domingo, 2 de agosto de 2009

30
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Das planícies e abismos. Maria, no auge da sua juventude, despertava a violenta paixão de Gilberto. Todas as tardes, num exagerado metodismo, ele a esperava, olhando pela janela. Vê-la passar, voltando da escola, e notar que ela o percebia, valia a longa espera; ele “ganhava o dia”, como nos dizia, embasbacado. Quando ela aparecia na esquina da rua, a câmera fechava nela, todos os holofotes se acendiam sobre a sua cabeça de cabelos amarelos ondulados, e ela brilhava, e tudo o mais não passava de coadjuvante àquela cena de graça e rara beleza. Os finais de semana de Gilberto eram tristes, uma vez que não havia aula para Maria, e ela ou ficava enfurnada dentro de casa ou saía com as amigas – coisa que o deixava ainda mais deprimido: “Com quem será que ela se encontra? Será que ela vai ficar com alguém numa dessas festinhas? Ai meu Deus!” A idéia de que outro cara, que não fosse ele, pudesse abraçá-la, pudesse beijá-la, era muito angustiante. Um turbilhão de imagens doloridas lhe inundavam a mente. Às vezes, à noite, ele nem conseguia dormir pensando em tudo isso.
– Por que você não conta o que sente pra ela, rapaz? – sugeria Marcelo, um seu amigo de longas datas.
– Tá louco, man! Melhor não. – Respondia Gilberto, olhando pro teto. – Você está me empurrando ou para a planície ou o abismo; e é disso que eu tenho medo.
– Planície ou abismo? Quer dizer que...
– Que se ela gostar de mim – atalhou –, será como um passeio pela planície: mágico, gostoso, calmo e... chato. Não é assim que acaba a fita? Amor realizado é verbo no passado; planície que acaba sempre em algum abismo. Mas, se ela não corresponder aos meus sentimentos, isso me será o abismo antecipado, sem os atrasos da planície. Que grande merda, né não?!
Reclamava, num misto de covardia, medo da dor e dor advinda do medo da dor. Dias mais tarde, numa manhã de domingo, Gilberto, por puro acaso do destino, ao passar pela calçada de Maria, esbarrou nela, que saía estabanada de vassoura na mão, enxotando uma barata medonha que aparecera em sua varanda.
– Opa, Maria! Me desculpe! – ele disse, com as bochechas avermelhadas.
– Não! – ela disse. – Eu é que peço desculpas; saindo assim... – E ela o olhou, examinando-o. - Ah, não é você que sempre vejo na janela, quando volto do colégio? – perguntou, fitando os grandes olhos castanhos de Gilberto.
– Não! Quer dizer, sim... acho que sim.
– Gilberto – ela disse, já se sentindo bem à vontade –, eu sempre tive a impressão de que você, quando me vê chegando do colégio, tem algo a me dizer. Não estou certa?
– Sim! Quer dizer, não. Bem, eu, é... Olha, eu preciso ir; até depois.
– Então, está bem; até.
E Gilberto saiu com as pernas trôpegas, suando frio e com a esquisita sensação de mil olhos lhe acompanhando, enquanto ele se distanciava de Maria. “Nem ao menos lhe beijei a face ao me despedir”, pensou, recriminando-se pela oportunidade perdida, e por tudo o que poderia ter dito.
– E então? – perguntou Marcelo, dias depois, depois de Gilberto lhe haver contado o ocorrido e o atribulado diálogo que tivera com a “sua musa”. – O que você disse pra ela, hem? Fale, homem! Disse que gostava dela?
– Não, man; eu não disse – respondeu, desenganado do mundo. – Na hora, Marcelo, meu raciocínio deixou de existir; eu não era eu, ou era isso demais. Ah, que merda, cara! Que merda! Eu também não diria nada; não ali, naquela hora tão inoportuna... E se ela me dissesse um “não”, se risse de mim? Ai, dilema dos infernos!
Semanas depois, por boca da Flavinha, irmã do Marcelo, Gilberto ficou sabendo que Maria estava se encontrando com um rapazinho da “rua de trás”, e que o cara era “a banda voou”, “barra pesada”, e que todo mundo da rua já andava “falando mal dela”.
– Sabia que ela gostava de você, Gilberto? – continuou Flavinha. – Mas ela me disse que, ou foi ontem ou anteontem, achava que você não queria nada com ela, e que, pelo que parecia, a ignorava por completo.
E foi assim que Gilberto, por ter medo do abismo, entregou-se a ele. “Mas”, ele pensava, dramático: “como poderia ser diferente?” De fato, o amor, por um ou outro caminho, é esconderijo de infinitos abismos; e, como diziam os antigos: abyssus abyssum invocat. Mas os antigos também diziam que a covardia é o pior dos defeitos morais. E Gandhi garante que “o medo [pode ter] alguma utilidade, mas a covardia, não”. Moral da história: decida-se.

4 comentários:

  1. Como diz uma música que eu gosto 'o coração ama o risco' mas tb diz o ditado que 'camarão que dorme,a onda leva' hehe então, coragem nesse contexto do texto,se torna sim uma necessária virtude!Gostei!Achei bem escrito!
    =D

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  2. Acheiiii...agora posso comentar!! Quanto ao texto...me arrancou sorrisos e me fez lembrar de momentos bons e ruins da vida, sendo assim acho que é um bom texto, afinal não é essa a função da literatura?! Te levar para lugares já visitados e ao mesmo tempo nunca habitados! Lindo, lindo, gostei muito, emboora decidir nem sempre seja uma tarefa fácil, ainda mais nessas questões! bjosss -----> Izabel

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  3. Professor, quero saber quando isso vai virar um livro ou então um romance de cordel...
    Parabéns pela pena inquietante, imaginativa em deslumbre e essencialmente rock.
    Keep on move!

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  4. Isso já é um livro André. No formato tradicional vai sair, daqui uns tempos.
    Obrigado André, Izabel, Clarissa... o que imposta é o que vocês sentem; e a razão, quem tem? ;)

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patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo