quinta-feira, 10 de setembro de 2009

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Dos saltos ontológicos. Em A Trindade, livro escrito entre 399 e 419, por Agostinho de Hipona, o amor – qualquer que seja ele - aparece como substrato menor do Amor maior, Absoluto. “O amor”, diz o Hiponense, “porém, supõe alguém que ame e alguém que seja amado com amor. Assim, encontram-se três realidades: o que ama, o que é amado e o mesmo amor. O que é, portanto, o amor, senão uma certa vida que enlaça dois seres, ou tenta enlaçar, a saber: o que ama e o que é amado?” Denis Huisman, comentando tal passagem, afirma: “Aquele que ama, aquele que é amado e o amor constituem uma unidade”. Uma representação desta unidade seria a seguinte: O amado (quod amatur) estaria sempre no centro da “atenção” daquele que ama (amans), unidos no amor (amor), formando assim uma unidade, ou uma Trindade – já que é nessa intenção que Agostinho fala sobre o amor na supracitada obra.
Deus, que é sempre Deus Uno-Trino, Deus Trindade, na linguagem de Agostinho, é a origem e fonte de onde emana todo o amor que há – até mesmo os amores carnais. É assim que, transportando as formas da linguagem (representativas) às Pessoas da Trindade (não representativas), o Pai é amans (o que ama), o Filho é amatur (o que é amado) e o Espírito Santo é amor. Mas essa tripartização das Pessoas – não da essentia – da Trindade traz um problema: ao afirmar que “Deus é amor”, por exemplo, o apóstolo João afirma a essentia Dei. Assim, toda a realização criacional de Deus é fundamentada nessa essentia e, a ela, está condicionada, subordinada. De modo semelhante, na sua primeira epístola, ao exortar os cristãos ao amor mútuo na assonância: “amados, amemo-nos...” (agapētoi, agapōmen...), o apóstolo tem em mente que o amor procede de Deus e Deus só pode ser conhecido mediante o amor. “Porque”, nas palavras de John Stott, “Deus é a fonte e a origem (ek) do amor, e todo verdadeiro amor deriva dele, [e assim sendo] é óbvio que todo aquele que ama, isto é, que ama a Deus ou ao homem com aquela devoção que é o único amor verdadeiro segundo o ensino de João é (literalmente, tem sido) nascido de Deus e conhece a Deus. Mas Deus não é somente a fonte de todo verdadeiro amor; Deus é amor em Seu Ser mais profundo”. E assim, se o evangelista afirma que Deus charitas est, então como relacionar a Caridade com o Espírito, qualificando-o em relação ao Pai e ao Filho? Agostinho, ainda em A Trindade, formula a questão da seguinte forma: “Agora, desejamos examinar se a sublime Caridade é o Espírito Santo, de modo próprio. Caso não seja, investigar se é o Pai a Caridade, ou o Filho ou a mesma Trindade. Isso porque não nos podemos opor à certeza da fé e à abalizada autoridade da Escritura que diz: Deus é amor (1Jo 4,16)”.
Ora, se o sumo Bem e a Caridade dizem respeito à Trindade, então não é incorreto afirmar que, tanto o Espírito Santo é amor como também o Pai e o Filho, já que são, em essentia, Pessoas distintas que compõem a Trindade, sem qualquer distinção hierárquica. De modo semelhante, não se pode afirmar, por exemplo, que o Filho não ame – pois o apóstolo, testemunhando do amor que o Filho demonstrou para com ele, afirma “que [ele] me amou e se entregou a si mesmo por mim”. O Filho, neste caso, é amans, o apóstolo amatur, e entre o Filho e o apóstolo o que há é o amor, amor gerado pela ação do Espírito – além do mais, quem vê o Filho vê o Pai, uma vez que ambos se revelam no amor sacrificial, que é administrado aos fies mediante a ação do Espírito. Portanto, ao afirmar que Deus charitas est, o apóstolo não se refere somente ao Pai, mas também ao Filho e ao Espírito Santo, à Trindade. Assim, tudo o que dissermos sobre a Caridade, o sumo Bem, Deus ou a Trindade, estará relacionando às Pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Isso tudo se resume na regra canônica da fé e das atribuições, ou seja: onde uma das Pessoas da Trindade está, ali está Deus. E onde há Deus, como dizia Tolstoi, aí há amor.
Não! É claro que Agostinho não explicou o mistério da Trindade. Mas elevou o amor, mesmo o humano, a uma categoria de divino – e aí a justificativa desse nosso teologismo. Mas é evidente que há, em Agostinho, como afirma Kant, um salto ontológico que faz o amor passar de uma esfera inferior (analítica) para uma esfera superior (metafísica). Desse amor sublime, agostiniano, nada podemos “entender” a não ser mediante uma entrega pessoal e silenciosa da fé à fé, nele – e aí, realmente, não há nada mesmo a ser entendido. Por isso que, em se tratando do amor, em nossas divagações, como já foi dito, falamos apenas do amor feinho – como diz a Adélia –, do amor “menor” que é, todavia, passível às análises do juízo. Aqui, não há salto algum. Ao que diz: “ora, só se pode falar do sublime se se reconhecer o seu contrário – sem essa dialética não há discurso algum”, dizemos: nada mais humano e sublime do que o “seu contrário”. O “sublime”, pois, é uma palavra só, e só uma palavra.

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