quarta-feira, 2 de junho de 2010

58

.

Do Amor personificado e da ligação: Amor (Paixão) Desejo [Eu] Vontade. O amor pode ser personificado porque é experienciado por indivíduos. Metáforas, alegorias... tudo vale para facilitar o que se diz sobre a sensação, que é única em/a cada um. Sem aquele ou aquela que ama não há – pelo menos na experiência – Amor. O que há, consequentemente, é o ser (o Eu da experiência sensorial), ser/coisa pensante, (res cogitans), como na fórmula cartesiana: penso existo. Você deve ter ouvido alguém dizer que “o amor é cego”. Dizer que o Amor é cego é, enfim, confundi-lo (fundi-lo com) com a Paixão, que faz cegar. Em tal antropomorfismo, o Amor não tem olhos, mas é sujeito; contrário à “coisa” que, ao sujeito, se predica. O que ama é que acha-se cegado por Amor, por Paixão. Quem ama sempre ama algo ou alguma coisa que não consegue “ver direito” - pois o objeto sobre o qual lançamos o nosso conhecimento sempre é modificado por tal ação: nosso conhecimento (Kant). Nada é si-mesmo (coisa-em-si), real à nossa percepção, mas sempre a nossa compreensão sobre a “coisa”, que sempre nos escapa. A relação é, sempre, de aproximação e distanciamento. Onde há o Eu e a vontade de saber, tal relação se mostra, e esse distanciamento se instala. O mesmo vale para as coisas do amor romântico.

Para que haja Amor, para que ele se efetue, mister é que haja uma relação - entre duas pessoas (ou mais) ou entre uma pessoa e uma “coisa” (um objeto): o que ama e o objeto do seu amor. Seja como for, trata-se de uma relação. De “relação” (relatio) também vem relatus: “narração”, “exposição”, que é “relatório” de/sobre algo – sobre aquele que ama e o seu objeto, portanto. Veja que, logo atrás, falo em “objeto do seu amor”. Amor aparece como ativo; e assim é porque existe o Eu, passivo: eu que sofro a ação de... Amor (Paixão) Desejo [Eu] Vontade. É, por outros termos, a velha conceituação que Aristóteles fazia entre potência e ato: o indivíduo que ama em potência ama também em ato; mas, nunca, em ato puro. Seria Amor (ou amor) o Puro Ato? Não, e sim – mas só de um modo que faça referência à Vontade de vida. O não, de modo tão enfático, é para o “tipo” de amor que tenho tratado aqui. Como já disse – e isso vale tanto para quem acredita nalguma divindade criadora e mantenedora da ordem do universo físico, como também para acredita na explicação matemático-física das coisas, de todas as coisas, ou quase todas –, o amor, seja ele qual for, aponta para uma referência (relatio), e essa, sim, seria (ou teria de ser) absoluta. Schopenhauer chama essa “coisa” absoluta de Vontade (Wille); Freud chama-a de Pulsão (Trieb), Pulsão de vida (Lebenstrieb), de morte (Toderstrieb), et cetera; e santo Agostinho chamava-a de Amor. Ele, aliás, usa essa ilustração da relação quando trata sobre o dogma da Trindade: Deus é o que ama (quod amator), o Filho é o amado (quod amans) e o Espírito Santo é o elo amoroso (quod amor) entre ambos. E assim como ocorre em relação ao Espírito, que anima o homem de fé, e embora não possa ser visto, assim também acontece com o amor, quando lho toca. E, da mesma forma que os sentidos atuam em relação às “coisas espirituais”, assim também atuam em relação ao amorque é o maior dos sentimentos, a maior das virtudes teologais. Mas aqui há, como se vê, não apenas um salto ontológico (Kant), mas uma confusão conceitual, promovida pela fé que, partindo das coisas dos sentidos, aponta para “coisas” sem sentido algum: imaginações, fantasias, delírios. Ora, se acreditar no Espírito é uma ação da , acreditar no amor perfeito é demonstração de muito maior.

Em todos esses discursos atuam sempre, de modo muito pessoal e subjetivo, os sentidos; os nossos sentidos. Em se tratando dos sentidos (e nem é preciso ler o Discurso do método de Descartes para ser ter ciência disso), eles não são as “coisas” mais confiáveis para se tratar sobre profundidades ontológicas, de coisas como estas: relacionadas aos temas do amor e da fé; mas, e como aqui fazemos convergir, valem para as coisas referentes à Vontade. Da fé, paradoxalmente, essa é a única linguagem possível, a do amor sublimado: teologia = teopoesia. À filosofia, no entanto, do Amor/Desejo/Vontade se pode cogitar outros discursos, e sem a necessidade de fé, fé nenhuma, só a análise bio-psico-antropológica do fenômeno (Phänomen), que nos remete à “coisa-em-si” mesma, ou ao pensar sobre ela – mas sem qualquer ligação com “entidades metafísicas”. “Fenômeno se chama representação, e nada mais”; é como Schopenhauer define o conceito em Die Welt als Wille und Vorstellung, de 1818. E diz ainda: “Toda representação, não importa seu tipo, todo Objeto, é Fenômeno. Coisa-em-si, entretanto, é apenas a Vontade: como tal não é absolutamente representação, mas toto genere diferente desta. É a partir daquela que se tem todo objeto, o fenômeno, a visibilidade, a Objetividade; ela é o mais íntimo, o núcleo de cada particular, bem como do todo, a aparecer em cada força da natureza que faz efeito cegamente [como o sentimento amoroso, por exemplo], e também na ação ponderada do ser humano [guiadas pela razão instrumental]: se ambas diferem, isso concerne tão-somente ao grau de aparição, não à essência do que aparece.”

Essa “força da natureza que faz efeito cegamente”, que é o mundo como Vontade, é também o que aparece por trás da potência sentimental, do ato erótico que apela, convida, se insinua, quer a vida perpetuada: Amor (Paixão) Desejo [Eu] Vontade. Do mesmo modo, ainda em relação a essa “força da natureza que faz efeito cegamente”, pode-se falar, na linguagem freudiana, da Pulsão sexual[amorosa] (Sexualtrieb), e, também por ela, da Pulsão de autopreservação (Selbsterhaltungstrieb). “Assim”, diz Schopenhauer (também em Die Welt...), “visa o gênio da espécie em todas as pessoas prolíficas a geração futura. Eis a grande obra de Cupido, incessantemente pensando e agindo no interesse dos [de gerar] filhos. Comparados com a importância desta grande tarefa, que visa a espécie e todas as gerações futuras, os interesses dos indivíduos, no seu conjunto efêmero, pouco importam”. Como a fé, para Freud, o Amor pode ser, para o sentido romântico, um “sentimento oceânico”, coisa abissal. Por tal equação: do mesmo modo que a fé pode ser um certo sentimento de inferioridade (Minderwertigkeitsgefühl) do indivíduo diante do mundo, do grande enigma do mundo fenomênico, também o Amor ideal, sublimado, ou o amor romântico. Amor, porém, diferentemente da fé – volto a dizer, pode ser tratado sem as liturgias, sem as dogmáticas, sem os credos ou as confissões, sem qualquer certeza que não a incerta certeza da Vida, da vida-aí, dada enquanto Phänomen, enquanto aparência (Vorstellung)... véu de Maia.

É essa ilusão da concretude das coisas (como a certeza da fé ou a crença nos sentidos) que faz permanecer o jocoso jogo da vida. Ela, disfarçando-se de misteriosa profundidade, quer apenas, ela mesma, manter-se. Ah!, o amor, no final das contas, é uma máscara que a vida usa; uma marionete das suas estripulias para ser, e continuar sendo: Wille, Trieb. Todos os que amam, por fim, são (ou estão) iludidos pela vida; e acreditam tolamente que vivem se tiverem o que amar - como dizia Henry de Montherlant, na sua equivocada definição de morte: “Morremos quando nãomais ninguém por quem queiramos viver”. Mas, desiludido, eu digo: “Não há ninguém, além de nós mesmos, por quem queiramos realmente viver ou morrer”. Mas a relação não se acaba aí, somente se abre, pede divórcio da fé.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo