terça-feira, 30 de março de 2010

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Dos poetas, boêmios, amantes incontinentes e da parte que eles têm com o Diabo. Quando eu fazia meu doutoramento em Teologia, na EST, em São Leopoldo, Charles, um amigo que procurava ser o mais ortodoxo possível (e eu o respeitava por isso), tão logo alguém saísse com esta: “A noite é uma criança”, dizia, de pronto: “E vocês são os brinquedos dela”. Depois fiquei sabendo que o avô do avô dele, um daqueles que vieram na época da colonização, já dizia isso. Boêmios, poetas e românticos em geral têm, comum das vezes, predileção pela noite, pelo álcool e por mulheres. Paul Veyne, por exemplo, em L’Élegie érotique romaine – l’amour, la poésie et l’occident (de 1983), transcreve o famoso epitáfio de Rabelais, atribuído a Ronsard: “Du bom Rabelais, qui buvait / Toujours, cependante qu’il vivait; / Jamais le soleil ne l’a vu / Tant fût-il matin, qu’il n’eût bu / E jamais au soir la muit noire / Tant fût tard, ne l’a vu sans boite” (O bom Rabelais que bebia / Sempre enquanto vivia; / Nunca o sol o viu / Mesmo que fosse pela manhã, que não tivesse bebido / E a noite escura / Mesmo que fosse tarde, jamais o viu sem beber). O epitáfio de Rabelais, conforme consta, faz parte das peças do Bocage real, de 1544, de Ronsard – que depois foram suprimidas. Rabelais, aí, é mitificado como homem da noite, entregue às bebidas e aos prazeres mundanos. Todavia, não é porque falava de bêbados e notívagos que ele, ele mesmo, fosse um. A imagem que criamos dos outros é, em generosas medidas, a imagem que queremos ter – como a de um ídolo qualquer a quem amamos. Do modo contrário – questão de tempo –, e para desmistificar tal imagem, basta que se conheça o/a ídolo. Nós próprios, com o fito de causar alguma boa impressão, também costumamos nos mitificar, como se fôssemos as melhores ou as piores criaturas da terra. E isso, de nenhum modo, é fenômeno recente. Propércio, recorrendo ao Priamel (Der Priamel der Wert in Grieshischen von Homer bis Paulus, de 1964), fala a Demofoonte: “Tu me perguntas, ó Demofoonte, por que não posso resistir a nenhuma mulher? Não é uma pergunta correta: em amor nunca existe por quê. Não há pessoas que se cortam os braços com punhais sagrados e se mutilam ao som de ritmos de Frigia? A natureza assinala a cada um sua esquisitice, e meu destino é o de sempre ter em mente algum amor”. É a aventura humana e a exaltação do Eu à categoria de divino – ou de alguma proximidade com ela – que, desde os primeiros romances (enquanto categoria literária) se faz notar. Assim, na literatura helênica, por exemplo: “Descobertas modernas de papiros demonstram que as origens do romance grego, que os estudiosos do passado remontavam ao período romano tardio, situam-se no século II a.C. e são expressão típica da visão helenística da existência humana.” São palavras de Helmut Koester, estudioso da história, da cultura e da religião do período helenístico. E Koester ainda diz que “o romance reuniu num conceito literário novo todos os elementos da experiência humana e a superação das suas limitações, enquanto estas encontravam expressão em vários gêneros da literatura helenística. O romance leva em consideração os horizontes geográficos mais amplos expandidos por meio das conquistas de Alexandre, mas coloca o indivíduo humano no centro da trama e procura reconciliar seus heróis com os poderes do destino que frequentemente parecem tornar a vida sem sentido, culminando num final feliz”. É exatamente isso que podemos constatar no final da Odisséia, quando os patifes pretendentes da amada mais fiel, Penélope, são massacrados pelas hábeis mãos de um Odisseu enfurecido. De Penélope, não são esquecidas as noites e mais noites de solidão a tecer uma colcha que nunca acabava e, se parecia que ia acabar, era desfeita. Como ela poderia dormir com outro homem que não o seu amado Odisseu? No romance antigo, o excesso sexual é cabível apenas em personagens cômicos ou secundários. O romance em seus começos, ao contrário, defendia uma virtude que elevava o tema do sexo a um nível máximo da espera dolente; os amantes preservam sua castidade até o fim. Essa visão do sexo, às vezes ampliada pela vida prodigiosamente exemplar do herói ou da heroína, ganha contornos de uma virtude quase sagrada, sacralizando o sexo que foge do excesso, ou que simplesmente se anula em função – ou com o fito – de guardar a alma pura, neste corpo que lha aprisiona. Na Antiguidade Tardia e na Idade Média, principalmente, tal visão do sexo como “coisa suja”, “anti-heróica” e imoral, quando feito fora da alcova, por “simples prazer” ou antes do matrimônio, não somente foi ampliada como foi condenada em sua prática. Não havendo um meio racional de prevenir os pares contra a libertinagem, usavam-se as penas legais e, se não fossem suficientes para apagar tanto fogo, as penas capitais que recomendavam a alma do leviano e da leviana ao fogo do inferno aquecido cinco vezes mais. A Igreja, zelosa da moral e do poder simbólico imposto através de tanto medo reunido, tornou-se governanta (embora tenha se autoproclamado mãe) e mestra, e, às vezes, juíza e carrasco. A voz oficial da Santa Madre Igreja, por séculos a fio, fez a noite, o álcool, as mulheres (era uma época machista mesmo!) e o sexo, de algum modo, terem parte com o Diabo. Mancomunados com ele e olhados (às vezes vigiados) com desconfiança, estavam os poetas, os bêbados e os amantes incontinentes, como no exemplo de Propércio.
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(Nos bancos que margeiam o busto de Lutero, no campus da EST):
TIAGO – Óo, gente; vamo ali no Cachorrão beber umas Polar e comer umas fritas...
CHARLES – Bah! Nem posso!
BENITO – Ué? Por quê?
CHARLES – Porque tenho que fazer umas lições de hebraico e...
GRÉGORI – Ôoo, mas ainda é cedo, Charlinhooo... A noite é uma criança!
CHARLES – E vocês são os brinquedos dela!
PATATIVA – Ah, Charles; cala a boca!

Um comentário:

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