quinta-feira, 1 de abril de 2010

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Da construção da identidade individual e do Outro como problema e solução. A construção da identidade indivíduo-social é um processo lento, carente da memória, dos relógios, dos calendários e, acima de tudo, da vida vivida, experienciada. Aí, os acontecimentos, por menores que sejam – e eu não ignoro que a nossa memória preserva umas coisas e descarta outras, conforme um mecanismo próprio de defesa –, requerem interpretações, hermenêuticas, critérios de/para escolhas várias. Sim: mais do que uma memória individual, a memória quer ser memória coletiva – embora lute para manter a sua identidade própria: o Eu que me penso e, partindo de mim, penso sobre o Outro, sobre o Mundo. O problema é que a identidade individual só se constrói a partir das identidades coletivas, desses outros. É nela que, desde cedo, me espelho, me faço, me humanizo, me reconheço, me aproximo e, para continuar sendo eu mesmo, também me distancio, quero me distanciar. Isso explica, grosso modo, o desejo que temos de que aquilo que alimenta o nosso desejo (o objeto amado, por exemplo) seja, para o desejo do Outro, conhecido, apreciado, desejado; mas, por ser nosso – o sentimento de posse é inevitável –, restrito a esse Outro. O que queremos, dele, é só o desejo do/por nosso desejo; como uma criança que desafia a outra: “O meu jogo é melhor do que o seu!” Nós nunca crescemos realmente; o que crescem são os objetos dos nossos desejos. O Outro, acerca do nosso objeto, não deve ter mais do que o desejar: desejar o nosso desejo. Essa é a única liberdade que lhe damos, lhe permitimos ter, no mais comum dos casos, no mais comum das vezes. O Outro deve querer o que eu quero para que eu mesmo continue querendo o que, agora, quero, é meu. O não-querer do Outro, para o que é meu, enfraquece o meu próprio querer, me faz duvidar do valor que lhe atribuo. Coisa rara, raríssima, é ocorrer o contrário. Há, pois, o querer individual que quer e deseja o desejo de querer do querer coletivo, e do Outro, indivíduo isolado como eu, e, aí, mirado – mas isso sob limites, sob muitos limites: para que esse querer, na sua progressiva e natural expansão não “engula” o querer individual, despersonificando-o, inautênticizando-o. Como se vê, é um carnaval canibal (para usar uma expressão de Baudrillard); como se vê, é um dilema permanente. Pois é assim também que o amor que dizemos ter por outrem precisa, mais do que a sua aprovação, ter a aprovação do Outro, a aprovação dos outros. Um elogio à mulher amada ou ao homem amado é, indiretamente, um elogia àquele que a ama, àquela que o ama – nós mesmos. Uma palavra depreciativa, de igual modo, é o contrário disso. Que efeito medonho não causa em nosso espírito a chacota dos amigos que dizem: “Fulano, meu amigo, como é que você não tem vergonha de sair por aí com essa marmota! Pelo amor de Deus, homem!” Ou ainda: “Fulana, querida: isso é mau gosto mesmo ou falta de opção?”, ou et cetera e mais et ceteras sem fim... Isso tudo, assim dito, bem pode explicar o esfriamento de certas paixões, de certos quereres. O problema e a solução estão, afinal (oh, terrível contra-senso!), no Outro. Daí Sartre (Entre quatro paredes, 1944), com razão, dizer que é aí que o inferno habita.

3 comentários:

  1. Ontem eu tive certeza disso moço lindo. O infernos são mesmo os outros. Beijos.

    Alice.

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  2. Que texto racional e bem direcionado! um desabafo,igual a uma seta que atinge bem no centro de um alvo.

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  3. Vou largar a medicina e fazer ciências sociais...

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patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo