terça-feira, 8 de setembro de 2009

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Do erótico e do sublime. Não há dúvida de que a felicidade seja, sob todos os sentidos, a principal meta das filosofias, do filosofar. Pascal, por exemplo, dizia que “todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar”. E Platão, no Eutidemo, pergunta: “Não é verdade que nós, homens, desejamos todos ser felizes? De fato, quem não deseja ser feliz?” De tão óbvia, a resposta era desnecessária. Quem não deseja ser feliz? Mais que a felicidade, que é naturalmente destacada, é preciso dar ênfase ao desejar (enquanto verbo, no infinitivo) ser feliz, ou ao desejo de felicidade, situando-o na experiência individual; como na citação que vem na cena final de The great estasy of Robert Carmichael, violento e perturbador filme de Thomas Clay: “Voz do Lago: ‘O que para cada um de nós é inevitável?’ Yudhishthira: ‘Felicidade’.” Como o viver para o que vive, assim também, ao vivente, é o desejo, e o desejo de felicidade. Mas, ora; só se deseja o que se não tem. Então, assim, o desejo vem antes mesmo da felicidade desejada – que é aquilo que, através do amor, por exemplo, pensamos poder conseguir, poder reter. O desejo amoroso, ou o querer amar é, pois, o desejo de felicidade. Desejo, todavia, é falta, é querença, é não ter o que se quer, e é, por fim, nas palavras de Schopenhauer, a infelicidade (ou o sofrimento), tendo o que se desejava, o tédio de já não mais querer o que se tem; o não-desejo.
Em O banquete, de Platão, podemos examinar mais diligentemente essa questão. O banquete não é propriamente um diálogo. É, antes, uma seleção de discursos sobre o amor. Discursos esses que, na definição de Denis Huisman, “[são] irregulares e pitorescos, em que o sério e até sublime se sucede ao cômico e mesmo à farsa”. Todavia, visto que o “amor” é, sem dívida, um tema central à filosofia – pois ela se define como “amor à sabedoria”, e não “possuidora” dela –, dois tipos de amor aparecem em destaque: o amor erótico, a quem se aplica o pitoresco, o cômico, a farsa; e o amor sublime, ideal... o amor do discurso de Sócrates. E o que vemos nele, muito evidente, é o idealismo platônico: o amor erótico (Eros), levado à farsa; o amor ideal, sublimado à categoria de divino.
Realizado na casa de Agatão, o primeiro a se manifestar é Fedro, para quem o amor é o mais velho dos deuses, o mais reverenciado e um dos mais poderosos. É o princípio que transforma jovens comuns em heróis, uma vez que aquele que ama tem vergonha de fazer o papel de covarde diante da sua amada. “Dê-me um exército de amantes e conquistarei o mundo”, diz ele. O amor, em Fedro, é de grande valor pedagógico, pois transfigura quem ama, moldando-o de fraco a forte, levando-o a querer ser mais, superando-se. Procurando respaldar sua assertiva, Fedro utiliza-se de vários exemplos oriundos da mitologia.
Depois dele vem Pausânias: “Sim”, ele diz,
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mas é preciso distinguir entre o amor terreno e o amor divino – a atração entre dois corpos, de um lado, e, de outro, a afinidade entre duas almas. O amor vulgar do corpo cria asas e foge ao passar o viço da mocidade. Mas o nobre amor da alma é perpétuo.
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O amor divino (a Afrodite divina) é verdadeiro, nobre, eterno; o amor terreno (a Afrodite terrena) é falso, fugaz. No amor há, segundo Pausânias, uma hierarquia – o discurso de Pausânias não será ignorado por Sócrates. Em seguida vem Erixímaco, que apresenta uma teoria cósmica do amor. Em tal teoria, dentre outras coisas, o amor é responsável pela saúde dos corpos, as harmonias musicais, as revoluções astronômicas, a adivinhação, etc.
O comediógrafo Aristófanes, por sua vez, sai com esta explicação novíssima sobre os efeitos que o amor exerce sobre os amantes: “Nos tempos antigos”, diz ele,
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andavam os dois sexos unidos num único corpo. Esse corpo era redondo como uma bola, tinha quatro mãos, quatro pés e duas faces. Movia-se com assombrosa rapidez, utilizando-se dos oito membros que tinha, como se fossem os raios de uma roda, numa série contínua de saltos mortais. A força dessa raça de homens-mulheres era tremenda, e sua ambição sem limites. Assim planejaram escalar os céus e atacar os deuses quando Júpiter teve uma feliz idéia: ‘Dividamo-lo em dois’, disse ele, ‘e eles terão, assim, apenas metade da força que têm, e nós, o dobro de sacrifícios’. E dito isso, o deus separou os dois sexos, e desse dia em diante as duas metades daquele corpo outrora unido, vêm se consumindo no ardente desejo de se reunirem novamente, para serem, como antes, um só. E é esse anseio pela reunião dos sexos que chamamos amor.
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Agatão, que havia organizado o banquete para comemorar o primeiro lugar que obtivera na redação de um drama para o teatro, explora seus talentos literários, também tratando sobre o amor. Mas, convenhamos, depois dessa de Aristófanes, qualquer discurso corre o risco de tornar-se enfadonho, principalmente quando se tenta provar as perfeições do amor, como no caso de Agatão.
Sócrates, por fim, contrariando o dono da festa, expõe os conceitos de Diotima – sacerdotisa de Mantinéia –, para quem o amor romântico é fundamentalmente imperfeito, existindo sempre como falta, como aspiração inquieta, nunca podendo ser possuído. O amor romântico só existe enquanto falta. Daí ser ele imperfeito, simulacro. Um amor alcançado (ou um desejo realizado) é, assim, uma aniquilação do desejo e, conseqüentemente, uma nova infelicidade.
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– Não é isso então amar o que não está à mão nem se tem, o querer que, para o futuro, seja isso que se tem conservado consigo e presente?
– Perfeitamente – disse Agatão.
– Esse então, como qualquer outro que deseja, deseja o que não está à mão nem consigo, o que não tem, o que não é ele próprio e o de que é carente.

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Antes de o amor nascer, o desejo e a querença anunciam-no como falta. Em nascendo o amor, a falta e a querença não mais são – pois realizam-se naquilo que anunciavam. O não-desejo e a não-querença anunciam, agora, o funeral do amor.
Em pouquíssimas palavras, é disso que trata O banquete. E se eu falo dele aqui, nessas minhas divagações, é para que não digam que o ignoro – embora eu pense que, pelo andar da carruagem, isso já ficou mais do que evidente, em sentido inverso, é claro.

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