quinta-feira, 27 de maio de 2010

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De um livro de Kerouac, e do trágico que impera sobre a vida, sobre o amor. No final da primeira parte de Tristessa, de Jack Kerouac (publicado pela primeira vez em 1960), o poeta norte-americano Jack Duluozalter-ego do próprio Kerouac que, em 1955, apaixonara-se por Esperanza, uma prostituta índia do México -, protagonista da obra, afirma: “Desde tempos imemoriais e adentrando o futuro sem fim, os homens amaram mulheres sem dizer a elas, e o senhor os amou sem dizer, e o vazio não é o vazio porque não há nada para ser esvaziado.” O livro, tendo um pano de fundo visivelmente budista, pode ser resumido numa frase de Duluoz, e de Tristessa: “La vida es dolor (a vida é dor), ela [Tristessa] concorda, diz que a vida é amor.” Vida = dor = amor... Estou triste”, Jack diz à Tristessa, porque toda a vida es dolorosa’, repito, na esperança de ensinar a ela a Verdade Número Um das Quatro Grandes Verdades - Além disso, o que poderia ser mais verdadeiro?Não há heróis aí, e nem vilões; é somente a vida que segue e, não tendo a arte como fuga (Schopenhauer), serve-se da morfina. “O vazio não é o vazio porque não há nada para ser esvaziado”. Não há culpados no mundo, e nem fora dele. Viver, como amar, é encarar a dor cotidiana, cotidianamente. O modo como eu e você escapamos do trágico que impera sobre tudo é o que, segundo os manuais de ética e moral, diz se somos ou não isto: indivíduos éticos, indivíduos morais; tudo o mais é ou consenso ou aceitação. La vida es dolor, la vida es amor. Tanto faz.

terça-feira, 25 de maio de 2010

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Da pressa do Amor, do Desejo e da Vontade, e de como isso tudo faz parte de um mesmo e trágico enredo. Impaciente, impacientíssimo é o amor romântico, que quer tudo ao mesmo tempo, e já. O Chico equivoca-se quando, na letra de “Futuros amantes”, diz: “Não se afobe não, que nada é pra ; o amor não tem pressa, ele pode esperar”. Equívoco perdoável, e até compreensível: porque a poesia não tem contrato com a verdade, e nem precisa. E, sim: é mesmo do amor romântico que ele fala, aí. Do contrário, poderia estar falando de um amor extramundano, divino mesmo - como aquele de quem o apóstolo diz: “O amor é paciente”. Mas, como não é difícil de perceber, o autor de “Futuros amantes” fala mesmo é do amor mundano (Eros), o outro, da primeira epístola Aos coríntios, do amor divino (ágape), que pode ser encontrado na própria Divindade: de quem nada sabemos, de quem nada podemos saber. Quem ama, mundanamente – e quem ama só ama mundanamente -, não sabe esconder que ama, e não sabe esperar. O Amor tem o estigma do tempo: sabe-se frágil, coisa que morre fácil, fácil, fácil... Daí a pressa de abrir-se em todo o seu esplendor, em toda a sua plenitude. À semelhança do girassol em um dia depois da chuva, o Amor conhece o poder destruidor do tempo. Mas o tempo, apesar de tudo, não consegue destruir o Amor para sempre. É que o Amor, que também não é para sempre em seu objeto particular, vive no mundo dos desejos; e, eo ipso, enquanto houver gente no mundo, aí ele estará, e a Vontade. Amor Desejo Vontade. Vontade, como Desejo, é sempre “vontade de/por algo”, “desejo de algo”. Como o Amor, o Desejo também está grudado em muitas opções que podem ser, às vezes, contraditórias sob muitos aspectos. Alguém, por exemplo, pode desejar morrer, quando, na verdade, deseja mesmo é viver. Deseja-se tanto a vida que, num paradoxo flagrante da Vontade, “deseja-se” a morte. Ninguém, em absoluto, “deseja” mesmo a morte – só a de outrem; o que, por sinal, é muito fácil e comum. É como dizia Pascal: “Todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar”. O suicida não é movido por outra coisa senão por amor-a-si; no fim, afinal, ao invés da morte, ele procura mesmo é por uma felicidade in fine, sua felicidade: vida. O mesmo vale para o Desejo. Lembra-se de Romeu e Julieta? Romeu, matando-se, mata-a também. (Ah, se ele tivesse esperado!...). Que é viver, agora, para ela, senão morrer a cada segundo? Para viver novamente, ela pensa, é preciso também morrer. Ao menos aí, na morte, estará com o seu amado, para sempre. Morrer no amor (amando, in love), assim pensa Julieta, é viver contrário à morte: morre-se pela vida, a vida que não veio, que não houve, que seria se... Ela poderia ter esperado um pouco mais, até que ele acordasse... Mas, oh, lástima!... o amor não sabe esperar, e nem os que amam.

domingo, 23 de maio de 2010

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De um livro de Jacob Needleman e do vício intelectual. O celebrado livro de Jacob Needleman, A little book on love, de 1996 (traduzido no Brasil como “Sobre o amor”), traz, na edição portuguesa, o subtítulo: “Um estudo investigativo do filósofo contemporâneo mais lido nos EUA”. E eu penso, com o livro em mãos: “Quem disse que os americanos mais lidos são boas referências para qualquer coisa que não o pragmatismo e a arte de ganhar dinheiro? Capitalistas filhos da ....!” E penso mais: “Quem disse que há filósofos relevantes nos Estados Unidos?” Tento lembrar de nomes realmente importantes; mas só me vêm à mente, depois dos gregos, dos alemães, dos franceses (e boa parte desses melhor enquadrados na categoria de romancistas), e aqui e ali, alguns ingleses, os nomes dos pragmáticos C. S. Peirce e William James. Os americanos, desde muito, se especializaram em fazer compêndios, sistemáticas. Mas tanto a filosofia quanto a teologia requerem o ócio (otium, que é o oposto de negotium: “negócio”, “ocupação”) - coisa que eles condenam. Não por acaso, as piores das piores teologias e as piores das piores heresias modernas (levando-se em consideração a teologia mais ortodoxa, ou a reformada) são obra e arte dos sobrinhos do Tio Sam.

Não nego que, nos EUA, exista uma enormidade de filósofos brilhantes e teólogos capazes e bem intencionados; mas eu falo, aqui, de originalidade essencial, “sem a qual o mundo não seria a mesma coisa”: como o que foi feito por Schopenhauer (e Darwin e o budismo estavam aí, por trás, como a trama onde a bordadeira tece a sua arte), por Nietzsche, por Heidegger, et cetera. Americanos! Time is money! É por isso que dou o maior dez aos três contos de Arturo Gouveia (“A primeira porta”, “Pelos pobres de Tegucigalpa” e “Mais-que-perfeito”), reunidos no capítulo “Thanatos também te contempla”, do livro Santíssimas trevas, de 2008 (segunda edição). “Ok”; é verdade que Jacob Needleman (66 anos), de acordo com uma entrevista que deu à revista Super Interessante em julho de 2001, anda por aí apregoando a máxima de que o “dinheiro não traz felicidade”. Também sei que ele tem muito dinheiro; e ganha outro tanto como professor de filosofia na San Francisco State University, atuando como consultor nos campos da psicologia, educação, ética médica, filantropia e negócios (Sócrates riria muito de tudo isso). Sei, por fim, que ele ganha ainda mais dinheiro vendendo os livros que ensinam que não é preciso ter dinheiro para ser feliz, e que o amor é a salvação do mundo, e o respeito ao Outro, e isso e aquilo... Coisas que cabem bem no vício de alguns intelectuais que mantêm o mundo no mesmo, dizendo o que as pessoas já sabem, mas que querem ouvir, do modo que não sabem dizer.

O “estudo investigativo” de Needleman não é mais do que uma sistematização – bastante superficial, é bom dizer – sobre o tema do amor, e sempre condicionando-o ao amor romântico que tem seu modelo exemplar no “Hino ao amor”, do apóstolo Paulo - que ele transcreve por inteiro, reverenciando e utilizando-o no capitulo final (capítulo 12, “A prática do amor”) e na Conclusão, citando trechos inteiros, numa pálida tentativa de interpretação que não merece o nome de “hermenêutica”. O capítulo 13 da primeira epístola de são Paulo Aos coríntios, nada tem a ver com “amor romântico”. O “Hino ao amor”, em Needleman, mantém-se no status de modelo de conduta amorosa. E assim o vício intelectual fica assegurado; e o engodo secular mantém-se inalterado. Mas esse status do “Hino ao amor” é lugar comum na obra de muitos filósofos, e Needleman não é exceção entre tantos – confirmando a nossa crítica de que o seu Sobre o amor, não é mais que “mais do mesmo”. Vício intelectual é, às vezes, má-fé.

É compreensível que filósofos cristãos, mesmo os existencialistas (como Karl Jaspers, Gabriel Marcel, BJ Kumar Christie, e outros), mantenham tal vício – pois lhes é bastante conveniente –; mas é inadmissível que se fale tanto sobre “os cem nomes do amor” e não se defenda que ele é um só, e que pode ser simplificado numa única palavra: Vontade, Vontade de vida. O romance, a trato cortês, a conquista e tudo o mais que envolve a moral cristã e a moral ocidental, relativa ao sexo, à procriação, é mera maquiagem que visa encobrir o “feio” que é o coito, que tem sua prática, íntima, guardada para a privacidade das câmaras, das quatro paredes. O coito público é punido e condenável como atentado ao pudor.

O capítulo XI, “O amor”, no livro Kleine Schule des Philosophischen Denkens (“Introdução ao pensamento filosófico”, 1965), de Jaspers, é também “mais do mesmo”. Só o amor elevado à categoria do amor pelo feio (ágape), poderia fazê-lo concordar com Kierkegaard: “Kierkegaard tinha razão ao dizer que a mulher se torna mais bela com os anos”, ele diz; concluindo, porém, que tal beleza “só pode percebê-lo o homem que a ama”. Não há mistério: é uma beleza enxergada pelos olhos do ágape cristão, ou do bhakti (submissão ao Outro), indiano. Mas aí, tanto em um como em outro conceito, o divino está no Outro, que transforma-se em “meu próximo”, pois também imago Dei, como eu; ou parte do próprio divino: bahkti. Em um dos parágrafos finais do capítulo XI, Jaspers revalida a moral cristã e o amor ágape como modelos, dizendo: “Se houvesse alguém capaz de viver na clarividência do amor, ser-lhe-ia aplicável o dito de Santo Agostinho: ‘ama e faze o que quiseres’. Como, porém, somos todos homens, sujeitos ao engano e à cegueira, expostos à ação de forças hostis ao amor, não podemos viver sem restrições. Todo amor que, por exemplo, transgrida os Dez Mandamentos, já não será amor, mas, subjugado por paixões estranhas, estará utilizando mentirosamente o rótulo do amor”. O inverso do dito, é bem verdadeiro. E Jaspers, definitivamente, não foi justo com o bispo de Hipona, interpretando-o assim.

Inadmissível, por fim, que tanto Jaspers quanto Needleman não mencionem Schopenhauer em suas investigações sobre o amor. Needleman chega a falar de Rilke, utilizando-se de longas citações do poeta alemão – aquelas que louvam o amor conforme o modelo cristão, ou como “resultado do esforço”, do “querer amar” –, mas não menciona que ele (Rilke), dentre outras, teve um amor impossível com Lou-Salomé (que só conseguia ser fiel a si mesma), que compartilhava das idéias de Nietzsche (com quem também teve um caso até hoje mal explicado), e que foi aluna de Freud (ateu declarado), e que todos esses aí são discípulos, de um modo ou de outro, de... Schopenhauer.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

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Das razões pelas quais se mata, se vive, se morre. Em O juiz e seu carrasco (1950), do suíço Friedrich Dürrenmatt, o comissário Bärlach e o policial Tschanz entram na casa do Sr. Gastmann, mas quem eles encontram e interrogam sobre o assassinato do tenente Schmied, é o conselheiro federal von Schwendi, que não lhes ajuda tanto. Decidem ir até o policial da aldeia de Lamboing, Jean-Pierre Charnel, que parecer saber alguma coisa sobre o Sr. Gastmann. Assim, numa estalagem onde se encontram e bebem vinho branco com pão e queijo, Bärlach pergunta a Gastmann:

- O que faz esse Gastmann, Gastmann? – continuou interrogando.

- Um monsieur très riche – respondeu o policial de Lamboing, entusiasmado. – Tem dinheiro como água, é très noble. Dá gorjeta a minha fiancée – e apontou para a garçonete, orgulhoso – comme un roi, mas não com a intenção de querer alguma coisa dela. Pas ça, non.

- Qual é a profissão dele?

- Philosophe.

- O que quer dizer isso, Charnel?

- Um homem que pensar muito e nada fazer.

O juiz e seu carrasco, em síntese: o ato de matar pode ser uma obra de arte, o de morrer, não - é uma coisa a se pensar. Helena, me acredite: nunca se mata ou se morre se não for por amor – e isso não tem qualquer conotação filosófica. Mas, refletir sobre o porquê de não morrer, sim. Daí Camus, em O mito de Sísifo (1942) colocar o suicídio como a única questão filosófica realmente séria: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério”, ele diz: “é o suicídio”. E argumenta:


Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. São apenas jogos; primeiro é necessário responder. [...]

Se pergunto a mim próprio como decidir se determinada interrogação é mais premente do que outra qualquer, concluo que a resposta depende das ações a que elas incitam, ou obrigam. Nunca vi ninguém morrer pelo argumento ontológico. Galileu, que possuía uma verdade científica importante, dela abjurou com a maior das facilidades deste mundo, logo que tal verdade pôs a sua vida em perigo. Fez bem, em certo sentido. Essa verdade não valia a fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol, gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente. A bem dizer, é um assunto fútil. Em contrapartida, vejo que muitas pessoas morrem por considerarem que a vida não merece ser vivida. Outros vejo que se fazem paradoxalmente matar pelas idéias ou pelas ilusões que lhes dão uma razão de viver (o que se chama uma razão de viver é ao mesmo tempo uma excelente razão de morrer). Julgo pois que o sentido da vida é o mais premente dos assuntos ― das interrogações.

“Razões para viver são também excelentes razões para morrer.Quem morre por uma Verdade sem a qual não pode viver, não é por uma ilusão que morre? “Se a terra gira em torno do sol ou se o sol gira em torno da terra”, para o que ama, “continua sendo uma questão de profunda indiferença.” A razão e o delírio são estados mentais daquele que acredita estar, em algum ponto do conhecimento, de posse de uma Verdade incondicionada, ou daquele que, em êxtase, considera supérfluo tudo o que não seja a sensação - como na experiência mística ou romântica, a exemplo do jovem Werther, apaixonado: Desde esse momento, Sol, Lua, estrelas podem seguir tranqüilamente a sua órbita, que para mim já não há mais dia nem noite, e o mundo inteiro dissipou-se à minha volta.” A Vontade de vida, manifesta no amor romântico, não exige o pensamento; e caso ele exista, não é mais que a ciência que tem o cão amarrado à carruagem de Moira: o tamanho da corda. Pensar, às vezes, só atrapalha.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

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Dos desejos e dos demônios. Freud é, com justiça, o pai da psicologia. Mas, verdade seja dita, sua maior contribuição à nova “ciência” foi o fato de ele, em pleno regime vitoriano, haver colocado o sexo como motor que engendra os processos psíquicos. Tais processos, externos, escondem-se para além do Ego, no Id, que é como um “segundo eu”, sob a fachada deste outro, primeiro da experiência mais imediata. Dificilmente o leitor de Freud, ao menos no que diz respeito às suas tentativas de dar um status científico às suas análises de pacientes neuróticos, não se chocará ao ver que o velho austro-húngaro fantasiou curas, maquiou resultados e, simplesmente, mentiu. “Uma das razões pelas quais os dados da psicanálise pareciam tão persuasivos às vezes é que Freud, seduzido por suas próprias teorias, tinha concebido um método que, em uma extensão considerável, permitia-lhe criar seus próprios dados. Em vez de teorias baseadas em observação, as ‘observações’ às vezes eram derivadas da teoria”, afirma Richard Webster, em Freud (2003), livrinho da coleção Grandes Filósofos, publicado no Brasil pela editora da UNESP. Na página seguinte, Webster afirma que, “na maioria dos casos, os sintomas [como no famoso caso de Anna O.] são construções do próprio Freud, nascidas de sua própria imaginação teórica. É somente após criá-los dessa maneira que Freud, usando estratégias de interpretação engenhosas e infinitamente flexíveis que ele próprio inventou, raciocina de modo retrospectivo de forma que crie uma série de elos artificiais derivados dos sonhos, associações e lembranças de seus pacientes”; e, mais adiante: “A crença de Freud de que estava construindo uma ciência genuína é crucial para qualquer entendimento da maneira pela qual a psicanálise se desenvolveu. Foi seu implacável e redutor cientificismo que, somado à sua compulsiva necessidade por fama, levou Freud cada vez mais longe em um labirinto de erros.” A psicanálise foi, quase toda ela, fundamentada sobre gravíssimos erros médicos, de Freud e de Jean-Martin Charcot, que era neurologista. Mas a grande capacidade de fantasiar, do pai da psicanálise, permitiu que fossem postos os alicerces para o que viria depois – principalmente com o suíço Carl G. Jung (a quem Freud, num primeiro momento, elogiava, e depois, em vendo-se contrariado, demonizava), Jacques Lacan e outros tantos. Os discípulos de Freud foram os reais construtores da psicanálise. Suas novas descobertas e o aperfeiçoamento das teorias do velho mestre, transformaram-no em uma figura iluminada, cedendo-lhe os atuais créditos – como no caso de David que, não tendo matado nenhum Golias, recebe os louros, por encabeçar o exército de Israel, como líder e chefe, pars pro toto. Seja como for, o mérito de Freud em haver colocado o sexo no centro da ciência que cria estar criando, como dissemos, está assegurado, e é legítimo. Mas, olhando ainda mais distante, e para trás, nem isso é lá grande novidade. Conforme Camile Dumoulié, em Le désir (1999), e com relação à doutrina do Desejo, em Schopenhauer, as semelhanças entre as idéias do pai da psicanálise e as do filósofo do pessimismo são tão grandes e evidentes que Freud desiste de ler Schopenhauer, para não se achar repetindo conceitos, e nem ficar viciado num determinado argumento: “Freud”, ela diz, “parece haver reconhecido apenas de modo reticente a sua dívida para com Schopenhauer, e disse a esse respeito que parou até de lê-lo tamanha a semelhança entre seus pensamentos”, e mais adiante: “Embora marcado pela filosofia de Schopenhauer, Freud fez o possível para estudar o desejo com menos apriorismo finalista e com mente positiva”. Atrelada a tal doutrina, de Schopenhauer, está a teoria da sexualidade infantil e da sedução (Verführungstheorie), de Freud, uma das suas mais famosas e contraditas – e que ele abandonou depois de perceber que muitas das seduções “relatadas por seus pacientes eram fantasias do sexo feminino”. Em uma carta datada de 21 de setembro de 1897, endereçada ao seu amigo, o médico berlinense Wilhelm Fliess, Freud fala de sua perda de fé e desencanto para com a teoria de sedução. Aí, entre várias razões pelas quais ele não podia mais manter mantê-la, consta: “Então, a surpresa que, em todos os casos, o pai, não excluindo o meu, tinha de ser acusado de ser perversa.” No final dos anos 1970, porém, algumas feministas, preocupadas com o crescente abuso sexual infantil, reexaminaram e concluíram que Freud errara ao abandonar a teoria (F. Rush, Freud and the sexual abuse of children, 1977; The best kept secret: sexual abuse of children, New York: McGraw-Hill.1980; Herman, J. L . Herman, Father-Daughter incest, 1981). Na sexualidade infantil, dentre outras, o menino se exibe para a mãe (a primeira fêmea a ser seduzida), mostrando o seu pênis, ereto; é aí também que, e para a mesma finalidade, o pai se mostra como um rival: alguém que deve morrer para que a mãe, afinal, seja somente sua. O complexo de Édipo (Ödipuskomplex) segue a mesma trilha. São essas “lembranças recalcadas” que, incluindo os casos de abusos, na vida adulta dessa criança, podem promover algumas paranóias, algumas neuroses. “Será que cheguei a revelar-lhe, oralmente ou por escrito, o grande segredo clínico?” Freud pergunta a Fliess. E que segredo seria esse? Ele responde: “A histeria é a consequência de um choque sexual pré-sexual... ‘Pré-sexual’ quer dizer antes da puberdade, antes da liberação de substâncias sexuais; os eventos relevantes só se tornam eficazes como memórias.” A memória... É aí que se aninham – talvez sob escombros e outras edificações, numa metáfora arqueológica – os demônios do desejo, do medo, dos sentidos todos. Mesmo no adulto, como no caso do próprio Freud descrevendo o “problema de Dora”, tais demônios recalcitram: “O porta-moedas de Dora, que se abria no fecho do modo habitual, não era nada mais do que a representação dos genitais e seu jogo com eles; o fato de abri-lo, e enfiar os dedos no interior do porta-moedas era uma forma totalmente desembaraçada, ainda que claramente pantomímica, de anunciar o que ela gostaria de fazer, ou seja, se masturbar.” Dora, descontente com o caminho que seu tratamento está tendo, desaparece, deixa de ir às próximas sessões. Freud lamenta e, magoado, rememorando o final abrupto da relação terapêutica com moça tão atraente, diz, filosófico: “Ninguém, como eu, que evoca os piores males destes demônios indomados que habitam o seio humano, se tenta combatê-lo, pode esperar sair da batalha ileso.” Desejos, demônios.

domingo, 9 de maio de 2010

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Da proibição moral e do desejo contrário. Américo Vespúcio, de quem as nossas Américas herdaram o nome, faz uma interessante observação do que vê ao longo do litoral do atlântico sul, em 1501. Diz ele que os índios parecem ser mais “epicuristas” do que “estóicos”. Mas a idéia que o navegador genovês, cristão, tem do epicurismo é aquela, preconceituosa, hoje tão conhecida: de que a doutrina de Epicuro ensina uma busca irrefletida e irrefreada do prazer dos sentidos, prazer momentâneo e que vai contra a santa moral da Santa Madre Igreja. Mas nem todos os escritores do período colonial pensavam assim, de modo tão purista, celestial. Exemplo disso é La Celestina, escrito pelo espanhol Fernando de Rojas, em 1499, inspirado nas comédias de Plauto e outros romances medievais conhecidos, como o Libro de buen amor (1343), de Juan Ruiz, e os italianos Storia di due amanti (1444), de Enea Silvio Piccolomini, e Elegia di madonna Fiammeta (1343/44), de Giovanni Boccaccio. La Celestina, na verdade, transita entre a Idade Média e o Renascimento, sendo apontado - às vezes como comédia (1499, com 16 atos), às vezes como tragicomédia (1502, em 21 atos) – como uma das bases sobre as quais se alicerçou o romance e o teatro modernos. E é na modernidade que alguns dizem que a obra tem as características marcantes de um drama, enquanto outros afirmam que se trata mesmo é de uma novela. Por fim, há os que, como eu, acreditam que todos esses gêneros aí se encontram, e sem conflitos. Mas, quem é Celestina? Personagem que dá nome ao romance, Celestina coleciona amantes e, mais, considera isso como uma missão de libertação da sexualidade. Sua tese é: “A natureza foge da tristeza e procura o prazer.” Para ela só há um deus: o Prazer. De tal deus ela se faz sacerdotisa e evangelizadora. Celestina, de celeste, nada tem. “Em Celestina o amor é eterno ‘enquanto dura’. Estamos diante do tema oposto à doutrina oficial da Igreja sobre o amor e o prazer”, diz Eduardo Hoornaert (História do cristianismo na América Latina e no Caribe, 1994), um dos mais importantes estudiosos da vida e dos costumes da Igreja cristã no período colonial. E Hoornaert diz mais; diz que “a popularidade de Celestina e das histórias das ‘trotaconventos’ em geral demonstra que essa literatura não foi produzida num vazio cultural, mas correspondeu a uma aspiração muito profunda da pessoa humana”. Longe da mera birra contra a moral estabelecida, parece haver no excesso de La Celestina, bem como em obras mais moderadas – afinal, trata-se da Sagrada Família –, como em Per amore, solo per amore (1983), do italiano Pasquale Festa Campanile, um tiro de desconfiança contra a idéia de amor transcendente, transcendental. Em Per amore, solo per amore, a humanidade de Maria, que sente ciúmes de José (Giuseppe), a quem as mulheres adoram e para quem elas se jogam, grita por essa “fidelidade à terra” – para usar uma expressão conhecidamente nietzschiana -, por essa fidelidade ao amor terreno, animal. Além de Maria, José tem amantes, como a viúva Dorotéia, a fogosa Judite e outras. E por onde ele passa, é percebido. “Uma jovem que lavava roupas no riacho, Ana, filha de Seth, ao vê-lo passar disse às amigas: - Como ele é bonitinho... tão tenro... comê-lo-ia como manteiga passada ao pão.” A libertinagem, a transgressão política e o desejo de transgressão moral são tão antigos quanto a política, e a moral. Basta que haja uma proibição ou um tabu para que, aí, se instale o desejo de contestação, de enfrentamento com as armas do seu contrário: a liberdade de ir e vir, pensar e dizer, querer e fazer... como a vontade que se tem de olhar por aquele buraco no muro que traz, acima, a inscrição, imperativo-intimidante: “Não olhe!”

terça-feira, 4 de maio de 2010

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Das origens do discurso libertino. Em 1956, em Paris, Salvador Dalí repete as mesmas palavras que, já em 1952, usara em elogio à cidade das luzes, dizendo: “Insisto em fazer esta comunicação em Paris porque a França é o país mais inteligente do mundo, o país mais racional do mundo...” Trata-se do primeiro parágrafo do panfleto Le cocus du veil art moderne, em que o exótico artista espanhol critica, dentre outros, Picasso, Miró, Le Corbusier, Cézanne, Mondrian, et cetera. Esses, para Dalí, são responsáveis, dentre outras diabruras, por introduzir a arte feia, de mau gosto, na arte moderna, seguindo o fio condutor que principiara com a adolescente ingenuidade romântica de Arthur Rimbaud, que dissera: “A beleza sentou-se em meus joelhos e estou fatigado dela.”
Há quem afirme, e com boas razões, que a filosofia deslocou-se da Grécia para a Alemanha, e para a França. De fato, e a título de exemplo, a França – principalmente do século XVII em diante - não somente exportou estilos da (ou para a) moda, produtos de coqueteria e culiária como, também, “visões do mundo”, leituras dele, da vida vivida: na arte, na política, na literatura. Paris não é a cidade das luzes (La ville-lumière) somente porque, em 1828, e antes de todas as cidades da Europa, usou uma quantidade absurda de lâmpadas de gás para iluminar o Champs Elysées, mas, também, por sua influência na educação, na arte e na cultura mundial. Assim, e por isso, quando procuramos os primeiros discursos sobre o amor libertino – por desobedecer àquela ordenança da Sagrada Escritura que vê o coito como mero ato reprodutivo, em obediência a Deus e por amor a ele, e isso tudo, evidentemente, dentro de uma legitimidade moral: o casamento cristão – no Ocidente pós-medieval, é na França, principalmente no testemunho literário, que encontramos seu embrião, notadamente nos séculos XVII e XVIII.
Luiz Roberto Monzani, em “Origens do discurso libertino” (1996) - artigo do qual tomei de empréstimo o título e a inspiração –, faz justamente essa volta aos séculos citados, para mostrar que, até aí, “se excetuarmos o epicurismo, a Antiguidade e a época medieval sempre mantiveram uma concepção similar do ponto de vista ético”. E que ponto de vista seria esse? Aquele que, fundamentado numa certa fé na razão, acreditava que as paixões, em favor do Summum bonum, deveriam ser domadas: “Conhecendo-o [o Summum bonum] ele [o indivíduo] o amará. E esse amor ao bem é que deverá guiar e ordenar a dinâmica de suas paixões. Assim, existe uma estrutura teológica objetiva à qual, em princípio, todos os sujeitos devem submeter-se.” Monzani lembra que, em Tomás de Aquino, a felicidade humana está consignada à contemplação de Deus, real Summun bonum. “Colocadas as coisas dessa maneira”, diz ele, “uma certa ordem das paixões impõe-se, onde o amor é o antecedente que engendrará o desejo e, por fim, teremos a deleitação, segundo a ordem da consecução (não da intenção)”, assim:

1) Amor / Ódio
2) Desejo / Aversão
3) Prazer / Desprazer

É, como se vê, uma antropologia sentimental de inspiração teológico-finalista, em que o objeto ou é amado ou odiado, desejado ou repudiado, trazendo isso tudo o prazer ou o seu contrário. “Essa teoria, longa e pacientemente elaborada, perdurou por séculos e não irá, por assim dizer, desaparecer na Idade Moderna. Mas deixará de ser soberana e passará a coexistir com uma outra, sob muitos pontos de vista oposta.” Essa nova teoria é a que se imporá, mais precisamente, nos séculos XVII e XVIII, na França libertina. Talvez o seu maior representante seja Donatien Alphonse François, mais conhecido como Marquês de Sade. Se seus biógrafos estiverem certos (Paul Ginisty, La Marquise de Sade [1901]; Henri d’Alméras, Le Marquis de Sade: l’homme et l’écrivain [s.d.]; Jacobus X, Le marquis de Sade et son oevre devant la science médicale et la littérature moderne [1901], dentre outros), foi a frustração e a tristeza de ter casado com a senhorita Montreuil - e não com a irmã mais nova desta, a quem amava e viu ser colocada em um convento - que levaram o Marquês à libertinagem: o que lhe renderia, quatro meses depois de casado, seu primeiro cárcere, em Vincennes.
O amor lírico, ideal, romântico, ordenado, viu em Sade um adversário legítimo. Não poucas vezes, e não havendo prova melhor, o Marquês seria acusado de insanidade, levado às prisões e manicômios. Mas, mesmo aí, ele escrevia. “As obras do Marquês de Sade constituem um objeto da História e da civilização tanto quanto da ciência médica”, afirma Eugen Duehren, complementando, depois: “Há ainda um outro ponto de vista que faz das obras do Marquês de Sade, para o historiador que se ocupa da civilização, para o médico, o jurisconsulto, o economista e o moralista, um autêntico poço de ciência e de novas noções. Essas obras são sobretudo instrutivas porque nos mostram tudo o que na vida se encontra estreitamente vinculado com o instinto sexual que, como o reconheceu o Marquês de Sade com uma perspicácia irrefutável, influi sobre a quase totalidade das relações humanas de uma maneira qualquer. Todo investigador que quiser determinar a importância sociológica do amor deverá ler as principais obras do Marquês de Sade. Nem mesmo no nível da fome, mas acima, o amor preside no movimento do universo.” “Talvez achem as nossas idéias muito fortes”, dizia Sade, perguntando, desafiador: “E o que isso significa? Não adquirimos o direito de dizer tudo?” O Renascimento e a Ilustração pareciam ter dado ao indivíduo essa autonomia do/no pensamento. Mas o “direito de dizer” era/é racional, e a moral dominante não pensa de modo racional; ainda mais quando fere o status quo da elite ofendida.
Na introdução que faz a’O corno de si próprio e outros contos (2009), de Sade, Guillaume Apollinaire diz que “um grande número de escritores, filósofos, economistas, naturalistas, sociólogos, desde Lamark até Spenser, encontrou-se com o Marquês de Sade, e muitas das suas idéias que apavoraram e desconcertaram os espíritos de seu tempo ainda são completamente novas”. De fato, o próprio Monzani, em quem me inspirei para a redação deste texto, não menciona Sade; e não por julgar sua contribuição irrelevante à época que analisa, mas, provavelmente, por uma delimitação autoral – o divino Marquês é tema de outro capítulo no livro em que o texto de Monzani se encontra: Libertinos libertários (1996) - que, julgo, faz o seu artigo pecar por evitar o nome do maior de todos os libertinos, precursor da revolução sexual e ícone do individualismo moderno. Lido enquanto teoria filosófica, com base no materialismo do século das luzes e nos enciclopedistas, “o romance de Sade oferece um sistema de pensamento que desafia a concepção de mundo proposta pelos dois principais campos filosóficos no contexto da França pré-republicana: o religioso e o racionalista”, diz Daniel Serravalle de Sá, no artigo O Marquês de Sade e o romance filosófico do século XVIII (2008). Acontece que as palavras libertin, libertine, libertinage e libertinisme estão, por assim dizer, associadas à França do século XVIII, onde triunfam as idéias que representam: aquelas que se realizam com a crise do catolicismo e o triunfo da Revolução Francesa, e que aparecem como gênero literário predominante entre alguns pensadores e literatos do período. De tais autores, aqui, me interessam aqueles que se abstraíam dos modelos morais vigentes, principalmente os que se relacionam à moral sexual – e é aí que Sade reina absoluto. Outros autores que merecem destaque, e que não aparecem no texto de Monzani, são: Restif de La Bretonne (Nicolas Edme Restif) e Choderlos de Laclos (Pierre Ambroise François Choderlos).
Restif é autor de uma novela que se remete a um conto de Sade, Justine (1781), a Anti-Justine ou As delícias do amor (L’Anti-Justine, ou les Délices de l’amour, 1798). Choderlos, por sua vez, escreveu As ligações perigosas (Les liaisons dangereuses, 1782), em que as relações de um grupo de aristocratas, retratadas por meio de cartas trocadas, mostram quão ociosos e sem escrúpulos são os nobres, que se empenham em destruir as reputações de seus pares. O foco do enredo é o Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil, que manipulam e humilham os demais personagens por meio de intrigas, jogos de sedução, traições e amores nada divinos. São libertinos no modo mais pejorativo da palavra. De uma e outra maneira, o libertinisme se mostra não como uma escola filosófica, mas como um gênero artístico-literário que abraça diversos autores com visões diversas do mundo, da moral, da religião, da política, da arte, et cetera. O gravurista e ilustrador britânico William Hogarth (que, atravessando os séculos, influenciaria artistas como Goya, Greuze, Whistler e Hockney), por exemplo, conhecido por suas sátiras político-culturais, na sequencia de quadros sobre os “costumes morais modernos”, pintou a “cena de taberna”, para O progresso do Libertino (The Rake's progress, 1732-33). Aí, Hogarth retrata a vida boêmia e libertina da Londres de seu tempo, numa clara alusão contraposta ao puritanismo de O progresso do Peregrino (ou, em seu nome completo: The Pilgrim's progress from this world to that which is to come [O Progresso do Peregrino deste mundo àquele que está por vir]), que é uma alegoria da vida cristã, escrita em publicada na Inglaterra de 1678, por seu patrício, John Bunyan.
É um novo tempo, um tempo de virada cultural, virada político-histórica. Por trás de tudo está, antes dos eventos que eclodem com a tomada da Bastilha, simbólica (pois a Bastilha, na ocasião, estava praticamente vazia), e a Revolução Francesa (14 de Julho de 1789), a visão destoante daquela da Igreja cristã medieval: visão de um aniverso atômico, mecânico, governado por leis próprias. Tanto Hobbes (Leviatã, 1651) como Descartes (Discurso do método, 1637) souberam captar os ventos desse novo tempo em que “não existe nenhuma finalidade objetiva inscrita no âmago da realidade. Não é difícil perceber que é toda a concepção clássica [...] que cai por terra” (Monzani). Para Hobbes, os jogos da paixão – como aparecem tão bem ilustrados em As ligações perigosas, de Choderlos - não são mais do que esforços (endeavour, conatus) individuais com vistas a uma finalidade individual: o instinto de conservação ou, mais exatamente, de afirmação e de crescimento de si próprio. E é assim que o homem se faz lobo do homem (Homo homini lupus), e é assim que, com vistas a tal finalidade, todos lutam contra todos (Bellum omnium contra omnes). A finalidade do endeavour (conatus), não sendo mais o culto a Deus, é culto a si mesmo, em obediência ao Desejo - como John Locke tão bem soube sumariar: “A uneasiness [mal-estar, insatisfação] que um homem sente em si mesmo pela ausência de alguma coisa, cujo desfrute presente traz consigo a idéia de deleite, é aquilo que chamamos de desejo” (em: An essay concerning humn understanding, 1698). Étienne Bonnot de Condillac questionará a afirmação de Locke, sem negá-la em sua essência, mas em sua estrutura: “Ao querer definir o desejo ele o confundiu com a causa que o produz. A inquietude [uneasiness], diz ele, que um homem sente em si mesmo pela ausência de uma coisa que lhe daria prazer se estivesse presente é aquilo que chamamos de desejo. Logo seremos convencidos de que o desejo é uma coisa distinta dessa inquietude” (em: Traité des sensations, 1749).
Aqui, como se vê, há uma inversão da ordem clássica dos desejos que, para além da postulada finalidade que se volta para o amor divino, em obediência a um modelo hierárquico estabelecido pela Escritura e pelos seus intérpretes, a exemplo de Tomás de Aquino e outros. O desejo, diz Condillac, não é primordial – pois é um fenômeno derivado -, mas, sim, o prazer ou a dor que, nessa relação dinâmica, são “os únicos princípios dos meus desejos” (Condillac). Assim, se num primeiro momento a filosofia clássica consignava a felicidade pessoal à aceitação de um bem que ordenava as paixões individuais, domando-as (Amor/Ódio), em Hobbes, num segundo momento (Desejo/Aversão), há uma inversão dessa ordem – pois o lugar daquele Summun bonum é substituído pelo endeavour (conatus), em função de si mesmo... uma, já, vitória do indivíduo (individuus), da individualité (conceitos inexistentes, no sentido moderno, nos modelos antigos e clássicos). Com Condillac, portanto, inaugura-se uma terceira inversão que, segundo me parece, ainda é atual e responde satisfatoriamente às atuais análises das afecções. “De agora em diante”, diz Monzani, interpretando o Traité des sensations, de Condillac, “a ordem inicial clássica foi totalmente invertida, pois o esquema agora é:

1) Prazer / Desprazer
2) Desejo / Aversão
3) Amor / Ódio


[...] O Traité des sensations mostra de forma inequívoca o primado da dimensão passional sobre a dimensão teórica”. Algo muito próximo do “sentir primeiro, pensar depois”. Pois o pensar nasce da sensação, e os pensamentos sobre o amor do amor vivido, que a tudo precede. E como poderia ser diferente? O amor é uma armadilha fatal, tal qual a celebrada dádiva da vida. Como afirma Dante no final da Divina comédia, é l’amour che move il sole e l’altre stelle
. É vã toda a tentativa de fuga do amor, e o correr para ele, suicídio.

domingo, 2 de maio de 2010

50
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Do discurso moral e dos acidentes cotidianos. A Vontade, que se co-funde com amor, que nada tem a ver com o romance – e eu falo de categorias literárias –, é paixão que quer intimidade, e depois, em troca, dá o desprezo. Omne animal triste post coitum. E por que é assim? Porque o amor não resiste e nem existe sem passion, mas a passion por um objeto único não é mais que a chama de uma vela: o tempo ou lhe apaga com seus temporais tão comuns ou faz com que ela se auto-consuma. Além da mentira em favor de um “eterno amor” ou da simpatia que um possa ter pelo Outro, seu de tanto conhecido, não há mais opções. Intimidade sem passion é obrigação e... tédio. Duas pessoas que envelheceram se amando, são duas pessoas que envelheceram mentindo: por conveniências, por convenções. A inautenticidade é a coisa melhor distribuída entre os homens. Na França do século XVII - disso dá conta a vasta literatura romancesca -, já se notara que o casamento não é prova de amor. A união mundana é, ainda, aí, metáfora do amor a Deus e obediência à Sagrada Escritura que reza, imperativa: “Crescei, multiplicai, enchei a terra.” Quanto mais o “amor a Deus” diminui, tanto mais a castidade moral se abala e, aí, surge a necessidade de se criarem novas éticas amorosas: para o flerte, o cortejo, o galanteio. Produto da elite, tal ética se dissemina através das obras literárias, dos estilos vários: novelas, contos, poemas, ensaios, sermões, et cetera. Nesse aspecto (literário) é possível, conforme a teoria histórico-sociológica luhmanniana, ver o amor como um meio de comunicação simbólica, onde o romance (obra literária) fixa e codifica comportamentos – coisa que toda sociedade, de um modo ou de outro, parece ter de passar, como um processo evolutivo-educativo comum. O amor durante a Renascença, por exemplo, é amare amaro (amor amargo), coisa contraditória em si, de si, per si. Mas o amargo não suplanta o desejo de ver o objeto amado como “algo” doce, sublime, ideal; e é assim até que se passe de tal idealização à sua paradoxização natural – é um experimento ao qual se tem de viver para, vivendo, como a rosa retirada do seu pé e depositada nas mãos da mulher amada, morrer. A vida mesma é uma escola do amor (école d’amour), e é também o seu tribunal (cour d’amour), constituindo-se numa metáfora útil às críticas e às análises (codificações) das situações amorosas, histórico-temporais. O amor que não depõe contra a razão, como demonstrado no Dialogue de l’Amour et de la Raison (1667), de F. Joyeux, só pode ser lido hoje à luz da tradição daquele ideal do Romantismo, em que ele, irracional, à razão se subordina (caritas ordinata, amor rationalis). Mas, se ele é assim tão irracional, porque reconheceria a razão como guia de suas ações? O amor, disso dá prova a realidade do mundo, a vida vivida em seus disparates cotidianos – e não a vida impressa nas novelas que se vendem em bancas de revistas, se vê na TV, no idiotismo hollywoodiano –, anda por escarpas enevoadas, estradas sinuosas, abismos sem placas. A vida não quer saber, a vida quer é viver; e nós lha obedecemos cegamente. Viver é, em seu último grau, amar; amar é demonstrar, de algum modo - e são muitos -, nossa insanidade; agir por razão é, por fim, acidentar-se.