terça-feira, 19 de janeiro de 2010

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Da idéia de “alma gêmea”. Pois não é que, puro acaso – a não ser que isso também não exista –, passeando pela biblioteca da UFPB, abri um velho livro do respeitado filósofo e educador cearense de São Benedito, morto em 1917, Raimundo de Farias Brito: Inéditos e dispersos: notas e variações sobre assuntos diversos (São Paulo: Editorial Grijaldo Ltda, 1966, p. 119). Saltou-me aos olhos o fragmento de uma carta sua, que diz assim:

A lei do casamento é o amor.
Mas que vem a ser o amor?
Não é a inclinação cega. Esta é quase sempre animal. Por isto têm razão os pais quando se opõem ao casamento de seus filhos, se estes se deixam atrair por falsas aparências de amor, e o que não é raro sucede, fascinados por seduções malévolas. E quantos não são realmente iludidos por paixões simuladas, caindo no laço armado pelas mais torpes especulações? O amor, o amor verdadeiro é o conhecimento profundo de uma alma irmã da nossa; de uma alma que nos seduz por sua beleza, que nos encanta por sua bondade. Deve vir não como relâmpago que nos confunde e atordoa; mas como serena manhã que nos acorda de longe, que cresce lentamente, que nos vai sucessivamente iluminando, penetrando-nos, saturando-nos, fibra a fibra, com seu fluído benéfico, e por fim nos inunda com sua claridade. É a contínua experimentação de um coração que nos serve de abrigo. E deve ter seu principal fundamento no conhecimento, como uma fé que a razão esclarece. Por isto precisa de tempo para avigorar-se. Eis o que é o amor. É o princípio da vida.


Excetuando a parte em que se fala das “falsas aparências de amor” e que ele “é o princípio da vida”, preciso discordar de todo o resto. A verdade não mora na autoridade, e nem na beleza da linguagem poética, e nem, muito menos, na boa vontade moral. Essa coisa de “alma gêmea”, já disse noutra parte aqui, é o mesmo que o ponto G na mulher: não passa de lenda. Ademais, é preciso sempre dizer que os pais, salvas as raras, raríssimas exceções, são tão vítimas das “falsas aparências de amor” quanto os seus filhos. E quando eles querem escolher as parceiras ou os parceiros de seus filhos, eles o fazem por/para si mesmos, por amor a si mesmos – pois que os filhos dos seus filhos serão continuidades deles mesmos e, neles, eles continuarão vivendo. Quem os leva a isso é aquele impulso mais primitivo, instintivo, natural. Não é por maldade que proíbem aquele garoto fazer o curso de Filosofia ou de Teatro que ele tanto deseja, obrigando-o a fazer o de Medicina, ou de Direito, ou de Engenharia Civil, ou disso ou daquilo outro que julgam de mais futuro, de mais valia. A proteção dos filhos, seja através do status (poder simbólico) adquirido ou do capital acumulado, é uma garantia visível de que, depois de mortos, eles, os pais, terão assegurado os recursos necessários para que eles, nos filhos, ainda estejam por aqui. Daí as histórias infames sobre as sogras megeras, sobre os sogros sacanas. “Alma gêmea”, mesmo na época de Farias Brito, verdade seja dita, era sinônimo de paridade econômica, equivalência racial. A verdade não mora na autoridade, e nem na beleza da linguagem poética, e nem, menos ainda, na boa vontade moral.

2 comentários:

  1. "A verdade não mora na autoridade, e nem na beleza da linguagem poética, e nem, menos ainda, na boa vontade moral." Pata, essa parte esta repetida, é intencional?

    Abraço, Pedro.

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  2. Ah,Pata,eu gostei tanto do que Farias Brito disse,achei tão coerente e até bonito!Não entendi a referência ao que seria a verdade no final,mas acho que o texto flui bem e foi coerente com o que vc já postou aqui. bjin

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patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo