segunda-feira, 5 de abril de 2010

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Do sexo santo e imaculado. Conforme Agostinho de Hipona, não havia no homem, antes da Queda, o desejo do sexo, só a sua necessidade, mas sem a paixão, sem a tirania da vontade. Não havia, diz ele, “a vergonha do desejo” (De civitate Dei, XIII, XXVI). “Os membros genitais obedeciam ao arbítrio da vontade tal como os demais, e o marido ter-se-ia introduzido nas entranhas da esposa sem o aguilhão arrebatador da paixão libidinosa, na tranquilidade da alma e sem corrupção alguma da integridade do corpo. [...] E então poderia assim o sêmen viril penetrar no útero da esposa mantendo-se a integridade do órgão genital feminino – tal como presentemente o fluxo do sangue menstrual pode sair do útero de uma virgem sem prejuízo para a sua integridade. De fato, é pela mesma via que um se introduz e o outro sai”. Depois, percebendo que essa explicação do santo coito não era lá assim tão convincente, antes atiçava os pensamentos de quem visualizava as imagens vibrantes da descrição fantasiosa, inclusive os dele, o santo Doutor encerra a conversa dizendo: “É mais conveniente que nossa exposição se refreie pelo pudor que nos retrai do que seja ajudada pela nossa débil eloquência. [...] Como é que, então, um tal assunto poderia sugerir aos nossos sentidos humanos outra coisa que não seja o exercício duma turbulenta paixão em vez do exercício de uma tranquila vontade? Daí que o pudor impeça quem fala, embora não faltem argumentos a quem pensa”. É; a vontade é tirana mesmo! E não há freio moral que lha domine por completo, em definitivo; há que se morrer para isso. E de pouco adianta a mutilação do “instrumento do mal”, como fez Orígenes de Alexandria, o maior dos alegóricos da Antiguidade cristã, que, interpretando literalmente o versículo doze do capítulo dezenove do evangelho segundo são Mateus (“Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do Reino dos céus. Quem pode receber que o receba”), arrancou fora o pênis, para poder viver santamente. Conforme Eusébio de Cesáreia, na sua Historia ecclesiastica (talvez escrita entre 303 e 323), Orígenes ficou à frente da escola catequética de Clemente por 28 anos, levando uma vida extremamente ascética, santa e piedosa. Quanto à sua castração, para fugir das tentações, não adiantou; não adianta. Tudo está na mente. Mesmo a curva de uma árvore ou o curso sinuoso de um rio, dado o caso, lembra o corpo de uma mulher, os cabelos longos que tremulam ao vento. É na própria Escritura, no Cântico dos cânticos, que, de um modo poético pouco recomendado hoje, encontramos o Amado falando à Amada numa linguagem metafórica, ligando-a à natura:

Como és bela, minha amada,
como és bela!...
São pombas
teus olhos escondidos sob o véu.
Teu cabelo... um rebanho de cabras
ondulando pelas faldas de Galaad.
Teus dentes... um rebanho tosquiado
subindo após o banho,
cada ovelha com seus gêmeos,
nenhuma delas sem cria.
Teus lábio são fita vermelha,
tua fala melodiosa;
metade de romã são teus seios
mergulhados sob o véu.
Teu pescoço é a torre de Davi,
construída com defesas;
dela pendem mil escudos
e armaduras dos heróis.
Teus seios são dois filhotes,
filhos gêmeos da gazela,
pastando entre açucenas.

E é no mesmo livro que encontramos a mulher amada sendo despertada pelo amante que lha deseja, lha quer possuir: “Abre, minha irmã, minha amada, / pomba minha sem defeito!”. Mas ela joga com os seus desejos: “Já despi a túnica, / e vou vesti-la de novo? / Já lavei meus pés, / e vou sujá-los de novo?” A imagem seguinte é o do amado, que se foi, como se chateado pelo jogo: “Abro ao meu amado, / mas o meu amado se foi... / Procuro-o e não o encontro.” Depois, bem mais adiante, os dos dois estão juntos, vencidos pelo desejo: “Madruguemos pelas vinhas, / vejamos se a vinha floresce, / se os botões estão se abrindo, se as romeiras vão florindo: / lá te darei o meu amor... / Sua mão esquerda / está sob minha cabeça, / e com a direita me abraça.” Não, Helena! Não faz sentido a hermenêutica que diz que há, aí, uma metáfora da “relação amorosa do Cristo com a sua Igreja”. O que o poema sagrado mostra é a beleza da vida sendo celebrada, e a naturalidade do sexo - que é como respirar, ter sede; o que está sendo mostrado aí é que, contrariamente ao que o santo Bispo de Hipona parece sugerir, uma boa trepada pode ser, sim, santa e imaculada.

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