sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

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Da inocência das crianças. As crianças, entre 4 e 5 anos, começam a fazer perguntas do tipo: de onde eu vim? E fazem assim porque começam a teorizar, não a pensar, pois que já pensam. Qual o lugar da fantasia nessa fase? Qual o valor do mito mais antigo? A afirmação da cegonha não resiste ao tempo, que encarrega-se de limitá-lo à uma fase cada vez mais infantil; aquela que só existe enquanto o acesso às informações externas e ao processo de humanização – como dizem os sociólogos – não se apresentam soberanos. A sexualidade, enfim, está associada desde cedo à curiosidade que faz girar o eixo de todo o nosso pequeno e dançante universo: a questão da finalidade. Crer no absurdo, desde cedo, é certamente o caminho mais curto para que escapemos da importunação da dúvida concernente à existência e sua possível finalidade, ou finalidades. Assim, e por esse viés, chegamos novamente ao problema do amor. Como a idéia de uma entrada imaculada no mundo, mediante a dádiva desconhecida do pássaro de bico longo, assim também é a idéia do amor imaculado (ideal), enquanto acontecimento humano. Alguns indivíduos, por associarem o sexo ao pecado, tentam fazer do amor sensual (erótico) um paradoxo necessário: enquanto a semente fecundante não é expelida sem o prazer, para poder germinar, o amor sensual (Eros) não pode ser sensual, somente um elemento de mérito preservacionista, dissociado do prazer (voluptas). Ainda hoje há grupos sectários que, pasmem, mediante uma hermenêutica para lá de amarelinha, defendem que sexo, segundo as Escrituras, é somente para procriação, para a preservação da espécie. Os que afirmam isso, mesmo sem justa compreensão, fazem coro com Schopenhauer no seu sentido mais puro... Mas erram e se distanciam do autor de O Mundo como Vontade e como Representação de modo absurdo, pois afirmam um amor para além desse, do prazer sexual, que, se pudessem, evitariam. É que tais indivíduos, confusos e confundidores, consignam tudo a uma instância superior, um amor último, finalíssimo, que é o limite de todos os amores possíveis e modelo do que, neles, há de belo, de bom. Amor e prazer, nessa contabilidade maluca, não se misturam. Noutro plano, o prazer (usufruto) esbarra sempre no uso de algo em finalidade de outro algo, e envolvendo alguém (o Outro) – e foi bem aí que se fundaram algumas das doutrinas morais mais antigas. O uso do corpo de um em função do prazer de outro – ou do mero pensamento em função de um prazer artificial –, por exemplo, gerou uma série de questões relativas à sua legitimidade, seu bom fundamento. Acontece que o Outro, nessa relação – mesmo que só evocado em pensamentos –, é sempre objetificado, coisificado; e parece que, embora se diga em grandes linhas que não, não pode ser diferente. E como não o seria? O outro, assim dito, é objeto de um prazer, mediante a sua utilização, seu uso. O problema todo é só conceitual, pelo tom pejorativo que as palavras “objeto” ou “coisa” (obiectum) têm, quando aplicadas a uma pessoa. Tudo o que me é externo, no entanto, é objeto, coisa – pois é só assim que posso me relacionar, mencioná-lo como não-eu; e mesmo as coisas que não vejo, mas que podem ser pensadas, como os números, os símbolos geométricos, Deus, os anjos, et cetera. E o que seríamos de nós se não fossem as coisas que não podem ser vistas? Quando uma criança disser que tem um monstro debaixo de sua cama, Helena, acredite nela.

2 comentários:

  1. bem...
    nem preciso dizer que adorei o texto.
    Uma rflexão oportuna, numa hora excelente.
    Ah,o que seríamos de nós, sem as coisas que não podem sr vistas...
    andei me perguntando isso esses dias...
    Talvez porque pra mim, é dificil acreditar no que não vejo...

    abração.

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  2. E quando uma criança disser que voa, Patativa, acredite também.

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patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo