quinta-feira, 3 de setembro de 2009

3

Das possíveis definições. Nietzsche dizia que não queria ser confundido; assim, concluía, “convém que eu mesmo não me confunda”. O mesmo valerá para mim, ao “destratar” o amor romântico do modo como venho fazendo. Sei que uns (ou umas) poderão argumentar: “Ele diz isso porque é mal-amado”. Outros, quem sabe, objetarão: “De que amor ele está falando?” Tomara que você esteja entre os tais do segundo grupo.
Ao primeiro grupo, como resposta, tenho apenas o silêncio. Silêncio que é, como diz o Abade Dinouart, já no título de um livrinho seu, A arte de calar, uma arte. Todo mundo sabe que o silêncio é, às vezes, mais eloqüente do que um milhão de palavras. As minhas “justificativas” em relação às possíveis conjecturas desse grupo, portanto, encerram-se aqui.
No que diz respeito ao segundo, boa é a observação. Sim, pois, de imediato, convém adiantar que não existe, pelo menos para nós – e eu falo de gente de carne e osso, como você e eu –, o amor, mas os amores – que é como fracionamos uma coisa só: aquilo que Schopenhauer chamava de Vontade (Wille) e que Freud chamava de Pulsão (Trieb) (embora houvesse delicadas diferenças entre um e outro conceito). Os amores, na divisão clássica, se distinguem em, pelo menos, quatro tipos: o erótico (Eros, eran), o filial (philia, philein), o desinteressado (Ágape, agapan) e o amor a si mesmo (amour de soi), que é o mesmo que amor-próprio (stergein). Nós, homens e mulheres, conhecemos apenas, por meio do intelecto e da experiência pura, o último dessa lista, que nada mais é do que uma resposta favorável ao primeiro: Eros. Mas a farsa, a maior de todas – a do amor romântico, que se espelha no amor ideal que, por sua vez, “une” todos os indivíduos numa fraternidade que vem desde o estóicos, com seu conceito de Logos universal, et cetera, e o apóstolo Paulo - pelo menos se levarmos em conta o que aparece nas entrelinhas do discurso hermenêutico da nossa cultura, que é, na crítica de Nietzsche, altamente fundamentada numa ética e numa moral cristãs.
Assim sendo, e para encurtar a história, o amor que o sujeito sente por sua mulher, ou por sua amante, ou por qualquer Outro (ou outra) que seja o objeto da sua atenção é, no final das contas, um amor que deseja e responde apenas a si mesmo; pois vê no outro aquilo que lhe faz bem, lhe dá prazer, lhe apetece os instintos: o EU refletido no TU. O Outro, objeto do seu prazer, mesmo que outros discursos digam o contrário disso – na tentativa sempre fútil de manter o modelo legado pela poeira dos séculos –, é um objeto, um meio para a satisfação pessoal do EU que somente ama a si mesmo. Está lá na carta do apóstolo Paulo aos cristãos de Éfeso: “Quem ama a sua mulher, a si mesmo se ama”. Certamente que esse, nosso, não é o sentido que o apóstolo quer dar à sua missiva, e é certo também que o contexto do seu discurso deixa claro aquele sentido fraternal-estóico que ainda agora falamos; mas a tal citação, no sentido que damos aqui, ilustra perfeitamente o que estamos dizendo. E se assim é, então o amor Eros é apenas um braço curto do amor-próprio e, logo, o mesmo – como também são os tentáculos de um polvo para o próprio.
Agora, suponhamos que alguém tenha um filho e, coisa mais que normal, diga-lhe: “Eu o amo.” Esse amor, fraternal-filial (de philia) é, ainda assim, um outro braço curto do amor-próprio. Pois que é isso, o desejo de ter filhos (e o pai, via de regra, deseja ter um filho, e a mãe, uma filha), senão o desejo de continuidade? Continuidade do EU no TU. Os pais, através dos filhos, mantêm-se vivos, se prolongam na história biológica do mundo. E, também via de regra, os pais – mais por amor a si que por amor aos filhos – desejam esta ou aquela profissão para o filho, ignorando, quase sempre, o que o próprio filho deseja para si. O amor do pai pelo filho é, mais que philein, stergein.
E assim chegamos, mesmo queimando etapas, ao amor ágape que é, nas palavras de Rubem Alves, “amor pelo feio” – para contrastar com o Eros grego, que correspondia exatamente ao amor pelo belo, sexual, libidinoso. O amor ágape, que é aquele que mais aparece na doutrina cristã – que praticamente ignora os dois anteriores aqui mencionados –, é o amor por algo que não merece amor, é o amor caridoso, de onde nos vem as palavras charis (graça, favor imerecido) e caridade (charitas). Daí algumas versões mais antigas traduzirem a palavra ágape, do capítulo 13 da primeira epístola de são Paulo Aos Coríntios, como “caridade”; o que é, sem dúvida, muito mais acertada do que a que aparece nas versões mais modernas.
Esse tipo de amor, evidentemente, só o próprio Deus pode ter em relação aos homens. Isso equivale a dizer que se, por um altruísmo qualquer, alguém fizesse uma caridade qualquer a outro seu igual, pelo simples fato de fazer, sem que sentisse qualquer emoção (o que eu julgo impossível), então estaria amando com um amor semelhante àquele que o próprio Deus tem. Mas, como já disse, ninguém pode ter o “mesmo” amor que Deus tem – por isso que utilizo o adjetivo “semelhante”, falando sempre por analogia. O amor, como já dissemos no Livro 1, é sempre amor por algo; e esse algo sempre esbarra em nós mesmos. Bom exemplo é o da Madre Tereza de Calcutá? Tanto mais amor demonstrado ou Outro, tanto mais amour de soi. No outro, vê–se o reflexo do si-mesmo. O suicídio, que parece ser o maior ato de desamor à própria vida é, conforme Pascal, a sua maior declaração de amor. “Todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar”. O suicida não é movido por outra coisa senão o amor-próprio e, no fim, afinal, procura mesmo é por uma felicidade in fine, sua felicidade. Dois casos extremos: Madre Teresa e o suicida, dois casos de amor, do amor incurável.
Quando se faz o bem a alguém, faz-se porque é bom fazer o bem a alguém ­– conforme o modelo dualista do Ocidente que diz que o bem é bom, e que o mau e mal, ruim. Tais conceitos, porém – e os filmes de Akira Kurosawa estão aí pra dizerem isso – não são assim tão precisos e infalíveis à toda prova. O que é o bom? O que é o bem? Para quem é ativo no ato dado/feito ou para quem é passivo ao mesmo? Quem faz o bem, a caridade, faz porque isso lhe faz bem, lhe dá algum prazer – um tipo de prazer que é julgado, evidentemente, superior àqueles que já mencionamos –, o prazer do dever [altruísta] cumprido. É uma satisfação que esbarra, novamente, naquele modelo platônico do Bem, do bom; um círculo vicioso típico da cultura do Ocidente.
No que diz respeito ao amor ágape, ele transcende as ações humanas e, eo ipso, não pode ser mencionado senão num salto ontológico, a priori, que se limita ao mínimo falando de um máximo desconhecido, o imperfeito falando do perfeito desconhecido e, assim, sempre um discurso cheio de limites, sempre carente de fundamentos. Mas o único fundamento para tal discurso é a fé, e a fé não precisa e nem pode ter fundamentos. Novamente, nesse “pormenor”, nesse exigido silêncio sobre as sublimidades do amor sublime, é exigido o silêncio. O melhor discurso sobre Deus, caso haja algum discurso, é o silêncio.
O que nos sobra, depois de tudo, é o amour de soi – que é o que mais temos, de uma ou de outra maneira; o amor sentimental (romântico), que nos faz mal ou bem, segundo a administração que dele fazemos, também ancora aí. Desse, sim, temos muito o que dizer.

Um comentário:

  1. Muito bem Antonio. Estou no segundo grupo e acredito no EU refletido no TU.Em qualquer cultura e lugar do mundo, em todos os tipos de amor o eu fala mais forte. Desde a infância não tenho dúvida. Só o adolescente acredita no amor sublime desinteressado, mas é por pouco tempo. "do amor sentimental, desse sim temos muito que dezer". continui!! qual o bem e qual o mal que ele faz?

    ResponderExcluir

patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo