quinta-feira, 18 de março de 2010

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Da teoria do romance e do “superpoderio da realidade”. O quarto capítulo de Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia, de Lourdes Conde Feitosa, com a primeira edição de 2005, tem “A expressão popular nos grafites” como título. De um modo muito sério e lúcido, Lourdes Feitosa reúne e comenta vários documentos e registros de “grafites” de apelos amorosos encontrados nos muros de Pompéia, pequena cidade da Campânia romana (Colonia Cornelia Veneria Pompeiorum) que, como é de conhecimento geral, foi completamente soterrada pelas cinzas do Vesúvio na noite de 24 para 25 de Agosto de 79 d.C. Não sendo uma das mais importantes cidades da Campânia, e havendo sido interditada por Nero, conforme registros de Tácito, Pompéia só seria encontrada 1600 anos depois, em 1763, por puro acaso: quando se descobriu em suas ruínas uma inscrição com o seu nome. E aí foi que, também, se descobriram os grafites que, aqui, nos interessam. “O tema amoroso”, diz Lourdes Feitosa, “é um dos mais correntes em grafites pompeianos e foi expresso por meio da escrita e de desenhos”. É evidente que tais expressões não são exclusivas dos pompeianos, e Lourdes Feitosa tem consciência disso: “Povos de diferentes culturas e tempos históricos deixaram representações de tipo sexual”, ela diz. O tema amoroso é comum tanto às classes mais ricas (os honestiores) quanto às mais pobres (humiliores). Nos grafites (graphio inscripta) pompeianos, gravados com pincéis e estiletes (graphium), nos que resistiram ao labor dos dealbatores – rabalhadores que tinham por ofício a limpeza das paredes –, podemos ver a urgência do que ama em querer haver o seu objeto (“Amethusthus nec sine sua Valentina” [Ametusto não vive sem sua Valentina]); vemos também a dor ante a recusa amorosa (“Marcellus Praenestinan amat, et non curatur” [Marcelo ama Prenestina, e não é correspondido]) e o desespero que implora (“Rogo, domina, ut me ames” [Peço, senhora, me ame!]) e pragueja: “Quisquis amat pereat” (Que morra todo aquele que ama!). Diferentemente da escrita de elite, conservada em bibliotecas e locais privados, o grafite faz parte – como ocorre ainda hoje – da cultura popular; esta que não faz floreios para dizer o que realmente sente. Não posso deixar de mencionar que a expressão “cutura popular”, desconhecida nos tempos de Pompéia, somente surgiria no século XIX, na Europa, servindo para destacar o modo holístico de se falar de uma cultura única ou geral, conforme cada sociedade e suas particularidades tais como: lendas, crenças, canções, costumes, et cetera. Tal linguagem, porém, serve para que façamos a diferença entre a escrita fechada e esta, a do grafite: aberta, gritada ao público, aí, na rua, nos muros. Enquanto a fechada se destina a uma elite que pode tê-la, o grafite serve ao comum (humus), às classes populares (plebs), ao vulgo (vulgus) e à multidão (multitudo) que transita alheia à própria noção de arte e cultura. De fato, e mesmo onde havia, no mundo romano, alguma facilidade de obras de literários - como Virgílio, Tibulo, Ovídio, Catulo, Lucrécio, Tiburtino e Propércio, dentre outros - serem direcionadas ao público em geral (mas nem tão geral assim) e variado, o grafite se voltava para a maioria quase absoluta, às vezes nem carecendo ser lido para ser compreendido. Além do mais, como no caso exemplar de um grafite escrito a três mãos, havia a possibiliade de o leitor intervir/interagir no (com o) “texto”, dinamizando-o conforme sua opinião mais imediata. Neste, pompeiano, lemos:

a) Amantes, ut apes vita[m] mellita[m]
b) Valle
c) Amantes, amantes cureges


Ou, na sua tradução:

a) Os amantes, como as abelhas, buscam uma vida doce
b) Antes fosse assim!
c) Amantes, amantes, precisam e de tratamento!


A sabedoria popular, como a cultura, é cheia de riquezas. O amor, aí, à Vênus associado (“Essas inscrições sinalizam o sentido que Vênus toma entre populares de Pompéia, uma deusa íntima e acessível à condição de humanidade, a companheira que recebe os sinceros sentimentos das almas em júbilo ou tristeza, experimentados em cada vivência de amor.”), serve também de ponto crítico-simbólico demonstrativo do fracasso do ideal sob o peso do mundo fenomênico, o mundo dos não-poetas, da gente “menor” que anda a pé pelas ruas e vê a realidade sem fantasias. A idéia de cultura popular como “coisa inferior”, “cópia da erudita” (como o “artesanato”, no lugar da “arte”), como aparece na inscrição, precisa ser reavaliada. Vênus é tão íntima que, numa inscrição que denuncia uma grande desilusão, recebe ameaças severas: “Quisquis amat ueniat; Venire uolo frangere costas. Fustibus et lumbus debilitare deae: si pot[is] illa mihi tenerum pertundere pectus, quit ego non possim caput illae frangere fuste?” (Que aqui venha quem ama: quero quebrar as costas de Vênus a pauladas e deixar o seu lombo machucado. Se ela pode trespassar meu terno coração, por que não poderia eu rachar sua cabeça com um pau?). Nos compêndios da “história do amor”, os sentimentos e os seus resultados são sempre os mesmos, ontem e hoje; a única coisa que muda é a sua descrição: o estilo narrativo. Por todos os modos, tempos e lugares se constata: não há romantismo que resista a um só dia de “superpoderio da realidade”; é o que me sopra Adorno, fazendo referência a Georg Lukács em A teoria do romance, de 1962. A teoria do romance (Die Theorie des Romans: ein geschichtsphilosophischer Vesrsuch über die Formen der Grossen Epik), embora seja uma obra da juventude de um Lukács pré-marxista, ainda sob a grande influência de Hegel, denuncia que o romance, enquanto gênero literário, está coincidentemente associado ao advento da burguesia. O trabalhador no campo ou o operário na fábrica, na cidade, sem tempo e sem dinheiro para comprar livros – e, caso tenha dinheiro, falta-lhe o tempo para o ócio da leitura – sabe que o amor, mais que uma categoria conceitual, é uma prática que se faz a dois, e que resulta em três, quando a mãe é boa de cria. Se isso parece frio e sem poesia, é que o mundo da vida (ou “a totalidade extensiva da vida”) é mesmo assim. Não há romantismo que resista a um só dia de “superpoderio da realidade”. Amantes, amantes cureges.

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