terça-feira, 4 de maio de 2010

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Das origens do discurso libertino. Em 1956, em Paris, Salvador Dalí repete as mesmas palavras que, já em 1952, usara em elogio à cidade das luzes, dizendo: “Insisto em fazer esta comunicação em Paris porque a França é o país mais inteligente do mundo, o país mais racional do mundo...” Trata-se do primeiro parágrafo do panfleto Le cocus du veil art moderne, em que o exótico artista espanhol critica, dentre outros, Picasso, Miró, Le Corbusier, Cézanne, Mondrian, et cetera. Esses, para Dalí, são responsáveis, dentre outras diabruras, por introduzir a arte feia, de mau gosto, na arte moderna, seguindo o fio condutor que principiara com a adolescente ingenuidade romântica de Arthur Rimbaud, que dissera: “A beleza sentou-se em meus joelhos e estou fatigado dela.”
Há quem afirme, e com boas razões, que a filosofia deslocou-se da Grécia para a Alemanha, e para a França. De fato, e a título de exemplo, a França – principalmente do século XVII em diante - não somente exportou estilos da (ou para a) moda, produtos de coqueteria e culiária como, também, “visões do mundo”, leituras dele, da vida vivida: na arte, na política, na literatura. Paris não é a cidade das luzes (La ville-lumière) somente porque, em 1828, e antes de todas as cidades da Europa, usou uma quantidade absurda de lâmpadas de gás para iluminar o Champs Elysées, mas, também, por sua influência na educação, na arte e na cultura mundial. Assim, e por isso, quando procuramos os primeiros discursos sobre o amor libertino – por desobedecer àquela ordenança da Sagrada Escritura que vê o coito como mero ato reprodutivo, em obediência a Deus e por amor a ele, e isso tudo, evidentemente, dentro de uma legitimidade moral: o casamento cristão – no Ocidente pós-medieval, é na França, principalmente no testemunho literário, que encontramos seu embrião, notadamente nos séculos XVII e XVIII.
Luiz Roberto Monzani, em “Origens do discurso libertino” (1996) - artigo do qual tomei de empréstimo o título e a inspiração –, faz justamente essa volta aos séculos citados, para mostrar que, até aí, “se excetuarmos o epicurismo, a Antiguidade e a época medieval sempre mantiveram uma concepção similar do ponto de vista ético”. E que ponto de vista seria esse? Aquele que, fundamentado numa certa fé na razão, acreditava que as paixões, em favor do Summum bonum, deveriam ser domadas: “Conhecendo-o [o Summum bonum] ele [o indivíduo] o amará. E esse amor ao bem é que deverá guiar e ordenar a dinâmica de suas paixões. Assim, existe uma estrutura teológica objetiva à qual, em princípio, todos os sujeitos devem submeter-se.” Monzani lembra que, em Tomás de Aquino, a felicidade humana está consignada à contemplação de Deus, real Summun bonum. “Colocadas as coisas dessa maneira”, diz ele, “uma certa ordem das paixões impõe-se, onde o amor é o antecedente que engendrará o desejo e, por fim, teremos a deleitação, segundo a ordem da consecução (não da intenção)”, assim:

1) Amor / Ódio
2) Desejo / Aversão
3) Prazer / Desprazer

É, como se vê, uma antropologia sentimental de inspiração teológico-finalista, em que o objeto ou é amado ou odiado, desejado ou repudiado, trazendo isso tudo o prazer ou o seu contrário. “Essa teoria, longa e pacientemente elaborada, perdurou por séculos e não irá, por assim dizer, desaparecer na Idade Moderna. Mas deixará de ser soberana e passará a coexistir com uma outra, sob muitos pontos de vista oposta.” Essa nova teoria é a que se imporá, mais precisamente, nos séculos XVII e XVIII, na França libertina. Talvez o seu maior representante seja Donatien Alphonse François, mais conhecido como Marquês de Sade. Se seus biógrafos estiverem certos (Paul Ginisty, La Marquise de Sade [1901]; Henri d’Alméras, Le Marquis de Sade: l’homme et l’écrivain [s.d.]; Jacobus X, Le marquis de Sade et son oevre devant la science médicale et la littérature moderne [1901], dentre outros), foi a frustração e a tristeza de ter casado com a senhorita Montreuil - e não com a irmã mais nova desta, a quem amava e viu ser colocada em um convento - que levaram o Marquês à libertinagem: o que lhe renderia, quatro meses depois de casado, seu primeiro cárcere, em Vincennes.
O amor lírico, ideal, romântico, ordenado, viu em Sade um adversário legítimo. Não poucas vezes, e não havendo prova melhor, o Marquês seria acusado de insanidade, levado às prisões e manicômios. Mas, mesmo aí, ele escrevia. “As obras do Marquês de Sade constituem um objeto da História e da civilização tanto quanto da ciência médica”, afirma Eugen Duehren, complementando, depois: “Há ainda um outro ponto de vista que faz das obras do Marquês de Sade, para o historiador que se ocupa da civilização, para o médico, o jurisconsulto, o economista e o moralista, um autêntico poço de ciência e de novas noções. Essas obras são sobretudo instrutivas porque nos mostram tudo o que na vida se encontra estreitamente vinculado com o instinto sexual que, como o reconheceu o Marquês de Sade com uma perspicácia irrefutável, influi sobre a quase totalidade das relações humanas de uma maneira qualquer. Todo investigador que quiser determinar a importância sociológica do amor deverá ler as principais obras do Marquês de Sade. Nem mesmo no nível da fome, mas acima, o amor preside no movimento do universo.” “Talvez achem as nossas idéias muito fortes”, dizia Sade, perguntando, desafiador: “E o que isso significa? Não adquirimos o direito de dizer tudo?” O Renascimento e a Ilustração pareciam ter dado ao indivíduo essa autonomia do/no pensamento. Mas o “direito de dizer” era/é racional, e a moral dominante não pensa de modo racional; ainda mais quando fere o status quo da elite ofendida.
Na introdução que faz a’O corno de si próprio e outros contos (2009), de Sade, Guillaume Apollinaire diz que “um grande número de escritores, filósofos, economistas, naturalistas, sociólogos, desde Lamark até Spenser, encontrou-se com o Marquês de Sade, e muitas das suas idéias que apavoraram e desconcertaram os espíritos de seu tempo ainda são completamente novas”. De fato, o próprio Monzani, em quem me inspirei para a redação deste texto, não menciona Sade; e não por julgar sua contribuição irrelevante à época que analisa, mas, provavelmente, por uma delimitação autoral – o divino Marquês é tema de outro capítulo no livro em que o texto de Monzani se encontra: Libertinos libertários (1996) - que, julgo, faz o seu artigo pecar por evitar o nome do maior de todos os libertinos, precursor da revolução sexual e ícone do individualismo moderno. Lido enquanto teoria filosófica, com base no materialismo do século das luzes e nos enciclopedistas, “o romance de Sade oferece um sistema de pensamento que desafia a concepção de mundo proposta pelos dois principais campos filosóficos no contexto da França pré-republicana: o religioso e o racionalista”, diz Daniel Serravalle de Sá, no artigo O Marquês de Sade e o romance filosófico do século XVIII (2008). Acontece que as palavras libertin, libertine, libertinage e libertinisme estão, por assim dizer, associadas à França do século XVIII, onde triunfam as idéias que representam: aquelas que se realizam com a crise do catolicismo e o triunfo da Revolução Francesa, e que aparecem como gênero literário predominante entre alguns pensadores e literatos do período. De tais autores, aqui, me interessam aqueles que se abstraíam dos modelos morais vigentes, principalmente os que se relacionam à moral sexual – e é aí que Sade reina absoluto. Outros autores que merecem destaque, e que não aparecem no texto de Monzani, são: Restif de La Bretonne (Nicolas Edme Restif) e Choderlos de Laclos (Pierre Ambroise François Choderlos).
Restif é autor de uma novela que se remete a um conto de Sade, Justine (1781), a Anti-Justine ou As delícias do amor (L’Anti-Justine, ou les Délices de l’amour, 1798). Choderlos, por sua vez, escreveu As ligações perigosas (Les liaisons dangereuses, 1782), em que as relações de um grupo de aristocratas, retratadas por meio de cartas trocadas, mostram quão ociosos e sem escrúpulos são os nobres, que se empenham em destruir as reputações de seus pares. O foco do enredo é o Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil, que manipulam e humilham os demais personagens por meio de intrigas, jogos de sedução, traições e amores nada divinos. São libertinos no modo mais pejorativo da palavra. De uma e outra maneira, o libertinisme se mostra não como uma escola filosófica, mas como um gênero artístico-literário que abraça diversos autores com visões diversas do mundo, da moral, da religião, da política, da arte, et cetera. O gravurista e ilustrador britânico William Hogarth (que, atravessando os séculos, influenciaria artistas como Goya, Greuze, Whistler e Hockney), por exemplo, conhecido por suas sátiras político-culturais, na sequencia de quadros sobre os “costumes morais modernos”, pintou a “cena de taberna”, para O progresso do Libertino (The Rake's progress, 1732-33). Aí, Hogarth retrata a vida boêmia e libertina da Londres de seu tempo, numa clara alusão contraposta ao puritanismo de O progresso do Peregrino (ou, em seu nome completo: The Pilgrim's progress from this world to that which is to come [O Progresso do Peregrino deste mundo àquele que está por vir]), que é uma alegoria da vida cristã, escrita em publicada na Inglaterra de 1678, por seu patrício, John Bunyan.
É um novo tempo, um tempo de virada cultural, virada político-histórica. Por trás de tudo está, antes dos eventos que eclodem com a tomada da Bastilha, simbólica (pois a Bastilha, na ocasião, estava praticamente vazia), e a Revolução Francesa (14 de Julho de 1789), a visão destoante daquela da Igreja cristã medieval: visão de um aniverso atômico, mecânico, governado por leis próprias. Tanto Hobbes (Leviatã, 1651) como Descartes (Discurso do método, 1637) souberam captar os ventos desse novo tempo em que “não existe nenhuma finalidade objetiva inscrita no âmago da realidade. Não é difícil perceber que é toda a concepção clássica [...] que cai por terra” (Monzani). Para Hobbes, os jogos da paixão – como aparecem tão bem ilustrados em As ligações perigosas, de Choderlos - não são mais do que esforços (endeavour, conatus) individuais com vistas a uma finalidade individual: o instinto de conservação ou, mais exatamente, de afirmação e de crescimento de si próprio. E é assim que o homem se faz lobo do homem (Homo homini lupus), e é assim que, com vistas a tal finalidade, todos lutam contra todos (Bellum omnium contra omnes). A finalidade do endeavour (conatus), não sendo mais o culto a Deus, é culto a si mesmo, em obediência ao Desejo - como John Locke tão bem soube sumariar: “A uneasiness [mal-estar, insatisfação] que um homem sente em si mesmo pela ausência de alguma coisa, cujo desfrute presente traz consigo a idéia de deleite, é aquilo que chamamos de desejo” (em: An essay concerning humn understanding, 1698). Étienne Bonnot de Condillac questionará a afirmação de Locke, sem negá-la em sua essência, mas em sua estrutura: “Ao querer definir o desejo ele o confundiu com a causa que o produz. A inquietude [uneasiness], diz ele, que um homem sente em si mesmo pela ausência de uma coisa que lhe daria prazer se estivesse presente é aquilo que chamamos de desejo. Logo seremos convencidos de que o desejo é uma coisa distinta dessa inquietude” (em: Traité des sensations, 1749).
Aqui, como se vê, há uma inversão da ordem clássica dos desejos que, para além da postulada finalidade que se volta para o amor divino, em obediência a um modelo hierárquico estabelecido pela Escritura e pelos seus intérpretes, a exemplo de Tomás de Aquino e outros. O desejo, diz Condillac, não é primordial – pois é um fenômeno derivado -, mas, sim, o prazer ou a dor que, nessa relação dinâmica, são “os únicos princípios dos meus desejos” (Condillac). Assim, se num primeiro momento a filosofia clássica consignava a felicidade pessoal à aceitação de um bem que ordenava as paixões individuais, domando-as (Amor/Ódio), em Hobbes, num segundo momento (Desejo/Aversão), há uma inversão dessa ordem – pois o lugar daquele Summun bonum é substituído pelo endeavour (conatus), em função de si mesmo... uma, já, vitória do indivíduo (individuus), da individualité (conceitos inexistentes, no sentido moderno, nos modelos antigos e clássicos). Com Condillac, portanto, inaugura-se uma terceira inversão que, segundo me parece, ainda é atual e responde satisfatoriamente às atuais análises das afecções. “De agora em diante”, diz Monzani, interpretando o Traité des sensations, de Condillac, “a ordem inicial clássica foi totalmente invertida, pois o esquema agora é:

1) Prazer / Desprazer
2) Desejo / Aversão
3) Amor / Ódio


[...] O Traité des sensations mostra de forma inequívoca o primado da dimensão passional sobre a dimensão teórica”. Algo muito próximo do “sentir primeiro, pensar depois”. Pois o pensar nasce da sensação, e os pensamentos sobre o amor do amor vivido, que a tudo precede. E como poderia ser diferente? O amor é uma armadilha fatal, tal qual a celebrada dádiva da vida. Como afirma Dante no final da Divina comédia, é l’amour che move il sole e l’altre stelle
. É vã toda a tentativa de fuga do amor, e o correr para ele, suicídio.

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