sexta-feira, 26 de junho de 2009

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Da possessividade. O amor de um sempre procura possuir o amor do outro, que é objeto do seu próprio amor; e não há palavra melhor do que esta, para definir o amor: possuir. Era assim que Maria amava Sérgio, que se tornara, ao mesmo tempo, seu doce céu e seu amargo inferno. Se ele estava em casa, mesmo sendo grosso como costumava ser, ela estava bem – pois sabia que ele não poderia estar, ao mesmo tempo, com ela e com “aquelas vadias” da repartição – embora o marido jamais tenha demonstrado o menor sinal de alguma “traição”; e nem precisava, ela ficava louca só de pensar na possibilidade. Assim, mal Sérgio começava a se arrumar que Maria ficava paranóica, perguntando:
– Pra onde é que você vai?
– Pra onde eu vou? Ora, Maria! Vou pro trabalho. Não é isso que faço todo santo dia nessa mesma hora?
– De que horas você volta?
– Volto depois do trabalho.
– Me promete que não vai beber.
– Tá, Maria, eu prometo. Além do mais, você sabe bem disso, já faz é tempo que não bebo, por recomendações do médico.
– Você me liga?
– Pra quê, Maria?
– Ah, só pra ligar...
– Ai, meu Deus! Tá bem, Maria; se você quer que eu ligue, eu ligo “só pra ligar”.
Ele disse, fazendo aspas no ar, com as pontas dos dedos. E era assim que, quase todo santo dia, Sérgio saía de casa, com vontade de não mais retornar para ela, para a sua mulher grudenta, ciumenta, chata e gorda. Ele, cada vez mais, sentia que trabalhava somente para sustentar aquele estorvo que, não sabia como, trouxera para a sua casa, para o seu mundo, para a sua vida. E Maria, como toda mulher, sabia perceber isso muito bem... esse desinteresse do marido: a falta de beijos, o desejo de sexo... ela sabia. E também sentia que, qualquer dia desses, Sérgio sairia para o trabalho e nunca mais retornaria. A idéia de perdê-lo foi crescendo como uma monstruosa avalancha. Pensando nisso, Maria, por noites a fio, não conseguira dormir direito. As noites mal-dormidas deixavam-na ainda mais chata, mais feia, mais gorda e paranóica, sem falar nas profundas e escuras olheiras que desenvolvera. Não demorou muito e ela começou a ver insinuações vindas de todas as partes. Se alguém ligava e Sérgio atendia, ela logo queria saber:
– Quem era?
– O Helinho. Queria saber se vou pra pelada no sábado.
– Era o Helinho mesmo?
– Claro que era, Maria! Que é que tá havendo, hem?
– E você vai pra pelada?
– Isso eu ainda não sei. Tô vendo aqui...
– Se você for, eu vou contigo.
– Que é que você vai fazer numa pelada onde só tem marmanjos, mulher? Ah, isso não será possível; sinto muito.
Não fazer parte da vida de Sérgio em todos os momentos parecia abrir lacunas que caberiam uma galáxia inteira. Ela queria que ele fosse, como disse o padre no dia do casamento, “ossos dos seus ossos, carne da sua carne”. E foi, talvez por isso, que Maria teve a tenebrosa idéia de manter, para sempre, Sérgio junto a si, dentro de si.
Numa abafada noite de outubro, enquanto ele dormia profundamente depois de um enfadonho dia de trabalho no Centro Administrativo, Maria foi até a cozinha e apanhou a faca Ginsu que usava para cortar carne. Aquela faca era, sem dúvida, um exemplar raro de precisão cirúrgica. Os frangos que Maria destroçava com ela, pareciam feitos de isopor, de manteiga... a propaganda da TV não lha enganara desta vez. A Ginsu serviria, sem dúvida, para a realização final da sua união carnal e definitiva com Sérgio; nesta noite ele seria, enfim, seu eterno amor.
Meses depois, diante do juiz, Maria não sabia responder se o Sérgio chegou a acordar quando ela desferira os primeiros golpes sobre ele, bem na região onde fica o coração, o seu coração. Só sabia que, nas semanas seguintes, alimentara-se com as deliciosas carnes do marido, que lhe eram como um banquete celeste, um “maná vindo dos céus”. Fizera com elas os mais diversos pratos, testando todas as receitas conhecidas e imaginárias – pois não queria desperdiçar nada daquele corpo que, agora, de fato, lhe pertencia em sua totalidade. Ela lembrava bem das aulas de filosofia na Faculdade, quando o professor, citando Feuerbach, dizia: “O homem é aquilo que come”. Os ossos, como num ritual sagrado, foram queimados, triturados e, misturados às farinhas, massas e condimentos, transformados em bolos, salgados, tortas, docinhos, quibes, et cetera.
– Maria, Maria! Como você pôde fazer uma loucura dessas?!
Perguntava-lhe o juiz, perplexo ante a narrativa das monstruosidades fundamentadas na filosofia de Feuerbach, na Sagrada Escritura e nas possessividades do amor. Condenaria Maria a 35 anos de prisão, não dispensando, claro, o seu acompanhamento psicológico.
– Se eu pudesse agarrar a alma do Sérgio, sua Excelência – disse Maria, olhando para o teto –, eu a beberia.

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