domingo, 9 de maio de 2010

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Da proibição moral e do desejo contrário. Américo Vespúcio, de quem as nossas Américas herdaram o nome, faz uma interessante observação do que vê ao longo do litoral do atlântico sul, em 1501. Diz ele que os índios parecem ser mais “epicuristas” do que “estóicos”. Mas a idéia que o navegador genovês, cristão, tem do epicurismo é aquela, preconceituosa, hoje tão conhecida: de que a doutrina de Epicuro ensina uma busca irrefletida e irrefreada do prazer dos sentidos, prazer momentâneo e que vai contra a santa moral da Santa Madre Igreja. Mas nem todos os escritores do período colonial pensavam assim, de modo tão purista, celestial. Exemplo disso é La Celestina, escrito pelo espanhol Fernando de Rojas, em 1499, inspirado nas comédias de Plauto e outros romances medievais conhecidos, como o Libro de buen amor (1343), de Juan Ruiz, e os italianos Storia di due amanti (1444), de Enea Silvio Piccolomini, e Elegia di madonna Fiammeta (1343/44), de Giovanni Boccaccio. La Celestina, na verdade, transita entre a Idade Média e o Renascimento, sendo apontado - às vezes como comédia (1499, com 16 atos), às vezes como tragicomédia (1502, em 21 atos) – como uma das bases sobre as quais se alicerçou o romance e o teatro modernos. E é na modernidade que alguns dizem que a obra tem as características marcantes de um drama, enquanto outros afirmam que se trata mesmo é de uma novela. Por fim, há os que, como eu, acreditam que todos esses gêneros aí se encontram, e sem conflitos. Mas, quem é Celestina? Personagem que dá nome ao romance, Celestina coleciona amantes e, mais, considera isso como uma missão de libertação da sexualidade. Sua tese é: “A natureza foge da tristeza e procura o prazer.” Para ela só há um deus: o Prazer. De tal deus ela se faz sacerdotisa e evangelizadora. Celestina, de celeste, nada tem. “Em Celestina o amor é eterno ‘enquanto dura’. Estamos diante do tema oposto à doutrina oficial da Igreja sobre o amor e o prazer”, diz Eduardo Hoornaert (História do cristianismo na América Latina e no Caribe, 1994), um dos mais importantes estudiosos da vida e dos costumes da Igreja cristã no período colonial. E Hoornaert diz mais; diz que “a popularidade de Celestina e das histórias das ‘trotaconventos’ em geral demonstra que essa literatura não foi produzida num vazio cultural, mas correspondeu a uma aspiração muito profunda da pessoa humana”. Longe da mera birra contra a moral estabelecida, parece haver no excesso de La Celestina, bem como em obras mais moderadas – afinal, trata-se da Sagrada Família –, como em Per amore, solo per amore (1983), do italiano Pasquale Festa Campanile, um tiro de desconfiança contra a idéia de amor transcendente, transcendental. Em Per amore, solo per amore, a humanidade de Maria, que sente ciúmes de José (Giuseppe), a quem as mulheres adoram e para quem elas se jogam, grita por essa “fidelidade à terra” – para usar uma expressão conhecidamente nietzschiana -, por essa fidelidade ao amor terreno, animal. Além de Maria, José tem amantes, como a viúva Dorotéia, a fogosa Judite e outras. E por onde ele passa, é percebido. “Uma jovem que lavava roupas no riacho, Ana, filha de Seth, ao vê-lo passar disse às amigas: - Como ele é bonitinho... tão tenro... comê-lo-ia como manteiga passada ao pão.” A libertinagem, a transgressão política e o desejo de transgressão moral são tão antigos quanto a política, e a moral. Basta que haja uma proibição ou um tabu para que, aí, se instale o desejo de contestação, de enfrentamento com as armas do seu contrário: a liberdade de ir e vir, pensar e dizer, querer e fazer... como a vontade que se tem de olhar por aquele buraco no muro que traz, acima, a inscrição, imperativo-intimidante: “Não olhe!”

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