quarta-feira, 8 de julho de 2009

18
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Da caridade. Amanhecia, e Zaratustra sentia o frio gelar seu rosto, penetrando até os ossos. Mas isso era pouco para dobrá-lo. Ali mesmo na praça, onde estava, procurou um lugar para descansar e ver surgir o Sol que, pela cor da aurora, não tardava em chegar. Um homem que ele nunca antes vira, numa gentileza espontânea, trouxe-lhe uma manta inteiramente feita com a pele de um urso.
– Isto te poderá ser útil nas noites seguintes – disse o homem, entregando-a a Zaratustra.
– O que fazeis? – Disse o eremita, sem alterar em nada a sua voz. – Não sabeis que os bichos têm a pele de que precisam? A natureza, prodigiosa, dota-os de tudo o que eles, na travessia da ponte, necessitam – disse, fitando os olhos do seu benfeitor. – Sim; viver é atravessar uma ponte: do nada ao esquecimento. Memória é uma promessa da Vontade, desejo vão de eternidade, e de uma felicidade que seja eterna.
Nessa mesma hora aproximaram-se dele sua águia e sua serpente. O homem, sem palavras, observava a cena, sem nada entender, nada dizer. Os primeiros raios de sol começavam a despontar por sobre a linha ondulada do horizonte longínquo.
– Tudo o que eu digo e faço – disse Zaratustra –, é cedo demais. O tempo é grávido de auroras, e a noite mais fria ainda não veio. Já o dia, porém, furioso, planeja o seu prematuro fim.
– Que quereis dizer com tudo isso? – redargüiu o homem.
– Que a caridade do caridoso é exercida sempre em função de si mesmo. Todos os homens são ventres, e o mundo todo, massamorda. Se pudessem, os homens devorariam todo o mundo e, por fim, devorariam a si mesmos. Beberiam todos os oceanos, comeriam todas as constelações.
– Eu deveria tomar isso como ofensa? A ti, somente o bem foi o que desejei, oferecendo-te a manta que, no frio, poder-te-ia aquecer e, na necessidade, à sombra de qualquer árvore, servir-te-ia também de leito.
– Ora – disse Zaratustra –, não vês? O bem que desejas a mim é o bem que a ti, somente, desejas. Não é este o mandamento cristão, e o provérbio mais antigo entre os mestres do Ocidente? É uma moral que não posso compartilhar, eu, o amoral dos dias que estão por vir. Hoje, porém, o que nos insta a um bem menor senão o ter em vista um bem maior? O Outro é o meio, objeto para o nosso próprio bem.
E, virando-se para o nascente, disse ao Sol, como quem a desfiá-lo:
– Que seria de ti, ó Sol, se não fossem aqueles sobre os quais derramas a tua luz? Mas os que à tua luz se banham, nela se embriagam; e de maneira tal que nem percebem: mais do que eles mesmos em relação a ti, és tu quem deles necessitas. A tua luz, afinal, com vãs promessas de vida, cega-os para que não vejam a luz que, neles próprios, pode ser acesa, com a força de mil sois. A luz que tão generosamente derramas sobre eles, afinal, é derramada sobre ti mesmo.
Ao final dessas palavras o homem se retirou, largando a pele aos pés de Zaratustra, a quem julgava louco e ingrato. Aquela conversa toda, definitivamente, não era para ele.
– A caridade é sempre carente, como o amor do que ama - c
oncluiu Zaratustra, olhando o homem distanciar-se.
Tudo agora estava claro.

3 comentários:

  1. Resumindo:Zaratustra era, além de chato, mal agradecido!hehe
    E eu não entendo filosofia! xD

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  2. Ainda bem que isso aqui não é uma igreja, né, Clarita?

    Xêro!
    =D

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