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De uma carta à Helena, sobre o sentimento oceânico. Em 25 de abril de 2008, depois de ler o manuscrito de O grande livro do amor, que pediu para ser a primeira revisora, Helena me enviou uma carta enorme – é: ela diz que cartas são coisas pessoais, mais íntimas e, logo, respeitosas. Na carta, me acusa de frieza sentimental, e pergunta se não sou “assim tão amargo por alguma frustração amorosa” ou por um “coitadismo viciante da literatura dramática”. Na minha resposta, também uma carta, depois de algumas saudações pessoais e perguntas sobre as crianças e sobre o Pedro, grande amigo meu e marido dela, respondo assim, como segue:
Você, Helena, certamente já foi surpreendida por um “sentimento oceânico”; pode procurar aí no seu caderno de memórias. Sentimento oceânico é o modo como Freud fala do sentimento religioso que percebe na carta que um amigo seu, religioso, lhe envia. “Trata-se de um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras – ‘oceânico’, por assim dizer”, ele diz. E mais adiante: “Não consigo descobrir em mim esse sentimento ‘oceânico’. Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos”.
Primeiro que tudo, Helena, é importante deixar claro que, em matéria de sentimento oceânico, ficam de fora do seu campo semântico as precisas definições – pois que cada indivíduo tem a sua própria maneira de falar ou expressar o seu lado, digamos, religioso. E religião é coisa pessoal, muito, muito pessoal. Depois, é importante assegurar que, em matéria de fé, de coisas espirituais, fiquem de fora também as justificativas empírico-científicas, ditas a posteriori. A fé não precisa da razão – senão vira contra-senso, ciência. A fé é sempre a priori, coisa ligada ao paradoxo e ao absurdo. Por isso que, como você pode ver, e como dizia Freud, “não é fácil lidar com sentimentos”, e principalmente esse que ele chama de “oceânico” – com o claro sentido de profundidade, de coisa misteriosa, desconhecida. Eu, tomando Kierkegaard por base, e também algumas experiências bem desastrosas (embora não seja aconselhável construir qualquer teoria com base em experiências individuais), além de um tanto assim de leituras e outro tanto mais assim ainda de observações, digo que, sim: é bem difícil lidar com “sentimentos”. O sentimento da fé (o êxtase, a contemplação, a devoção reverente, et cetera) sempre esbarra no campo – se é que posso utilizar tal terminologia – do absurdo, do paradoxo; pois é essência sua, inalienável. E daí ser, eo ipso, fé. Não pode haver, por exemplo, uma epistemologia da fé.
Está bem, querida; serei mais objetivo.
Como você já deve ter percebido, falo aqui de grandezas, de perspectivas supralunares... essas coisas que, conforme o Idealismo, não se corrompem, como tudo o que vemos no mundo, debaixo do sol. Acontece que, conforme os idealistas românticos, se isso vale para as coisas da fé, das religiões, do êxtase místico, vale também para as coisas do desejo amoroso que é, para eles, o maior dos sentimentos. Mas tal dependência advém de uma falsa compreensão. Acontece que a Vontade, o “desejo amoroso”, não é exatamente um sentimento, mas uma condição físico-biológica, necessária à vida e sua continuidade. O instinto sexual é tão comum quanto o desejo de comer, de beber, de dormir, de respirar. O que ocorre é que, a este primeiro, fantasiamos como se ele fosse um “sentimento oceânico”, profundo, que tem fundamento na “coisa” divina. Não, não é; não tem. A cortesia, os mecanismos de conquista e todas as artes que ilustram o romantismo, nada mais são que máscaras que velam o instinto sexual, a geração de filhos, a continuidade da espécie.
Se você já leu O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer (e se não o fez, deveria fazê-lo apressadamente), deve ter percebido que ele descreve esse “sentimento amoroso” como “desejo de preservação”, “instinto sexual”. Diz que, basta que os olhos se encontrem (como quando você olha para o Pedro), para que haja aí o convite ao coito e, através desse, a continuidade dos dois no outro que vem, que pode vir. Amor ou paixão, como se diga, são mecanismos naturais que ativam o natural instinto de preservação, de perpetuidade. Amor: Vontade (Schopenhauer), pulsão (Freud). O mistério que envolve o sentir-se amando, ao que tem fé, leva-o a imaginar uma fonte de amor, mais perfeito que esse que ele (o homem da fé) tem, nunca perfeito, nunca absoluto. Aí está, na raiz, a raiz de todo o sentimento: o amoroso ou o religioso: a dúvida, o medo, o desconhecido, o mistério, e por trás de tudo, a Vontade.
Sei que você vai me recriminar, mas minha razão insiste em afirmar que Schopenhauer tem razão. Também sei que isso retira a “magia” de um monte de coisas bonitas; sei, por fim, que isso pode “coisificar” como natural o magnetismo romântico da Lua, o brilho cálido das estrelas, a fragilidade das flores e a cadência triste dos mais tristes poemas e canções.
Mas, olha Helena: por mais que a razão me diga que o amor é isto, uma artimanha dos nossos mais primitivos instintos, uma reação bioquímica, eu também teimo em me apaixonar, viver esse sentimento oceânico, seja o da fé (de alguma fé) ou esse do amor de perdição – pois que o amor, no fogo que o alimenta, é sempre um amor de perdição. Sim: nos perdemos no Outro e, nele, objeto nosso, também nos encontramos. Parafraseio o evangelho que diz: “Onde estiver o seu tesouro, aí estará também o seu coração.” Isso explica o desejo de ficar “colado à pele dela noite e dia”, como diz o Belchior na letra de “Divina comédia humana”; ou como diz o Chico em “Tatuagem”, botando palavras na boca de uma mulher: “Quero ficar no teu corpo, feito tatuagem”. Santa Teresa de Ávila, em seus transes místicos, dizia que quando o seu Amado não estava perto dela, ela sentia falta era dela mesma. Que é isso senão um sentimento oceânico, um amor de perdição? Ela, são João da Cruz e outros místicos da Igreja, nada mais fazem que sublimar o amor humano a uma categoria divina, depositando no Divino toda a sua energia sentimental.
Você, querida, caso não venha a concordar comigo (e com Schopenhauer, naturalmente), apelando a uma razão menos cruel, diga que esse amor – o amor de perdição – é um amor louco, não refletido, e que um amor assim é sempre preocupante ou perigoso. Eu lhe conheço bem; ao menos ao ponto de imaginar que você, sim, diria isso. Mas, ah, Helena!, o amor entre nós, criaturinhas mortais, é sempre louco mesmo, quase nunca refletido... Vez por outra – talvez isso já lhe tenha ocorrido – a gente se encanta por alguém que nada tem a ver com a gente; alguém que passa por nós numa calçada qualquer, que aparece na hora mais inesperada. E, de repente, como num passe de mágica, o mundo inteiro parece girar em torno daquela pessoa que nos prende sem amarras, sem palavras, sem sequer saber da nossa amorosa inquietude. E nem pensamos que isso é a Vontade nos lançando contra esse ou essa que, dizemos erradamente, “nos fisgou”. Sim: é a Vontade que nos têm fisgados, todo o tempo, o tempo inteiro. O Outro é apenas instrumento; instrumento para que a Vida, no fim, viva.
Lembro-me ainda de outra música, “Caminhos cruzados”, do Tom Jobim e do Newton Mendonça. O cantor, apaixonado, fala de uma falha de raciocínio: “Que tolo fui eu que, em vão, tentei raciocinar / Nas coisas do amor que ninguém pode explicar...” É na paixão (ou no amor) que o nosso raciocínio se embriaga. É preciso não estar apaixonado para ver, mais claramente, o objeto da paixão, do seu amor. Só assim ele é real, na medida em que pode sê-lo. No amor não há profundidades, só encobrimento, e embriaguez.
[...]
O resto do texto tratava de coisas pessoais, da nossa velha infância; e terminava a carta com “Saudades de vocês; beijo nas crianças.”