segunda-feira, 17 de maio de 2010

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Dos desejos e dos demônios. Freud é, com justiça, o pai da psicologia. Mas, verdade seja dita, sua maior contribuição à nova “ciência” foi o fato de ele, em pleno regime vitoriano, haver colocado o sexo como motor que engendra os processos psíquicos. Tais processos, externos, escondem-se para além do Ego, no Id, que é como um “segundo eu”, sob a fachada deste outro, primeiro da experiência mais imediata. Dificilmente o leitor de Freud, ao menos no que diz respeito às suas tentativas de dar um status científico às suas análises de pacientes neuróticos, não se chocará ao ver que o velho austro-húngaro fantasiou curas, maquiou resultados e, simplesmente, mentiu. “Uma das razões pelas quais os dados da psicanálise pareciam tão persuasivos às vezes é que Freud, seduzido por suas próprias teorias, tinha concebido um método que, em uma extensão considerável, permitia-lhe criar seus próprios dados. Em vez de teorias baseadas em observação, as ‘observações’ às vezes eram derivadas da teoria”, afirma Richard Webster, em Freud (2003), livrinho da coleção Grandes Filósofos, publicado no Brasil pela editora da UNESP. Na página seguinte, Webster afirma que, “na maioria dos casos, os sintomas [como no famoso caso de Anna O.] são construções do próprio Freud, nascidas de sua própria imaginação teórica. É somente após criá-los dessa maneira que Freud, usando estratégias de interpretação engenhosas e infinitamente flexíveis que ele próprio inventou, raciocina de modo retrospectivo de forma que crie uma série de elos artificiais derivados dos sonhos, associações e lembranças de seus pacientes”; e, mais adiante: “A crença de Freud de que estava construindo uma ciência genuína é crucial para qualquer entendimento da maneira pela qual a psicanálise se desenvolveu. Foi seu implacável e redutor cientificismo que, somado à sua compulsiva necessidade por fama, levou Freud cada vez mais longe em um labirinto de erros.” A psicanálise foi, quase toda ela, fundamentada sobre gravíssimos erros médicos, de Freud e de Jean-Martin Charcot, que era neurologista. Mas a grande capacidade de fantasiar, do pai da psicanálise, permitiu que fossem postos os alicerces para o que viria depois – principalmente com o suíço Carl G. Jung (a quem Freud, num primeiro momento, elogiava, e depois, em vendo-se contrariado, demonizava), Jacques Lacan e outros tantos. Os discípulos de Freud foram os reais construtores da psicanálise. Suas novas descobertas e o aperfeiçoamento das teorias do velho mestre, transformaram-no em uma figura iluminada, cedendo-lhe os atuais créditos – como no caso de David que, não tendo matado nenhum Golias, recebe os louros, por encabeçar o exército de Israel, como líder e chefe, pars pro toto. Seja como for, o mérito de Freud em haver colocado o sexo no centro da ciência que cria estar criando, como dissemos, está assegurado, e é legítimo. Mas, olhando ainda mais distante, e para trás, nem isso é lá grande novidade. Conforme Camile Dumoulié, em Le désir (1999), e com relação à doutrina do Desejo, em Schopenhauer, as semelhanças entre as idéias do pai da psicanálise e as do filósofo do pessimismo são tão grandes e evidentes que Freud desiste de ler Schopenhauer, para não se achar repetindo conceitos, e nem ficar viciado num determinado argumento: “Freud”, ela diz, “parece haver reconhecido apenas de modo reticente a sua dívida para com Schopenhauer, e disse a esse respeito que parou até de lê-lo tamanha a semelhança entre seus pensamentos”, e mais adiante: “Embora marcado pela filosofia de Schopenhauer, Freud fez o possível para estudar o desejo com menos apriorismo finalista e com mente positiva”. Atrelada a tal doutrina, de Schopenhauer, está a teoria da sexualidade infantil e da sedução (Verführungstheorie), de Freud, uma das suas mais famosas e contraditas – e que ele abandonou depois de perceber que muitas das seduções “relatadas por seus pacientes eram fantasias do sexo feminino”. Em uma carta datada de 21 de setembro de 1897, endereçada ao seu amigo, o médico berlinense Wilhelm Fliess, Freud fala de sua perda de fé e desencanto para com a teoria de sedução. Aí, entre várias razões pelas quais ele não podia mais manter mantê-la, consta: “Então, a surpresa que, em todos os casos, o pai, não excluindo o meu, tinha de ser acusado de ser perversa.” No final dos anos 1970, porém, algumas feministas, preocupadas com o crescente abuso sexual infantil, reexaminaram e concluíram que Freud errara ao abandonar a teoria (F. Rush, Freud and the sexual abuse of children, 1977; The best kept secret: sexual abuse of children, New York: McGraw-Hill.1980; Herman, J. L . Herman, Father-Daughter incest, 1981). Na sexualidade infantil, dentre outras, o menino se exibe para a mãe (a primeira fêmea a ser seduzida), mostrando o seu pênis, ereto; é aí também que, e para a mesma finalidade, o pai se mostra como um rival: alguém que deve morrer para que a mãe, afinal, seja somente sua. O complexo de Édipo (Ödipuskomplex) segue a mesma trilha. São essas “lembranças recalcadas” que, incluindo os casos de abusos, na vida adulta dessa criança, podem promover algumas paranóias, algumas neuroses. “Será que cheguei a revelar-lhe, oralmente ou por escrito, o grande segredo clínico?” Freud pergunta a Fliess. E que segredo seria esse? Ele responde: “A histeria é a consequência de um choque sexual pré-sexual... ‘Pré-sexual’ quer dizer antes da puberdade, antes da liberação de substâncias sexuais; os eventos relevantes só se tornam eficazes como memórias.” A memória... É aí que se aninham – talvez sob escombros e outras edificações, numa metáfora arqueológica – os demônios do desejo, do medo, dos sentidos todos. Mesmo no adulto, como no caso do próprio Freud descrevendo o “problema de Dora”, tais demônios recalcitram: “O porta-moedas de Dora, que se abria no fecho do modo habitual, não era nada mais do que a representação dos genitais e seu jogo com eles; o fato de abri-lo, e enfiar os dedos no interior do porta-moedas era uma forma totalmente desembaraçada, ainda que claramente pantomímica, de anunciar o que ela gostaria de fazer, ou seja, se masturbar.” Dora, descontente com o caminho que seu tratamento está tendo, desaparece, deixa de ir às próximas sessões. Freud lamenta e, magoado, rememorando o final abrupto da relação terapêutica com moça tão atraente, diz, filosófico: “Ninguém, como eu, que evoca os piores males destes demônios indomados que habitam o seio humano, se tenta combatê-lo, pode esperar sair da batalha ileso.” Desejos, demônios.

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