domingo, 23 de maio de 2010

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De um livro de Jacob Needleman e do vício intelectual. O celebrado livro de Jacob Needleman, A little book on love, de 1996 (traduzido no Brasil como “Sobre o amor”), traz, na edição portuguesa, o subtítulo: “Um estudo investigativo do filósofo contemporâneo mais lido nos EUA”. E eu penso, com o livro em mãos: “Quem disse que os americanos mais lidos são boas referências para qualquer coisa que não o pragmatismo e a arte de ganhar dinheiro? Capitalistas filhos da ....!” E penso mais: “Quem disse que há filósofos relevantes nos Estados Unidos?” Tento lembrar de nomes realmente importantes; mas só me vêm à mente, depois dos gregos, dos alemães, dos franceses (e boa parte desses melhor enquadrados na categoria de romancistas), e aqui e ali, alguns ingleses, os nomes dos pragmáticos C. S. Peirce e William James. Os americanos, desde muito, se especializaram em fazer compêndios, sistemáticas. Mas tanto a filosofia quanto a teologia requerem o ócio (otium, que é o oposto de negotium: “negócio”, “ocupação”) - coisa que eles condenam. Não por acaso, as piores das piores teologias e as piores das piores heresias modernas (levando-se em consideração a teologia mais ortodoxa, ou a reformada) são obra e arte dos sobrinhos do Tio Sam.

Não nego que, nos EUA, exista uma enormidade de filósofos brilhantes e teólogos capazes e bem intencionados; mas eu falo, aqui, de originalidade essencial, “sem a qual o mundo não seria a mesma coisa”: como o que foi feito por Schopenhauer (e Darwin e o budismo estavam aí, por trás, como a trama onde a bordadeira tece a sua arte), por Nietzsche, por Heidegger, et cetera. Americanos! Time is money! É por isso que dou o maior dez aos três contos de Arturo Gouveia (“A primeira porta”, “Pelos pobres de Tegucigalpa” e “Mais-que-perfeito”), reunidos no capítulo “Thanatos também te contempla”, do livro Santíssimas trevas, de 2008 (segunda edição). “Ok”; é verdade que Jacob Needleman (66 anos), de acordo com uma entrevista que deu à revista Super Interessante em julho de 2001, anda por aí apregoando a máxima de que o “dinheiro não traz felicidade”. Também sei que ele tem muito dinheiro; e ganha outro tanto como professor de filosofia na San Francisco State University, atuando como consultor nos campos da psicologia, educação, ética médica, filantropia e negócios (Sócrates riria muito de tudo isso). Sei, por fim, que ele ganha ainda mais dinheiro vendendo os livros que ensinam que não é preciso ter dinheiro para ser feliz, e que o amor é a salvação do mundo, e o respeito ao Outro, e isso e aquilo... Coisas que cabem bem no vício de alguns intelectuais que mantêm o mundo no mesmo, dizendo o que as pessoas já sabem, mas que querem ouvir, do modo que não sabem dizer.

O “estudo investigativo” de Needleman não é mais do que uma sistematização – bastante superficial, é bom dizer – sobre o tema do amor, e sempre condicionando-o ao amor romântico que tem seu modelo exemplar no “Hino ao amor”, do apóstolo Paulo - que ele transcreve por inteiro, reverenciando e utilizando-o no capitulo final (capítulo 12, “A prática do amor”) e na Conclusão, citando trechos inteiros, numa pálida tentativa de interpretação que não merece o nome de “hermenêutica”. O capítulo 13 da primeira epístola de são Paulo Aos coríntios, nada tem a ver com “amor romântico”. O “Hino ao amor”, em Needleman, mantém-se no status de modelo de conduta amorosa. E assim o vício intelectual fica assegurado; e o engodo secular mantém-se inalterado. Mas esse status do “Hino ao amor” é lugar comum na obra de muitos filósofos, e Needleman não é exceção entre tantos – confirmando a nossa crítica de que o seu Sobre o amor, não é mais que “mais do mesmo”. Vício intelectual é, às vezes, má-fé.

É compreensível que filósofos cristãos, mesmo os existencialistas (como Karl Jaspers, Gabriel Marcel, BJ Kumar Christie, e outros), mantenham tal vício – pois lhes é bastante conveniente –; mas é inadmissível que se fale tanto sobre “os cem nomes do amor” e não se defenda que ele é um só, e que pode ser simplificado numa única palavra: Vontade, Vontade de vida. O romance, a trato cortês, a conquista e tudo o mais que envolve a moral cristã e a moral ocidental, relativa ao sexo, à procriação, é mera maquiagem que visa encobrir o “feio” que é o coito, que tem sua prática, íntima, guardada para a privacidade das câmaras, das quatro paredes. O coito público é punido e condenável como atentado ao pudor.

O capítulo XI, “O amor”, no livro Kleine Schule des Philosophischen Denkens (“Introdução ao pensamento filosófico”, 1965), de Jaspers, é também “mais do mesmo”. Só o amor elevado à categoria do amor pelo feio (ágape), poderia fazê-lo concordar com Kierkegaard: “Kierkegaard tinha razão ao dizer que a mulher se torna mais bela com os anos”, ele diz; concluindo, porém, que tal beleza “só pode percebê-lo o homem que a ama”. Não há mistério: é uma beleza enxergada pelos olhos do ágape cristão, ou do bhakti (submissão ao Outro), indiano. Mas aí, tanto em um como em outro conceito, o divino está no Outro, que transforma-se em “meu próximo”, pois também imago Dei, como eu; ou parte do próprio divino: bahkti. Em um dos parágrafos finais do capítulo XI, Jaspers revalida a moral cristã e o amor ágape como modelos, dizendo: “Se houvesse alguém capaz de viver na clarividência do amor, ser-lhe-ia aplicável o dito de Santo Agostinho: ‘ama e faze o que quiseres’. Como, porém, somos todos homens, sujeitos ao engano e à cegueira, expostos à ação de forças hostis ao amor, não podemos viver sem restrições. Todo amor que, por exemplo, transgrida os Dez Mandamentos, já não será amor, mas, subjugado por paixões estranhas, estará utilizando mentirosamente o rótulo do amor”. O inverso do dito, é bem verdadeiro. E Jaspers, definitivamente, não foi justo com o bispo de Hipona, interpretando-o assim.

Inadmissível, por fim, que tanto Jaspers quanto Needleman não mencionem Schopenhauer em suas investigações sobre o amor. Needleman chega a falar de Rilke, utilizando-se de longas citações do poeta alemão – aquelas que louvam o amor conforme o modelo cristão, ou como “resultado do esforço”, do “querer amar” –, mas não menciona que ele (Rilke), dentre outras, teve um amor impossível com Lou-Salomé (que só conseguia ser fiel a si mesma), que compartilhava das idéias de Nietzsche (com quem também teve um caso até hoje mal explicado), e que foi aluna de Freud (ateu declarado), e que todos esses aí são discípulos, de um modo ou de outro, de... Schopenhauer.

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