, e os filmes e os discos... tudo o mais é mera adição.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

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De uma carta à Helena, sobre o sentimento oceânico. Em 25 de abril de 2008, depois de ler o manuscrito de O grande livro do amor, que pediu para ser a primeira revisora, Helena me enviou uma carta enorme – é: ela diz que cartas são coisas pessoais, mais íntimas e, logo, respeitosas. Na carta, me acusa de frieza sentimental, e pergunta se não sou “assim tão amargo por alguma frustração amorosa” ou por um “coitadismo viciante da literatura dramática”. Na minha resposta, também uma carta, depois de algumas saudações pessoais e perguntas sobre as crianças e sobre o Pedro, grande amigo meu e marido dela, respondo assim, como segue:

Você, Helena, certamente já foi surpreendida por um “sentimento oceânico”; pode procurar aí no seu caderno de memórias. Sentimento oceânico é o modo como Freud fala do sentimento religioso que percebe na carta que um amigo seu, religioso, lhe envia. “Trata-se de um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras – ‘oceânico’, por assim dizer”, ele diz. E mais adiante: “Não consigo descobrir em mim esse sentimento ‘oceânico’. Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos”.

Primeiro que tudo, Helena, é importante deixar claro que, em matéria de sentimento oceânico, ficam de fora do seu campo semântico as precisas definiçõespois que cada indivíduo tem a sua própria maneira de falar ou expressar o seu lado, digamos, religioso. E religião é coisa pessoal, muito, muito pessoal. Depois, é importante assegurar que, em matéria de , de coisas espirituais, fiquem de fora também as justificativas empírico-científicas, ditas a posteriori. A não precisa da razãosenão vira contra-senso, ciência. A fé é sempre a priori, coisa ligada ao paradoxo e ao absurdo. Por isso que, como você pode ver, e como dizia Freud, “não é fácil lidar com sentimentos”, e principalmente esse que ele chama de “oceânico” – com o claro sentido de profundidade, de coisa misteriosa, desconhecida. Eu, tomando Kierkegaard por base, e também algumas experiências bem desastrosas (embora não seja aconselhável construir qualquer teoria com base em experiências individuais), além de um tanto assim de leituras e outro tanto mais assim ainda de observações, digo que, sim: é bem difícil lidar com “sentimentos”. O sentimento da (o êxtase, a contemplação, a devoção reverente, et cetera) sempre esbarra no campo – se é que posso utilizar tal terminologia – do absurdo, do paradoxo; pois é essência sua, inalienável. E daí ser, eo ipso, . Não pode haver, por exemplo, uma epistemologia da .

Está bem, querida; serei mais objetivo.

Como você deve ter percebido, falo aqui de grandezas, de perspectivas supralunares... essas coisas que, conforme o Idealismo, não se corrompem, como tudo o que vemos no mundo, debaixo do sol. Acontece que, conforme os idealistas românticos, se isso vale para as coisas da , das religiões, do êxtase místico, vale também para as coisas do desejo amoroso que é, para eles, o maior dos sentimentos. Mas tal dependência advém de uma falsa compreensão. Acontece que a Vontade, o “desejo amoroso”, não é exatamente um sentimento, mas uma condição físico-biológica, necessária à vida e sua continuidade. O instinto sexual é tão comum quanto o desejo de comer, de beber, de dormir, de respirar. O que ocorre é que, a este primeiro, fantasiamos como se ele fosse um “sentimento oceânico”, profundo, que tem fundamento na “coisa” divina. Não, não é; não tem. A cortesia, os mecanismos de conquista e todas as artes que ilustram o romantismo, nada mais são que máscaras que velam o instinto sexual, a geração de filhos, a continuidade da espécie.

Se você leu O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer (e se não o fez, deveria fazê-lo apressadamente), deve ter percebido que ele descreve essesentimento amorosocomodesejo de preservação”, “instinto sexual”. Diz que, basta que os olhos se encontrem (como quando você olha para o Pedro), para que haja o convite ao coito e, através desse, a continuidade dos dois no outro que vem, que pode vir. Amor ou paixão, como se diga, são mecanismos naturais que ativam o natural instinto de preservação, de perpetuidade. Amor: Vontade (Schopenhauer), pulsão (Freud). O mistério que envolve o sentir-se amando, ao que tem fé, leva-o a imaginar uma fonte de amor, mais perfeito que esse que ele (o homem da fé) tem, nunca perfeito, nunca absoluto. Aí está, na raiz, a raiz de todo o sentimento: o amoroso ou o religioso: a dúvida, o medo, o desconhecido, o mistério, e por trás de tudo, a Vontade.

Sei que você vai me recriminar, mas minha razão insiste em afirmar que Schopenhauer tem razão. Também sei que isso retira a “magia” de um monte de coisas bonitas; sei, por fim, que isso pode “coisificar” como natural o magnetismo romântico da Lua, o brilho cálido das estrelas, a fragilidade das flores e a cadência triste dos mais tristes poemas e canções.

Mas, olha Helena: por mais que a razão me diga que o amor é isto, uma artimanha dos nossos mais primitivos instintos, uma reação bioquímica, eu também teimo em me apaixonar, viver esse sentimento oceânico, seja o da fé (de alguma fé) ou esse do amor de perdiçãopois que o amor, no fogo que o alimenta, é sempre um amor de perdição. Sim: nos perdemos no Outro e, nele, objeto nosso, também nos encontramos. Parafraseio o evangelho que diz: “Onde estiver o seu tesouro, estará também o seu coração.” Isso explica o desejo de ficar “colado à pele dela noite e dia”, como diz o Belchior na letra de “Divina comédia humana”; ou como diz o Chico em “Tatuagem”, botando palavras na boca de uma mulher: “Quero ficar no teu corpo, feito tatuagem. Santa Teresa de Ávila, em seus transes místicos, dizia que quando o seu Amado não estava perto dela, ela sentia falta era dela mesma. Que é isso senão um sentimento oceânico, um amor de perdição? Ela, são João da Cruz e outros místicos da Igreja, nada mais fazem que sublimar o amor humano a uma categoria divina, depositando no Divino toda a sua energia sentimental.

Você, querida, caso não venha a concordar comigo (e com Schopenhauer, naturalmente), apelando a uma razão menos cruel, diga que esse amor – o amor de perdição – é um amor louco, não refletido, e que um amor assim é sempre preocupante ou perigoso. Eu lhe conheço bem; ao menos ao ponto de imaginar que você, sim, diria isso. Mas, ah, Helena!, o amor entre nós, criaturinhas mortais, é sempre louco mesmo, quase nunca refletido... Vez por outratalvez isso lhe tenha ocorrido – a gente se encanta por alguém que nada tem a ver com a gente; alguém que passa por nós numa calçada qualquer, que aparece na hora mais inesperada. E, de repente, como num passe de mágica, o mundo inteiro parece girar em torno daquela pessoa que nos prende sem amarras, sem palavras, sem sequer saber da nossa amorosa inquietude. E nem pensamos que isso é a Vontade nos lançando contra esse ou essa que, dizemos erradamente, “nos fisgou”. Sim: é a Vontade que nos têm fisgados, todo o tempo, o tempo inteiro. O Outro é apenas instrumento; instrumento para que a Vida, no fim, viva.

Lembro-me ainda de outra música, “Caminhos cruzados”, do Tom Jobim e do Newton Mendonça. O cantor, apaixonado, fala de uma falha de raciocínio: “Que tolo fui eu que, em vão, tentei raciocinar / Nas coisas do amor que ninguém pode explicar...” É na paixão (ou no amor) que o nosso raciocínio se embriaga. É preciso não estar apaixonado para ver, mais claramente, o objeto da paixão, do seu amor. Só assim ele é real, na medida em que pode sê-lo. No amor não há profundidades, só encobrimento, e embriaguez.

[...]

O resto do texto tratava de coisas pessoais, da nossa velha infância; e terminava a carta com “Saudades de vocês; beijo nas crianças.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

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Do Amor personificado e da ligação: Amor (Paixão) Desejo [Eu] Vontade. O amor pode ser personificado porque é experienciado por indivíduos. Metáforas, alegorias... tudo vale para facilitar o que se diz sobre a sensação, que é única em/a cada um. Sem aquele ou aquela que ama não há – pelo menos na experiência – Amor. O que há, consequentemente, é o ser (o Eu da experiência sensorial), ser/coisa pensante, (res cogitans), como na fórmula cartesiana: penso existo. Você deve ter ouvido alguém dizer que “o amor é cego”. Dizer que o Amor é cego é, enfim, confundi-lo (fundi-lo com) com a Paixão, que faz cegar. Em tal antropomorfismo, o Amor não tem olhos, mas é sujeito; contrário à “coisa” que, ao sujeito, se predica. O que ama é que acha-se cegado por Amor, por Paixão. Quem ama sempre ama algo ou alguma coisa que não consegue “ver direito” - pois o objeto sobre o qual lançamos o nosso conhecimento sempre é modificado por tal ação: nosso conhecimento (Kant). Nada é si-mesmo (coisa-em-si), real à nossa percepção, mas sempre a nossa compreensão sobre a “coisa”, que sempre nos escapa. A relação é, sempre, de aproximação e distanciamento. Onde há o Eu e a vontade de saber, tal relação se mostra, e esse distanciamento se instala. O mesmo vale para as coisas do amor romântico.

Para que haja Amor, para que ele se efetue, mister é que haja uma relação - entre duas pessoas (ou mais) ou entre uma pessoa e uma “coisa” (um objeto): o que ama e o objeto do seu amor. Seja como for, trata-se de uma relação. De “relação” (relatio) também vem relatus: “narração”, “exposição”, que é “relatório” de/sobre algo – sobre aquele que ama e o seu objeto, portanto. Veja que, logo atrás, falo em “objeto do seu amor”. Amor aparece como ativo; e assim é porque existe o Eu, passivo: eu que sofro a ação de... Amor (Paixão) Desejo [Eu] Vontade. É, por outros termos, a velha conceituação que Aristóteles fazia entre potência e ato: o indivíduo que ama em potência ama também em ato; mas, nunca, em ato puro. Seria Amor (ou amor) o Puro Ato? Não, e sim – mas só de um modo que faça referência à Vontade de vida. O não, de modo tão enfático, é para o “tipo” de amor que tenho tratado aqui. Como já disse – e isso vale tanto para quem acredita nalguma divindade criadora e mantenedora da ordem do universo físico, como também para acredita na explicação matemático-física das coisas, de todas as coisas, ou quase todas –, o amor, seja ele qual for, aponta para uma referência (relatio), e essa, sim, seria (ou teria de ser) absoluta. Schopenhauer chama essa “coisa” absoluta de Vontade (Wille); Freud chama-a de Pulsão (Trieb), Pulsão de vida (Lebenstrieb), de morte (Toderstrieb), et cetera; e santo Agostinho chamava-a de Amor. Ele, aliás, usa essa ilustração da relação quando trata sobre o dogma da Trindade: Deus é o que ama (quod amator), o Filho é o amado (quod amans) e o Espírito Santo é o elo amoroso (quod amor) entre ambos. E assim como ocorre em relação ao Espírito, que anima o homem de fé, e embora não possa ser visto, assim também acontece com o amor, quando lho toca. E, da mesma forma que os sentidos atuam em relação às “coisas espirituais”, assim também atuam em relação ao amorque é o maior dos sentimentos, a maior das virtudes teologais. Mas aqui há, como se vê, não apenas um salto ontológico (Kant), mas uma confusão conceitual, promovida pela fé que, partindo das coisas dos sentidos, aponta para “coisas” sem sentido algum: imaginações, fantasias, delírios. Ora, se acreditar no Espírito é uma ação da , acreditar no amor perfeito é demonstração de muito maior.

Em todos esses discursos atuam sempre, de modo muito pessoal e subjetivo, os sentidos; os nossos sentidos. Em se tratando dos sentidos (e nem é preciso ler o Discurso do método de Descartes para ser ter ciência disso), eles não são as “coisas” mais confiáveis para se tratar sobre profundidades ontológicas, de coisas como estas: relacionadas aos temas do amor e da fé; mas, e como aqui fazemos convergir, valem para as coisas referentes à Vontade. Da fé, paradoxalmente, essa é a única linguagem possível, a do amor sublimado: teologia = teopoesia. À filosofia, no entanto, do Amor/Desejo/Vontade se pode cogitar outros discursos, e sem a necessidade de fé, fé nenhuma, só a análise bio-psico-antropológica do fenômeno (Phänomen), que nos remete à “coisa-em-si” mesma, ou ao pensar sobre ela – mas sem qualquer ligação com “entidades metafísicas”. “Fenômeno se chama representação, e nada mais”; é como Schopenhauer define o conceito em Die Welt als Wille und Vorstellung, de 1818. E diz ainda: “Toda representação, não importa seu tipo, todo Objeto, é Fenômeno. Coisa-em-si, entretanto, é apenas a Vontade: como tal não é absolutamente representação, mas toto genere diferente desta. É a partir daquela que se tem todo objeto, o fenômeno, a visibilidade, a Objetividade; ela é o mais íntimo, o núcleo de cada particular, bem como do todo, a aparecer em cada força da natureza que faz efeito cegamente [como o sentimento amoroso, por exemplo], e também na ação ponderada do ser humano [guiadas pela razão instrumental]: se ambas diferem, isso concerne tão-somente ao grau de aparição, não à essência do que aparece.”

Essa “força da natureza que faz efeito cegamente”, que é o mundo como Vontade, é também o que aparece por trás da potência sentimental, do ato erótico que apela, convida, se insinua, quer a vida perpetuada: Amor (Paixão) Desejo [Eu] Vontade. Do mesmo modo, ainda em relação a essa “força da natureza que faz efeito cegamente”, pode-se falar, na linguagem freudiana, da Pulsão sexual[amorosa] (Sexualtrieb), e, também por ela, da Pulsão de autopreservação (Selbsterhaltungstrieb). “Assim”, diz Schopenhauer (também em Die Welt...), “visa o gênio da espécie em todas as pessoas prolíficas a geração futura. Eis a grande obra de Cupido, incessantemente pensando e agindo no interesse dos [de gerar] filhos. Comparados com a importância desta grande tarefa, que visa a espécie e todas as gerações futuras, os interesses dos indivíduos, no seu conjunto efêmero, pouco importam”. Como a fé, para Freud, o Amor pode ser, para o sentido romântico, um “sentimento oceânico”, coisa abissal. Por tal equação: do mesmo modo que a fé pode ser um certo sentimento de inferioridade (Minderwertigkeitsgefühl) do indivíduo diante do mundo, do grande enigma do mundo fenomênico, também o Amor ideal, sublimado, ou o amor romântico. Amor, porém, diferentemente da fé – volto a dizer, pode ser tratado sem as liturgias, sem as dogmáticas, sem os credos ou as confissões, sem qualquer certeza que não a incerta certeza da Vida, da vida-aí, dada enquanto Phänomen, enquanto aparência (Vorstellung)... véu de Maia.

É essa ilusão da concretude das coisas (como a certeza da fé ou a crença nos sentidos) que faz permanecer o jocoso jogo da vida. Ela, disfarçando-se de misteriosa profundidade, quer apenas, ela mesma, manter-se. Ah!, o amor, no final das contas, é uma máscara que a vida usa; uma marionete das suas estripulias para ser, e continuar sendo: Wille, Trieb. Todos os que amam, por fim, são (ou estão) iludidos pela vida; e acreditam tolamente que vivem se tiverem o que amar - como dizia Henry de Montherlant, na sua equivocada definição de morte: “Morremos quando nãomais ninguém por quem queiramos viver”. Mas, desiludido, eu digo: “Não há ninguém, além de nós mesmos, por quem queiramos realmente viver ou morrer”. Mas a relação não se acaba aí, somente se abre, pede divórcio da fé.