quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

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Da violência que é amar. Na novela de Prosper Mérimée, Carmem, de 1845, Don José é um homem doente de ciúmes pela cigana infiel que dá nome à obra. O romântico compositor francês, Georges Bizet, trinta anos depois, transformou-a em uma ópera, imortalizando-a de vez. A tragédia do tal ciúme de Don José é anunciada nos versos fortes da ária principal: “Si je t’aime, prends gard de moi”, ou: “Se eu te amo, tome cuidado comigo”. É que o amor – que em sua face mais honesta é apenas amour de soi –, sempre deseja possuir seu objeto, tê-lo para si, para si somente. Don José, vendo-se frustrado, somente se satisfaz quando provê um meio de, não podendo haver o seu amor, impedir que outros o/a possuam, gozem, usufruam desse amor que é seu, seu somente seu. Se ele não pode tê-la, que outros também não a tenham. Mas as histórias de amor nem sempre terminam assim, de modo tão drástico, com sangue e morte e tudo. O que ocorre, muito frequentemente, é o recuo perante o enorme dilema moral, ético: a vida - pelo menos a humana, algo nos diz - é sagrada. E se alguns, mais por uma imposição desse instinto (que arma-se da moral) do que por uma consciência filosófica, não eliminam o objeto do seu amor, do seu sofrimento, deixando que o mesmo, como pássaro perdido, voe por outros céus, para outros galhos, é porque o seu amor-próprio vai muito além daquele que se aninhava no Outro, sendo, porém, o seu. No máximo e no mínimo da ação está, aí (ai de nós!), o amour de soi. Em tais ações, sejam elas quais forem, quando não é a covardia, o laxismo, é a punição, a autopunição. Reconhecer-se como indigno ou resignar-se ante a recusa do objeto amado, é também um modo inconsciente de “partir para outra” e, assim, sofrer menos “por ela”, “por ele”. Mas isso é um enorme de um equívoco! Acontece que, no fim de tudo, todo mundo está só; quando ama ou quando é amado; quando quer o mundo inteiro ou quando não quer nada, nem ninguém. No caso da recusa, arma menor e de menor dano é a depreciação da imagem do amor perdido, ou o convencimento psicológico de que o Outro não valia tanto, como na fábula de Ésopo, A raposa e as uvas: “Uma raposa faminta, ao ver alguns cachos de uvas pendentes de uma certa parreira, tentou apoderar-se deles, porém não o conseguiu. Afastando-se, então, dizia para si mesma: ‘Estão verdes’. Assim também”, conclui o fabulista grego, “certos indivíduos, não sendo capazes, por sua própria fraqueza, de resolver os seus problemas, acusam as circunstâncias.” Daí não ser estranho um amigo dizer ao outro, aconselhando-o a livrar-se de tal sofrimento, próprio, pelo que julga e lhe parece ser tão alheio: “Viva a sua própria vida!", dizem; ou: “Você tem que ter um pouco de amor próprio”, que é o mais comum de se ouvir. Quer dizer: o amor que você deve ter por você mesmo, em tal conselho, deve ser maior do que o amor que você sente pelo Outro. Ora, aí, em tal conselho, não se diz mais do que o óbvio. Sim: em tais casos, o Outro é apenas reflexo de nós mesmos e, na dor ou no riso, é a Vontade de vida que nos impulsiona para esta ou para aquela ação, para a resignação letárgica ou para a violência intrínseca. Que desgraça! Que fatalidade! Don José que o diga. Em suma: cuidado, meus amigos!, cuidado! Muito cuidado com quem ama.

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