sábado, 20 de fevereiro de 2010

27
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Do que se perdeu. Quando escreveu este poema:

Gostava de gostar de gostar.
Um momento... Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa de cabeceira.
Continua... Dizias
Que no desenvolvimento da metafísica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de idéias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel...

Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, tinha toda a história da filosofia em sua cabeça. O início do poema Gostava, para quem conhece, é claramente soprado por Agostinho. Dedicado a Alberto Caeiro, outro heterônomo, Gostava é riquíssimo em imagens e referências. Li o tal, pela primeira vez, se me lembro bem, num canto solitário do segundo andar da antiga biblioteca da PUC-RS, quando fazia meu doutoramento em Filosofia Medieval na tal instituição. Se você observar bem, notará que há três tempos bastante distintos no poema: a frase inicial, deslocada; a intervenção do que pede o cigarro, como se doente estivesse; e o vazio que fica na solicitação de que a conversa, interrompida – que nada tem a ver com a frase inicial –, continue. Trata-se de um texto que, por todos os cantos, evoca a ausência, gritando o seu nome: na incoerência lacunar da frase inicial com o resto do texto, no “algo que se perde” de Kant a Hegel e, finalmente, no que virá depois, mas que não vem... Lacunas. O que se perde, afinal? Longe de propor uma resposta final, penso que a leitura de outros textos conhecidos de Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, que são os heterônimos mais filósofos de Pessoa, podem muito nos acudir nisso: o que se perde é o espanto diante das coisas do mundo, da nossa simples visão das coisas in natura. Trata-se daquele thauma inicial que, conforme Sócrates/Platão no Teeteto (“É absolutamente de um filósofo esse sentimento: espantar-se. A filosofia não teve outra origem...”) e Aristóteles na Metafísica (“Com efeito, foi pela admiração que os homens começaram a filosofar no princípio como agora...”) - mas, aqui em Pessoa, sem os chiliques metafísicos -, foi responsável pelos começos do pensamento ordenado, dialético, filosófico, técnico... Técnica que, em suas engrenagens conceituais, também esmagou o arco-íris, explicando-o. O thauma pessoano, em Alberto Caeiro, aparece assim: “Outras vezes oiço passar vento e acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido”, ou: “O meu olhar é nítido como um girassol. / Tenho o costume de andar pelas estradas / Olhando para a direita e para a esquerda, / E de vez em quando olhando para trás... / E o que vejo a cada momento / É aquilo que nunca antes eu tinha visto, / E eu sei dar por isso muito bem... / Sei ter o pasmo essencial / Que tem uma criança se, ao nascer, / Reparasse que nascera deveras... / Sinto-me nascido a cada momento / Para a eterna novidade do Mundo...” O que se perde é o olhar as coisas é ver que elas não têm que ter um sentido que não o intrínseco, próprio delas, delas mesmas. As coisas não existem para serem pensadas (“Creio no mundo como num malmequer, / Porque o vejo. Mas não penso nele / Porque pensar é não compreender... / O Mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos) / Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...”); para ser pensado é o haver quem pense o mistério das coisas (“O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! / O único mistério é haver quem pense no mistério.”), mas de modo resignado, contido – como a dor de um amor que se não teve, não se pôde ter: “Uma vez amei, julguei que me amariam, / Mas não fui amado. / Não fui amado pela única grande razão - / Porque não tinha de ser.” O que há no mundo é o que pode ser visto e tocado e sentido e mastigado, e isso é a realidade, a única verdade possível: “Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.” E a conclusão, a única conclusão, é a morte: “Não: não quero nada. / Já disse que não quero nada. / Não me venham com conclusões! / A única conclusão é morrer.” Pensar o/no amor romântico é também, na filosofia que tenho, por tal mecanismo, pensei, me aproximar da Ciência e, aí, me distanciar do “sentimento puro”, desse thauma que só vê, e sente, e... ama o sentido, ou o sentimento sem procurar sentido, um sentido. Daí Caeiro me diz, mas sem querer aquela conclusão que recusava: [É por isso que] “Eu não tenho filosofia; tenho sentidos... / Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, / Mas porque a amo, e amo-a por isso / Porque quem ama nunca sabe o que ama / Nem sabe por que ama, nem o que é amar... / Amar é a eterna inocência, / E a única inocência não pensar...” Ai, ai! Caio em mim. Se amar é a eterna inocência, então deixar de ser inocente é o mesmo que pensar (ou filosofar sobre...) o/no amor, como tenho feito. Que escolha tão cruel! Um desvio possível (uma saída, uma opção) é também uma pergunta, e sua resposta: é preciso mesmo fazer tal escolha? Responda a você mesmo e seja feliz no amor... mas eu duvido, e duvido muito.

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patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo