quinta-feira, 3 de junho de 2010

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De uma carta à Helena, sobre o sentimento oceânico. Em 25 de abril de 2008, depois de ler o manuscrito de O grande livro do amor, que pediu para ser a primeira revisora, Helena me enviou uma carta enorme – é: ela diz que cartas são coisas pessoais, mais íntimas e, logo, respeitosas. Na carta, me acusa de frieza sentimental, e pergunta se não sou “assim tão amargo por alguma frustração amorosa” ou por um “coitadismo viciante da literatura dramática”. Na minha resposta, também uma carta, depois de algumas saudações pessoais e perguntas sobre as crianças e sobre o Pedro, grande amigo meu e marido dela, respondo assim, como segue:

Você, Helena, certamente já foi surpreendida por um “sentimento oceânico”; pode procurar aí no seu caderno de memórias. Sentimento oceânico é o modo como Freud fala do sentimento religioso que percebe na carta que um amigo seu, religioso, lhe envia. “Trata-se de um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras – ‘oceânico’, por assim dizer”, ele diz. E mais adiante: “Não consigo descobrir em mim esse sentimento ‘oceânico’. Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos”.

Primeiro que tudo, Helena, é importante deixar claro que, em matéria de sentimento oceânico, ficam de fora do seu campo semântico as precisas definiçõespois que cada indivíduo tem a sua própria maneira de falar ou expressar o seu lado, digamos, religioso. E religião é coisa pessoal, muito, muito pessoal. Depois, é importante assegurar que, em matéria de , de coisas espirituais, fiquem de fora também as justificativas empírico-científicas, ditas a posteriori. A não precisa da razãosenão vira contra-senso, ciência. A fé é sempre a priori, coisa ligada ao paradoxo e ao absurdo. Por isso que, como você pode ver, e como dizia Freud, “não é fácil lidar com sentimentos”, e principalmente esse que ele chama de “oceânico” – com o claro sentido de profundidade, de coisa misteriosa, desconhecida. Eu, tomando Kierkegaard por base, e também algumas experiências bem desastrosas (embora não seja aconselhável construir qualquer teoria com base em experiências individuais), além de um tanto assim de leituras e outro tanto mais assim ainda de observações, digo que, sim: é bem difícil lidar com “sentimentos”. O sentimento da (o êxtase, a contemplação, a devoção reverente, et cetera) sempre esbarra no campo – se é que posso utilizar tal terminologia – do absurdo, do paradoxo; pois é essência sua, inalienável. E daí ser, eo ipso, . Não pode haver, por exemplo, uma epistemologia da .

Está bem, querida; serei mais objetivo.

Como você deve ter percebido, falo aqui de grandezas, de perspectivas supralunares... essas coisas que, conforme o Idealismo, não se corrompem, como tudo o que vemos no mundo, debaixo do sol. Acontece que, conforme os idealistas românticos, se isso vale para as coisas da , das religiões, do êxtase místico, vale também para as coisas do desejo amoroso que é, para eles, o maior dos sentimentos. Mas tal dependência advém de uma falsa compreensão. Acontece que a Vontade, o “desejo amoroso”, não é exatamente um sentimento, mas uma condição físico-biológica, necessária à vida e sua continuidade. O instinto sexual é tão comum quanto o desejo de comer, de beber, de dormir, de respirar. O que ocorre é que, a este primeiro, fantasiamos como se ele fosse um “sentimento oceânico”, profundo, que tem fundamento na “coisa” divina. Não, não é; não tem. A cortesia, os mecanismos de conquista e todas as artes que ilustram o romantismo, nada mais são que máscaras que velam o instinto sexual, a geração de filhos, a continuidade da espécie.

Se você leu O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer (e se não o fez, deveria fazê-lo apressadamente), deve ter percebido que ele descreve essesentimento amorosocomodesejo de preservação”, “instinto sexual”. Diz que, basta que os olhos se encontrem (como quando você olha para o Pedro), para que haja o convite ao coito e, através desse, a continuidade dos dois no outro que vem, que pode vir. Amor ou paixão, como se diga, são mecanismos naturais que ativam o natural instinto de preservação, de perpetuidade. Amor: Vontade (Schopenhauer), pulsão (Freud). O mistério que envolve o sentir-se amando, ao que tem fé, leva-o a imaginar uma fonte de amor, mais perfeito que esse que ele (o homem da fé) tem, nunca perfeito, nunca absoluto. Aí está, na raiz, a raiz de todo o sentimento: o amoroso ou o religioso: a dúvida, o medo, o desconhecido, o mistério, e por trás de tudo, a Vontade.

Sei que você vai me recriminar, mas minha razão insiste em afirmar que Schopenhauer tem razão. Também sei que isso retira a “magia” de um monte de coisas bonitas; sei, por fim, que isso pode “coisificar” como natural o magnetismo romântico da Lua, o brilho cálido das estrelas, a fragilidade das flores e a cadência triste dos mais tristes poemas e canções.

Mas, olha Helena: por mais que a razão me diga que o amor é isto, uma artimanha dos nossos mais primitivos instintos, uma reação bioquímica, eu também teimo em me apaixonar, viver esse sentimento oceânico, seja o da fé (de alguma fé) ou esse do amor de perdiçãopois que o amor, no fogo que o alimenta, é sempre um amor de perdição. Sim: nos perdemos no Outro e, nele, objeto nosso, também nos encontramos. Parafraseio o evangelho que diz: “Onde estiver o seu tesouro, estará também o seu coração.” Isso explica o desejo de ficar “colado à pele dela noite e dia”, como diz o Belchior na letra de “Divina comédia humana”; ou como diz o Chico em “Tatuagem”, botando palavras na boca de uma mulher: “Quero ficar no teu corpo, feito tatuagem. Santa Teresa de Ávila, em seus transes místicos, dizia que quando o seu Amado não estava perto dela, ela sentia falta era dela mesma. Que é isso senão um sentimento oceânico, um amor de perdição? Ela, são João da Cruz e outros místicos da Igreja, nada mais fazem que sublimar o amor humano a uma categoria divina, depositando no Divino toda a sua energia sentimental.

Você, querida, caso não venha a concordar comigo (e com Schopenhauer, naturalmente), apelando a uma razão menos cruel, diga que esse amor – o amor de perdição – é um amor louco, não refletido, e que um amor assim é sempre preocupante ou perigoso. Eu lhe conheço bem; ao menos ao ponto de imaginar que você, sim, diria isso. Mas, ah, Helena!, o amor entre nós, criaturinhas mortais, é sempre louco mesmo, quase nunca refletido... Vez por outratalvez isso lhe tenha ocorrido – a gente se encanta por alguém que nada tem a ver com a gente; alguém que passa por nós numa calçada qualquer, que aparece na hora mais inesperada. E, de repente, como num passe de mágica, o mundo inteiro parece girar em torno daquela pessoa que nos prende sem amarras, sem palavras, sem sequer saber da nossa amorosa inquietude. E nem pensamos que isso é a Vontade nos lançando contra esse ou essa que, dizemos erradamente, “nos fisgou”. Sim: é a Vontade que nos têm fisgados, todo o tempo, o tempo inteiro. O Outro é apenas instrumento; instrumento para que a Vida, no fim, viva.

Lembro-me ainda de outra música, “Caminhos cruzados”, do Tom Jobim e do Newton Mendonça. O cantor, apaixonado, fala de uma falha de raciocínio: “Que tolo fui eu que, em vão, tentei raciocinar / Nas coisas do amor que ninguém pode explicar...” É na paixão (ou no amor) que o nosso raciocínio se embriaga. É preciso não estar apaixonado para ver, mais claramente, o objeto da paixão, do seu amor. Só assim ele é real, na medida em que pode sê-lo. No amor não há profundidades, só encobrimento, e embriaguez.

[...]

O resto do texto tratava de coisas pessoais, da nossa velha infância; e terminava a carta com “Saudades de vocês; beijo nas crianças.

Um comentário:

  1. Patá, endosso mais uma vez a importância de lançar tudo isto em livro.
    Legal tudo o mais ser compartilhado por aqui, um canal sem quase nenhuma fronteira.
    Mas querendo ou não, pegar em um livro é um ritual ainda delicioso, passear entre as palavras, com intervalos casuais, ou não e voltar à elas.
    Parabéns, este dom que tens, com as palavras é valiosíssimo.
    Fico aguardando novidades e torcendo para depois reler tudo isso em livro, aqui em minhas mãos.
    Abraços.

    Vant Vaz

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patativa moog, amor, filosofia, felicidade, paixão, desejo