quarta-feira, 17 de março de 2010

38
.

Do destino cego e de um sonho de Kaspar Hauser. A montagem de Irreversible (2002) é, conforme o meu juízo estético, perfeita. O filme, como já disse em outro texto, é dirigido pelo franco-argentino Gaspar Noé e estrelado pela belíssima Mônica Belluci. Começa pelo fim, literalmente: créditos, confusão, destruição, violência... O começo é uma praeparatio finis, preparação para o final. Do mesmo modo, Noé nos diz, também é a nossa vida, nosso nascimento – em Carne, curta-metragem de 1991 que ele escreveu e dirigiu, a mesma metáfora é utilizada. Noé, como Werner Herzog, sabe ver mais além do que a beleza esconde. Duas cenas fortíssimas de Irreversible - a do estupro e a do estuprador tendo o rosto esmagado por um extintor – são metáforas da vida que se vê aí, mergulhada na violência do dia-a-dia daquele que ama, que diz amar e, por isso, faz escolhas, elege o seu objeto. Toda eleição implica em alguma rejeição; e ser rejeitado dói. No entanto, tanto para o que escolhe quanto para o que é escolhido, o caminho é um só, e vai dar em um mote comum, inevitável: pólemos, dor, sofrimento – essa é a regra, nunca a exceção. No final de Irreversible, que é o seu início, a cena é tão bela e cândida quanto pode ser: a violentada, antes da violência, deitada na grama verde, lendo um livro, alheia ao mundo, cega ao seu destino; crianças brincam, gritam, correm à sua volta; os regadores respingam água, alimentando a vida semeada, fecundando a terra... A mensagem, aí, é: o mundo parece perfeito até que se veja a que destino ele se dirige. Outra imagem de igual conteúdo é aquela que Kaspar Hauser conta de um sonho seu, em O enigma de Kaspar Hauser (1974), perturbadora história real – e perfeita ilustração para a teoria do homem natural de Jean-Jacques Rousseau - levada às telas pelo genial Herzog: um homem sobe um íngrime monte com toda a dificuldade do mundo, sem poder ver claramente quem é que vai à sua volta, quem vai acima ou abaixo dele, e sem saber muito bem porque tem de fazer isto, porque tem de subir. A própria vida de Hauser revela o enfado que é viver, e a luta que é aprender a ser humano, humanizar-se para, no fim... nada: o destino é uma facada nas costas, e o assassino cruel é desconhcido; tão enigmático é o começo quanto o fim, e a única verdade que se tem é: viver, dói. Na última tomada de Irreversible, por fim, a câmara vai girando e subindo, girando e subindo, girando e subindo... E quando tudo vai escurecendo, parecendo ter acabado, vem o texto final, conclusivo, profético-escatológico: “O tempo a tudo destrói”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo