sexta-feira, 12 de junho de 2009

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Da fortuna. Quando meu avô virou adubo, foi uma festa. Casa cheia, gente na sala, na cozinha, gente por todos os cantos. Os meninos brincando no quintal, e eu entre eles; as crianças não entendem o mistério e o sofrimento que traz uma desencarnação como aquela; só entendem o espetáculo: o mundo é céu ou inferno, sem as divagações contemplativas do Magnum Mysterium – sem a ratio é a experientia pura, ou a experientia docet, como Levinas diria. “Parem já com isso!” Dizia um. “Vão brincar mais longe!” Dizia outro. O mundo das crianças não é o mundo dos adultos. Dasdores, que Deus a tenha em bom e espaçoso lugar, que o diga. Nunca aprendeu a ser adulta, sempre criança. As pessoas diziam que ela era retardada em oito anos. Aos dezoito, tinha uma mente de dez. E o retardo, depois daí, parecia só aumentar. Assim, aos trinta, parecia ter somente oito ou nove anos, ou menos. “A bichinha!” Diziam os que se apiedavam da mulher-criança. “Veio ao mundo somente para sofrer!” Diziam as más línguas – ou não tão más assim – que o pai, aproveitando-se da sua ingenuidade de criança e do seu corpo de mulher, servia-se dos seus dotes sexuais. Mas isso ninguém nunca pôde provar. “O povo fala demais, e de tudo”, ele dizia. “Tem gente que, quando morre, precisa de dois esquifes: um pro corpo e outro pra língua”. O certo é que Dasdores, que não conhecia homem nenhum, pelo menos era o que todo mundo pensava, apareceu, assim, do nada, grávida. Aquilo, com certeza, não era obra ou graça do Espírito Santo. Que fosse uma obra não havia quem o negasse, mas não tinha graça nenhuma. “Meu Deus! Que escândalo!” A família em pânico. Quem teria embuchado a retardada; pobrezinha... E ela não dizia nada, nem mesmo sob as ameaças da mãe doente e da irmã mais nova que, com o tempo, assumira uma postura vigilante-ditatorial em benefício da segurança da irmã doida e da honra familiar. Tempos depois, quando não era mais possível esconder a barriga da infeliz, ela foi enviada à casa de umas tias velhas que moravam distante. “Assim ela pode dar à luz ao vivente em paz e escapar do falatório desse povo maldito. Tem gente que tem prazer na desgraça dos outros”, diziam às tias, procurando convencê-las a cuidarem de Dasdores. Meses depois a notícia: o menino nascera morto. Nem chegara a ver esse mundo desgraçado. Dasdores, depois de um período de descanso, foi enviada a um convento para ser guardada pelo Senhor e pelos muros enormes que protegiam o santo lugar. “Aqui ela ficará bem”, disse a madre superiora, despedindo-se da família. “Eu sei, madre, por isso que a trouxemos para cá”. Respondeu o pai, numa tristeza disfarçada de alegre alegria. “Nos dias determinados os senhores poderão visitá-la, conforme o tratado”. E assim foi. E assim passaram-se os dias que viraram meses, e os meses que viraram anos. Estranho foi quando, ó infortúnio!, Dasdores apareceu grávida novamente. Outro escândalo; desta vez não somente para a família, mas também para o convento. “Deus, amado!” Diziam as irmãzinhas em polvorosa, “quem teria engravidado a irmã Dasdores?” Cogitou-se a possibilidade de ter sido o padre Zé Vicente que, meses atrás, havia sido enviado a pastorear uma pequenina paróquia em Pinheiros, para escapar aos comentários de pedofilia que estavam sendo ventilados por toda a cidade. Pensou-se também se, numa infelicidade extrema, num descuido fatal, Dasdores não estaria grávida do jardineiro que, como ela, tinha uma mente de criança. Eram, afinal, crianças que podiam gerar crianças. Mundo cão! Mas o infeliz, mudo qual uma pedra, não fazia a menor idéia do que lhe diziam, a isso relacionado. Logo foi descartada a possibilidade. Mas, fato dado, quem teria sido o seu artífice? E agora? Fazer o quê? Entreolhavam-se os familiares de Dasdores e as irmãzinhas, coradas de vergonha. A solução que pareceu mais viável a todos e a todas foi enviar Dasdores, novamente, à casa das tias distantes. Elas, tementes a Deus que eram, não rejeitariam a um pedido assinado pela própria madre superiora. Quisera Deus que, como da outra vez, tudo se arranjasse, sem maiores complicações. E assim foi. E assim passaram-se os dias que viraram semanas, e as semanas que viraram meses. Ninguém pareceu se importar muito quando a notícia chegou: Dasdores, dadas as complicações de um parto agonizante, não resistira, morreu ao dar à luz uma meninazinha miúda, esquálida, pálida, viva, porém. A meninazinha, tempos depois, na Paróquia de Santa Helena, seria batizada com o nome de Maria Dasdores, em homenagem à mãe e à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de quem a mãe era devota, mesmo que não soubesse o que era isso. Dizem as más línguas que a menina, por esta data, decorrido apenas um ano do seu nascimento, já demonstra claros sinais de retardo mental. Mas o povo fala demais, e de tudo. Tem gente que, quando morre, precisa de dois esquifes: um pro corpo e outro pra língua.

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