quarta-feira, 7 de outubro de 2009

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Dos retratos. “É preciso a saudade para eu te sentir / como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida... / Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista / que nunca te pareces com o teu retrato... / E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!”
Em Presença, poema do Mário Quintana, o retrato preserva imóvel, mas apenas à ilusão dos olhos, o “instante da eternidade”, a fração temporal da atemporalidade. Nós, no entanto, sujeitos temporais (e por isso mesmo sujeitos, ou sujeitados), nada sabemos com certeza dessa atemporalidade da qual falamos; e falamos tão somente, como um atormentado Agostinho discorrendo sobre os mistérios da santíssima Trindade, pra não silenciarmos; licença poética. Tudo o que aparece como retratado ou retratável, no tempo, está devindo, e eo ipso, não é senão não-ser. Dorian, embora não faça tão grandes elucubrações filosóficas – coisa que, na obra de Wilde, caberá ao Lorde Harry –, sabe disso muito bem, mediante o desejo que sente o seu corpo jovem e, principalmente, a satisfação do mesmo: satisfação temporal e, logo, eterna insatisfação. Afinal, levando a questão a fundo: quem é que, realmente, mata a sede? Toda a água do mundo não serve a uma única pessoa. O desejo, satisfeito, esbarra no tédio; como no caso do desejo sexual: Omne animal triste post coitum. A fala de Sócrates, por instrução de Diotima, no livro O banquete, de Platão, é respaldo para o dito, sobre o desejo, e sobre o tédio. E quanto mais plenamente realizado tal desejo, tanto mais plenamente é o tédio que vem depois... e no caso de Dorian, haviam muitos depois, e com eles, mais e mais tédio. E assim, mais que o tempo que a tudo destrói, o ânimo de uma vida toda, morto o desejo, é fatal, fatalista. Não é isso que o próprio Dorian sente e lamenta: “Ah! Que instante maldito aquele em que o orgulho e a paixão o haviam levado a implorar que o retrato suportasse o peso dos seus dias, para que ele pudesse conservar o esplendor imaculado da eterna juventude! Todas as suas infelicidades daí provinham?”
De que vale uma mente velha, que sente que já desejou demais, em um corpo jovem que sente o peso da velhice de sua mente? Não é o corpo que deseja, mas a mente – o corpo, que não sou Eu, obedece; o Eu mesmo, “por trás de nós oculto”, como dizia Emily Dickinson, “é muito mais assustador”. Outra mulher, Adélia Prado, entende isso muito bem e o demonstra no poema que diz: “Não quero a faca e nem o queijo, quero é a fome!” A fome é do corpo, mas o desejo, não. Melhor que o tédio, crepuscular, é o desejo; mas o corpo e a mente precisam da sincronia. Pois, não é isso que os retratos nos dizem? Dizem que o momento vivido – ou o desejo realizado – é passado, e que de nada vale lembrá-lo, a não ser que se tenha a intenção de trazer, para o presente, alguma alegria, ou um aprendizado qualquer por meio de uma saudade dolorida; a mente, velha, não suporta o viço do corpo, dos seus desejos pueris; quer sempre transcendê-lo. Foi assim que o jovem Dorian, olhando para a sua “feiúra” estampada no retrato: “De repente odiou sua própria beleza e, atirando o espelho ao chão, despedaçou-o, pisando em seus pedaços prateados com os saltos dos sapatos. Fora a sua beleza que o havia levado à perdição, sua beleza e aquela juventude cuja permanência tanto implorara. Não fossem essas duas coisas, sua vida poderia ter sido imaculada. Sua beleza tinha sido para ele somente uma máscara, e sua juventude, uma zombaria. Afinal, que era a juventude? Um período de viço e imaturidade, repleto de impulsos...”
O corpo acompanha a mente, e não o contrário – mesmo quando não pode obedecê-la por motivos próprios –; assim também nós, em relação ao tempo. Daí que, no retrato, nunca somos o que realmente somos, apenas o que estivemos nalgum instante daquele devir indizível, atemporal, desmedido: “No retrato que me faço / – traço a traço – / às vezes me pinto nuvem, / às vezes me pinto árvore” – diz o Mário Quintana noutro poema. Talvez mais do que as nuvens, e talvez menos do que as árvores, sejamos assim dissolvidos pelo tempo, no tempo. Os nossos retratos para muito pouco nos servem, porque não podem captar o que somos; apenas o instante da eternidade que, no presente, representa tão somente a recordação, a memória do que nos fizemos, do que foi feito de nós - e essa memória, quase sempre, dolorosa: por haver sido boa e ser, só, memória; ou por haver sido ruim, e estar aí, na lembrança, como cicatriz. Os nossos retratos, mais do que nossos, são retratos do tempo. Nós mesmos, sempre devindo, somos irretratáveis.

3 comentários:

  1. "Talvez mais do que as nuvens, e talvez menos do que as árvores, sejamos assim dissolvidos pelo tempo, no tempo."
    Muito bom! Acho que qdo Adélia fala de fome,ela fala tb de desejo,que tb é fome.Não sei se sempre saciada a fome,ou o desejo, viram tédio, sei que o humano sempre deseja,sempre tem fome,até do que passou,até do que virá. E sem fome e sem desejo,aí sim,acho que o tédio pode tomar conta!
    Gostei do texto! =)

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  2. Mário Quintana deve ter vivido essa experência!! Alguém se vai, o retrato fica. É preciso fechar os olhos para ver. Na arquivística o retrato é o suporte de uma informação, é o registro de memória de um momento. Fica um tempo no arquivo corrente e vai para o intermediário . Lá ele é eliminado ou levado para o permanente onde fica a espera da busca pela informação. os retratos contam hitórias!

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  3. "apenaso instante da eternidadeque,...,a memória, quase do que nos fizemos, do que foi feito de nós - e essa memória".
    lembranças fazem parte da nossa história, são elas que nos dá combustão para traçar metas. Daí, penso que do que foi feito da crainça de anteontem, da adolescente de ontem e da jovem de hoje, que os dias insite em tira-lhe a juventude.Sou o devo ser, ou deveria ser? Enfim, tenho a conclusão que, esses momentos naõ voltam. Então eis-me aqui, guiada sentimento da paixão de viver.

    Taí um texto interessante. Pensei!!!!

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patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo